retrospectiva 2019
incandescência
[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]
É difícil começar um texto que busca falar do teatro paulistano em 2019. Há muito o que se dizer. Resistência, mais do que nunca, tornou-se palavra de ordem. Entre o total desprezo e ignorância do presidente e a convocação para uma “guerra cultural” feita pelo atual secretário de cultura, o fantasma da censura materializou-se em espaços públicos.
Ainda assim, o teatro segue pulsante. Em cena, respostas contundentes às atrocidades que nos cercam, reflexões fundamentais para nosso momento histórico e uma permanente busca por formas que tensionam seus conteúdos. São Paulo segue diversa e plural: remontagem de encenações antológicas, dramaturgias de autores consagrados, recriações em fricção com nossos tempos e novos artistas colocando-se em risco nas suas experimentações.
Também eu, nesse contexto, segui acompanhando e escrevendo para o ruína acesa. No total, foram cerca de setenta textos críticos sobre espetáculos em cartaz na cidade. O incandescência é uma lista de celebração. E como afirmei no texto do ano passado, há um dado inevitavelmente subjetivo nestas escolhas — não apenas por características da minha fruição, mas na própria seleção das obras assistidas ao longo do ano.
Há também um dado sociopolítico. Elena Gorfinkel recentemente publicou o que pode se considerar um manifesto anti-listas, onde problematiza essa tradição na crítica cinematográfica. Concordo com suas colocações. Mas ressalto que no teatro é diferente: não há prateleiras ou serviços de streaming onde podemos acessar obras das artes cênicas. É na escrita que se pode manter a ruína acesa: após a chama da própria vela exaurir sua materialidade, restam suas reverberações e as possibilidades de registrá-las.
De todo modo, ao olhar para o meu ano teatral em retrospectiva, fica evidente um recorte geográfico em minhas escolhas. Essa é uma lista que não dá conta da produção teatral feita fora do centro expandido da cidade de São Paulo. É uma lista que também fala das ausências — e do que elas significam.
São muitos os grupos que, já há muito tempo, trazem a resistência em seu fazer diário. Ignorados pela crítica, por prêmios e por políticas públicas, seguem fazendo sua arte. Este é um lembrete para mim mesmo sobre a necessidade do deslocamento — literal e metafórico.
Talvez chame a atenção o fato de que grande parte dos espetáculos aqui citados cumpriram temporadas em Sescs da capital. A acolhida desta instituição segue sendo importantíssima para o desenvolvimento da cena teatral paulistana — o que não a isenta de críticas.
Também é importante destacar a atuação de Pedro Granato na Secretaria Municipal da Cultura: se o Centro Cultural São Paulo, com a curadoria de Kil Abreu, já é há anos espaço nevrálgico para olhar o teatro da cidade, no último ano também outros equipamentos públicos, como os teatros distritais, retomaram sua importância — destaca-se a criação do Centro Cultural da Diversidade no Itaim Bibi, agregando valor a um quase esquecido Teatro Décio de Almeida Prado. Abaixo, nomeio as obras que, para o ruína acesa, permanecem incandescentes para além de 2019. A escolha por categorias é organizacional a fim de ampliar o escopo do reconhecimento desta retrospectiva.
SOLOS
Em 57 Minutos — o tempo que dura essa peça, apresentado no Parlapatões, o carismático Anderson Moreira Sales atua, dirige e assina a dramaturgia (que parte de Ulysses, de James Joyce) no monólogo que versa sobre as grandezas e miudezas que cabem na fragmentação de um dia.
Também partindo de inspirações literárias, Hipocôndrio, no Pequeno Ato, com a interpretação muito bem construída de Lucas Heymanns, traz uma figura angustiada em busca de mecanismos de salvação — o personagem baseia-se no protagonista de Doutor Fausto, de Thomas Mann.
Em outro trabalho de grande precisão da intérprete, Bruna Longo intersecciona a vida de Mary Shelley e seu Frankenstein em Criatura, uma autópsia, na Oficina Cultural Oswald de Andrade. No texto da encenação, trechos dos diários da autora, de sua obra e registros de pessoas próximas; salta aos olhos a dramaturgia física construída por Longo.
Nicole Marangoni constrói Eu/Telma, apresentado em uma sala do Teatro Aliança Francesa, dentro da seara da autoficção, propondo uma personagem cuidadora de idosos que parte de sua experiência com cuidados paliativos — e do processo da perda de seu pai. Uma encenação inteligente e delicada.
GRUPOS SEDIADOS FORA DA CAPITAL PAULISTA
Grupos de fora da cidade de São Paulo também se destacaram. O Teatro do Concreto (Brasília/DF) trouxe o performático Festa de Inauguração para o Sesc Pompeia, questionando as curadorias feitas pela história: o que se esconde por trás de paredes e como destruições também podem ser criações?
No campo da memória, o Lume Teatro (Campinas/SP) visitou pacientes com Alzheimer e também sua própria trajetória para construir o intrincado KINTSUGI, 100 memórias, em cartaz no Sesc Avenida Paulista. Os 34 anos do grupo compõem um relicário vivo no espaço cênico, retomando outros espetáculos e passagens da vida de seus integrantes.
Os rapazes do Magiluth (Recife/PE) conceberam Apenas o Fim do Mundo como um site-specific para o Sesc Avenida Paulista — que, antes da estreia do trabalho, recebeu obras do repertório do grupo. Com a direção de Lubi e Giovana Soar, consolidam-se procedimentos de interpretação vistos em outras encenações, aqui verticalizados pela densidade da dramaturgia de Jean-Luc Lagarce.
A Companhia Negra de Teatro (Belo Horizonte/MG) trouxe seu potente Chão de Pequenos para o Sesc Pinheiros. Narrando as experiências de dois jovens em um abrigo à espera da adoção, Felipe Soares e Ramon Brant destacam-se pela prontidão, presença e jogo cênico na encenação.
INTERNACIONAL
Também há os que vieram de mais longe. A Mostra Internacional de Teatro (MITsp) consolida sua relevância dentro dos festivais brasileiros em sua sexta edição. Apresentado no Teatro João Caetano, MDLSX, do grupo italiano Motus, traz Silvia Calderoni em um espetáculo cuja playlist é central no desenvolvimento da encenação e as questões de gênero suscitadas pela dramaturgia — que sobrepõe manifestos transfeministas e queers à biografia da intérprete.
Artista em evidência da edição, Milo Rau trouxe três espetáculos. A Repetição: História(s) do Teatro I, encenado no Auditório do Ibirapuera, parte de um crime violento com motivação homofóbica ocorrido na Bélgica para tensionar os limites da representação e jogar com a irrupção do real na cena com procedimentos caros ao teatro contemporâneo.
INFANTIL
No teatro infantil — ainda que não tenha sido uma cena efetivamente acompanhada por mim — vale ressaltar o trabalho do coletivo O Bonde em Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus, que estreou no Sesc Belenzinho. A dramaturgia de Maria Shu parte de um fato real para resgatar narrativas muitas vezes ausentes do palco; um bonito lembrete de que “toda história é sagrada”, como diz o texto do espetáculo.
ESTREIAS — TEATRO ADULTO
Dentro da programação da MITsp, Renata Carvalho estreou seu Manifesto Transpofágico no Teatro Décio de Almeida Prado. A atriz assina a travaturgia do espetáculo, atuando como transpóloga na lida com sua própria transcestralidade. Seu manifesto é direto e simultaneamente sutil no debate sobre não apenas o corpo, mas a existência travesti em nosso país.
O diretor José Roberto Jardim adaptou para a cena o belíssimo romance A Desumanização, de Valter Hugo Mãe, cumprindo temporada no Sesc Santana. No palco, Maria Helena Chira e Fernanda Nobre duplicam Halldora para evocar Sigridur em espetáculo marcado pelos recursos de vídeo e envolvente dramaturgia sonora.
Jardim também assinou a direção de Há dias que não morro ao lado de Laíza Dantas, Paula Hemsi e Aline Olmos. O espetáculo, que estreou no Sesc Pompeia, marca a fundação da ultraVioleta_s (antigo Academia de Palhaços). Trata-se da verticalização da pesquisa de linguagem iniciada em Adeus, palhaços mortos! — com a qual a obra forma um díptico.
O dramaturgo René Piazentin tornou-se o primeiro autor contemplado duas vezes no importante edital da Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, do CCSP. Em A Neve ou fora de controle, Piazentin dirige a Cia. dos Imaginários em uma encenação que tensiona de forma complexa e inteligente passado e presente. Entre metáforas e referências diretas, a encenação transita entre sonhos e realidade.
No Sesc Consolação, Felipe Hirsch e os Ultralíricos estrearam Fim, com textos do argentino Rafael Spregelburd. As escolhas precisas de Hirsch — em conjunto com o elenco talentoso, assim como toda a equipe criativa das demais camadas da encenação — desenharam uma obra que constrói um rico diálogo com inquietações contemporâneas acerca da arte.
Cabe destacar aqui duas obras que, por motivos diversos, acabaram não tendo críticas publicadas [nota: à época da retrospectiva] no ruína acesa: As Mãos Sujas, no Sesc Ipiranga, com direção de José Fernando Peixoto de Azevedo para o texto de Jean-Paul Sartre estabeleceu-se como uma encenação densa e dinâmica, cuja proposta de direção encontra-se ancorada por elenco equilibrado, onde Vinicius Meloni se destaca em seu trabalho como protagonista, trilha executada ao vivo e o dispositivo da filmagem ao vivo. Os Um e Os Outros, da Cia. Livre e da Cia. Oito Nova Dança, parte de Brecht para debater convivência, diversidade e alteridade na relação da sociedade com os povos originários do Brasil, evocando a participação e a reflexão do público de forma eficaz e acolhedora, aproveitando a arquitetura do teatro do Sesc Pompeia.
Aconteceram outros dois encontros fortuitos com Brecht neste ano. O Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, cujo desenvolvimento de linguagem do Teatro Hip-Hop pauta-se em diversos procedimentos do teatro épico, encarou pela primeira vez um texto do autor. Estreado no Sesc Bom Retiro, Terror e Miséria no Terceiro Milênio — Improvisando Utopias fricciona os quadros de Terror e Miséria no Terceiro Reich à contemporaneidade, em hábil trabalho de Claudia Schapira em colaboração com Lucienne Guedes e o elenco na dramaturgia.
Já o Coletivo Legítima Defesa, dirigido por Eugênio Lima, partiu do Julgamento de Luculus para uma densa e pulsante encenação que trazia sua provocação como título: Black Brecht — e se Brecht fosse negro?, que ficou em cartaz no Sesc Pompeia. Dione Carlos assina a imbricada dramaturgia que encontra na encenação de Lima uma complexa teia de referências em suas camadas. Uma mudança de paradigma na alteração não apenas do protagonismo, mas efetivamente das narrativas; aqui a (re-)existência negra é o sujeito poético, centro da ação. Uma obra contundente.
A diretora carioca Christiane Jatahy estreou no Sesc Pinheiros a segunda parte de seu díptico Nossa Odisseia. Simultaneamente um desenvolvimento e uma subversão de sua pesquisa de linguagem, O agora que demora — Nossa Odisseia II parece aproximar o teatro do cinema — e não o contrário. É a processualidade do filme que decanta no palco — onde estão apenas Jatahy e Thomas Walgrave, seu colaborador; aos poucos, verifica-se que não apenas eles, mas também o público acaba por implicar-se na obra.
Em (IN)JUSTIÇA, que estreou na sede do grupo, a Companhia de Teatro Heliópolis constrói uma situação ficcional, com dramaturgia de Evill Rebouças para lançar um olhar apurado sobre a justiça em nosso país. Da evocação de Xangô à sala de tribunal, passando pela fugacidade e violência do cotidiano, a encenação dirigida por Miguel Rocha transita por diversas atmosferas sem abrir mão do rigor e da poesia. Destaca-se ainda a presença das musicistas Amanda Abá, Bel Borges e Fernanda Broggi, sob direção musical de Meno del Picchia, cuja dramaturgia sonora dialoga estruturalmente com a ação cênica. A presença de diversos provocadores na ficha técnica do projeto — contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro — evidencia a profundidade da pesquisa do grupo, o que reverbera na encenação.
Por fim, Stabat Mater, outra obra contemplada pelo edital da Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP (onde estreou). Janaina Leite segue revelando-se uma das artistas mais inquietantes da atual cena teatral. Em suas obras, constantemente se coloca em xeque; de forma corajosa, honesta e profunda. É surpreendente sua capacidade de articular referenciais teórico-conceituais, dados de sua própria biografia e uma contundente pesquisa estética. A obra estrutura-se como espécie de palestra performativa, transitando entre narrativa organizada e performatividade perturbadora. A presença de sua mãe, Amália, em cena, efetiva e problematiza a proposta de Leite: torna-se quase eco de uma suposta ausência; assim como a figura masculina e suas distintas representações ao longo da encenação suscitam mais questionamentos do que respostas.
O teatro permanece vivo e em movimento. Que venha 2020!
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