teatro

é imenso este chão de pequenos

crítica de “Chão de Pequenos”, da Companhia Negra de Teatro (MG).

No palco, dois pequenos roupeiros de aço levam o nome de Lucas Silva e Pedro Henrique. É esse o sintético cenário de Chão de Pequenos, da Companhia Negra de Teatro, de Belo Horizonte (MG). Se por um lado pode parecer que toda a vida dos jovens interpretados por Felipe Oládélè e Ramon Brant cabe naqueles compartimentos, por outro, a encenação com direção de Tiago Gambogi e Zé Walter Albinati redimensiona a existência daqueles dois por uma via extremamente afetiva.

Os personagens parecem transitar entre momentos da tenra infância e as questões da adolescência; entre abrigos e abandonos, desenham uma fábula que dialoga com a realidade das crianças e jovens que, por diversos motivos, aguardam pelo acolhimento de uma família.

Segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) consultados no dia 02/10/2019, o Brasil tem hoje 46.081 pretendentes cadastrados e 9.593 crianças/adolescentes. À primeira vista, o número pode causar espanto: se há tantos interessados em adotar, como ainda existem tantas crianças e jovens esperando em abrigos?

Certas crianças tendem a ser mais adotadas do que outras. Isto porque quando um casal — ou uma pessoa solteira — se torna apto a adotar, é definido um perfil desejado. O que se verifica, então, é uma certa discrepância frente aos anseios dos adotantes e o cenário efetivo das crianças e adolescentes que aguardam a adoção.

Observando os relatórios do CNA, diversos critérios criam gargalos entre expectativa e realidade. Idade, deficiências e a presença de irmãos são os que se revelam mais evidentes. Raça e gênero, no entanto, também são recortes que influenciam esta questão.

Ramon Brant e Felipe Oládélè em “Chão de Pequenos” / foto: Matheus Soriedem

Em Chão de Pequenos, alguns destes dados fundamentam o desenvolvimento da trajetória das personagens. Com textos de Oládélè, Brant e Ana Maria Gonçalves (Grace Passô assina como provocadora), a dramaturgia coletiva parte de histórias reais.

No que se refere à raça, há uma distribuição equivalente entre a porcentagem de crianças adotadas e a realidade dos abrigos. Mas chama a atenção a diferença no perfil desejado. Se no relatório das crianças e adolescentes há uma maioria de cadastradas como pardas (49,7%), seguidas de brancas (33%) e negras (16,7%), nos aceites dos pretendentes a preferência é branca: 92,5%, sendo que 14% só aceitam crianças desta raça.

É na idade que se percebe o dado mais discrepante entre os relatórios. No cadastro de crianças e jovens, a porcentagem oscila pouco dos um aos dezessete anos. Com menos de um ano, são 4% do total; com quinze anos, 7,8%. A variação mantém-se relativamente estável dentro destes patamares mínimos e máximos. Ao observar os pretendentes, há uma diminuição brutal do interesse em crianças com idades a partir dos sete anos.

Apenas 16,5% aceitam adotar uma criança com mais de 6 anos. E elas representam 67,2% das cadastradas. Talvez por isso, em Chão de Pequenos, um dos jovens diz ao outro que, depois dos 4 anos, já se é velho. Mais do que apontar para estas questões, a obra concebida por Oládélè e Brant fricciona de forma fluida tais problemáticas socioculturais à uma dimensão subjetiva.

O espetáculo da Companhia Negra de Teatro compõe-se em uma grande partitura corporal dos atores. Chão de Pequenos tem em sua tessitura elementos de muitas linguagens. Teatro-dança, físico, documentário: até mesmo o figurino de Bárbara Toffanetto torna-se um dispositivo cênico extremamente plástico na produção de imagens marcantes.

Ramon Brant e Felipe Oládélè em “Chão de Pequenos” / foto: Matheus Soriedem

Neste sentido, a encenação sustenta a todo momento uma série de camadas entre o que se revela no texto dito pelos atores, em seus movimentos, nos depoimentos em off e também o que não precisa ser dito. Na direção de movimento de Gambogi, coreografias transitam entre os jogos da infância e as dificuldades de adolescentes que enfrentam, sem uma família, a dureza da vida nas grandes cidades.

A violência, a miséria e o brincar: compreendendo a impossibilidade de reduzir estes indivíduos à sua condição, Chão de Pequenos permite que haja leveza poética na relação destes jovens. No trabalho preciso e delicado de Oládélè e Brant, esses corpos vivos, pulsantes e desejosos carregam também suas dores. Dessa forma, há constantemente uma dupla possibilidade de leitura de seus movimentos e diálogos.

As personagens se apresentam, falando sobre suas características e sonhos. Nas trajetórias desenvolvidas, talvez estas personalidades esboçadas inicialmente fiquem aos poucos para trás. O centro da encenação está precisamente no que se constrói em relação. Na relação destes dois que parecem ter só um ao outro. Nas coreografias, em duos e solos, Chão de Pequenos efetiva o potente salto que transforma a pesquisa de campo em poesia.


Ramon Brant e Felipe Oládélè em “Chão de Pequenos” / foto: Matheus Soriedem

É imenso este chão de pequenos. Na iluminação de Cristiano Diniz, o gradeado que poderia sugerir uma prisão é a possibilidade infinita que traz uma janela. Na trilha sonora original de GA Barulhista, timbres leves no início vão aos poucos ganhando uma maior densidade de acordo com a atmosfera da obra.

Em off, os depoimentos parecem também desenvolver uma trajetória própria, com a voz de uma criança que passou pelo processo de adoção chegando apenas no final. Nos corpos de Oládélè e Brant, prevalecem movimentos flexíveis e fluidos até a explosão que antecede o fim, quando se tornam mais diretos.

Há muitas histórias a serem contadas. E há como ver beleza em todas elas. Chão de Pequenos utiliza poucos e bem escolhidos elementos cênicos para levar ao público um espetáculo de raro equilíbrio entre delicadeza e potência. Sem ignorar o chão, a Companhia Negra de Teatro escolhe pousar a narrativa daqueles pequenos na afetividade de corpos em relação.


Ramon Brant e Felipe Oládélè em “Chão de Pequenos” / foto: Matheus Soriedem