teatro

o que se semeia nas camadas da história

crítica de “Fóssil”; idealização de Natalia Gonsales com dramaturgia de Marina Corazza e direção de Sandra Corveloni.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Rojava. O termo, no idioma curdo, significa “Oeste” — ou “pôr do sol”. É o nome que leva a região do Curdistão ocupada pelo Estado da Síria. Desde 2016, o território autônomo de fato é chamado Federação Democrática do Norte da Síria (FDNS). Logo no início de seu Contrato Social — a constituição da região — verificam-se seus pilares: democracia, ecologia e liberdade das mulheres.

Concebida a partir da história das mulheres curdas, protagonistas da Revolução de Rojava, Fóssil sintetiza a oposição que se desenvolverá desde sua primeira imagem. O videografismo de André Grynwask e Pri Argoud (Um Cafofo) e a iluminação de Aline Santini constroem dois ambientes radicalmente opostos.

Anna (Natalia Gonsales) caminha livre e determinada por um deserto ensolarado, carregando uma tamareira nas mãos. Luiz Henrique (Nelson Baskerville) está atrás de uma mesa; na paisagem do escritório, chaminés industriais em um dia chuvoso.

Ela é uma jovem cineasta; ele, um executivo de meia-idade, presidente de uma distribuidora de gás que a conhece desde jovem. É inteligente a premissa da dramaturgia de Marina Corazza: Anna quer que a indústria capitaneada por Luiz Henrique financie seu filme. A situação proposta garante uma base sólida para o desenvolvimento do discurso da encenação.

Nelson Baskerville em “Fóssil” / foto: Ronaldo Gutierrez

As escolhas da diretora Sandra Corveloni dialogam fluentemente com os caminhos alinhavados por Corazza. Não se trata de uma empreitada simples: Fóssil sobrepõe temas e tempos. Talvez em primeiro plano esteja o embate entre as personagens e suas relações pessoais. De um conflito que de início beira o maniqueísmo — a jovem idealista e o pragmático presidente de uma indústria — emergem questões acerca dos mecanismos de produção artística, problemáticas éticas e ponderações sobre a função e eficácia da arte.

Porém, na lida com a questão de Rojava, descortinam-se diversas outras leituras. Para além da realidade daquelas mulheres, acompanhamos também as ideias da cineasta — as formas por meio das quais histórias são contadas.

De certo modo, o espetáculo é ambicioso ao colocar em cena tantas camadas. Na dramaturgia de Corazza fica nítida a densidade da pesquisa da artista — convidada por Gonsales para escrever a obra. Um dos grandes méritos de Fóssil é sua capacidade de organizar de maneira inventiva e condensada sua narrativa, permitindo que elementos e informações se desvelem harmoniosamente para o público.

O filme proposto pela personagem Anna parece ter grande inspiração em um massacre ocorrido em agosto de 2014 nas montanhas de Sinjar, quando uma população yazidi (um grupo étnico-religioso curdo) acabou abandonada à própria sorte no deserto — foram mais de 10 mil pessoas assassinadas e 5 mil mulheres (e crianças) capturadas pelo Daesh.

Destaca-se na descrição da cineasta o apoio das mulheres àquela personagem refugiada. Consolida-se, de certo modo, uma interessante metáfora que se relacionará com as revelações do enredo que constróem o vínculo entre os acontecimentos de Fóssil com o período ditatorial brasileiro. O dado concreto de que, na formulação de Rojava, há um braço militar formado exclusivamente por mulheres — o YPJ, Unidade de Proteção das Mulheres — sustenta a ficção proposta.

Nelson Baskerville e Natalia Gonsales em “Fóssil” / foto: Ronaldo Gutierrez

O protagonismo feminino não se encontra apenas na linha de frente, mas na própria concepção revolucionária de Rojava. O grande ideólogo por trás das formulações do Contrato Social da FDNS, Abdullah Öcalan (preso desde 1999), defende a jinealogia; a “ciência das mulheres”.

Trata-se de uma estrutura de análise feminista que se propõe, grosso modo, a observar historicamente a origem da marginalização das mulheres; a opressão do estado, do patriarcado e do capital sobre elas.

Olhar para trás, buscar no que havia antes os caminhos para seguir adiante. Recusar hierarquias injustificadas, compreender novas formas de se relacionar coletivamente. Enquanto a distribuidora de gás de Luiz Henrique está passando pelo que parece ser uma tragédia ambiental, Anna o presenteia com uma tamareira.

“Quem planta tâmaras não colhe tâmaras”, afirma o executivo, ecoando o provérbio que lembra do tempo que tal árvore demorava para dar seus primeiros frutos. O que se quer colher quando se planta? A tamareira segue iluminada durante toda a encenação. Talvez nos lembrando de que certas utopias são maiores do que o tempo de uma vida.

Fóssil não se resolve em suas contradições, mas parte de um exemplo real — e contemporâneo — para pensar sobre ontem, hoje e o futuro. Ainda que pareça difícil, ao final, conceber novas e possíveis Rojavas por vir, há certa esperança. Há histórias a serem contadas; há crianças sorrindo. Crianças que querem colher tâmaras, não virar petróleo.

Natalia Gonsales em “Fóssil” / foto: Ronaldo Gutierrez