orgulho, teatro

da infinita vida que pulsa em todos os corpos (ou por um anti-réquiem do renascimento)

crítica de “MDLSX”, do Motus, apresentado na MITsp 2019.
foto: Simone Stanislai

A primeira imagem de Silvia Calderoni vista em “MDLSX”, da companhia italiana Motus, é um vídeo de sua infância. A criança canta “C’era un ragazzo / che come me / amava i Beatles e i Rolling Stones”. Além da doce delicadeza — que instantaneamente captura a plateia — dois dados parecem saltar do registro. Por um lado, uma pretensa normalidade do pertencimento — um garoto, como nós, que gosta dos Beatles e dos Rolling Stones. Por outro, sabendo da temática queer do espetáculo — e percebendo o corpo andrógino de Calderoni — ver o que se lê como uma garotinha cantando “ragazzo” ao invés de “ragazza”, mesmo se tratando da letra da música, já suscita as reflexões vindouras.

Na dramaturgia de Calderoni com Daniela Nicolò — esta também dirige a obra junto a Enrico Casagrande — manifestos transfeministas e queer são sobrepostos à trajetória biográfica da atriz e DJ, além da narrativa do livro que inspira o nome do espetáculo — Cal/Calíope, protagonista de “Middlesex”, do autor Jeffrey Eugenides, surge como possível espelhamento da intérprete.

Ainda que certos dados — como a citação ao ano de nascimento de Calíope (e de renascimento de Cal) — possam sugerir a camada ficcional, Calderoni e Nicolò entrelaçam as referências de maneira a potencializar tal sobreposição. O que parece emergir enquanto discurso, neste sentido, é que não se trata de uma história única; mas da complexidade inerente às múltiplas possibilidades de existir.

Estruturando a encenação de Nicolò e Casagrande está o jogo com a música. Aproveitando-se do fato que Calderoni, além de atriz, é DJ, ela mesma opera a playlist do espetáculo, com seu computador e uma mesa de som em cena. Cabe apontar que, apesar disso, em certos momentos parece também haver uma operação externa — se isso pode soar como um ruído na proposta, também confere uma dinâmica maior ao espetáculo, dando mais liberdade para as ações de Calderoni.

MDLSX
Silvia Calderoni em “MDLSX” / foto: Simone Stanislai

Ela vibra em cena. A obra contrasta os muitos momentos onde Calderoni fica de costas para o público com outros repletos de uma pulsão intensa de vida. A lida com a performatividade de seu corpo — que não é facilmente lido de maneira binária — é constante na construção de “MDLSX”. A atriz permanece de costas, mas também se apresenta nua. Entre a revelação e o ocultamento de sua androginia, o que parece se evidenciar é que o que está em pauta não é apenas um corpo não-normativo, mas a possibilidade de se localizar na dissidência para afirmar a desimportância da binariedade de gênero.

Ainda que haja dor e tremendas dificuldades no crescimento de uma pessoa intersex — aliás, o dado que localizaria Calderoni dentro das acepções utilizadas dentro das teorias de gênero não é efetivamente revelado pela encenação, considerando o caráter ficcional presente na dramaturgia — o espetáculo opta por celebrar vividamente a existência de algo além do masculino e do feminino.

Nesta celebração, ao evocar Paul B. Preciado e seu “Manifesto Contrassexual”, uma existência em oposição às normas estabelecidas pelo poder hegemônico é concebida. Na fricção entre a performatividade do corpo não-binário que se afirma queer de Calderoni e as camadas da narrativa, desestruturam-se saberes consolidados.

MDLSX“MDLSX” / foto: Renato Mangolin

Além da presença da atriz no palco, os vídeos de sua infância e adolescência são confrontados com a projeção dela mesma, que se filma ao vivo — editando e mediando o olhar do espectador sobre seu discurso; cria-se um duplo, então, do corpo em ação, e sua exibição simultânea. Retratado muitas vezes em close, o rosto de Calderoni carrega forte carga expressiva.

Também, as atmosferas construídas pela iluminação criam um ambiente experimental — que muitas vezes encontra diálogo com projeções menos concretas. As imagens aceleradas de flores desabrochando abrem campo para múltiplas interpretações.

E tudo isso acontece no pulso da playlist tocada pela atriz. Canções indie dos últimos anos são maioria — além de clássicos mais antigos. Algumas faixas chamam a atenção pelo teor de suas letras. “Oh despair, you’ve always been there”, canta o Yeah Yeah Yeahs em “Despair”; um pouco mais à frente, no entanto, a música afirma:

Through the darkness and the light / Some sun has got to rise / My sun is your sun / Your sun is our sun

Essa tônica dúbia, entre o sofrimento e a esperança, permeia a obra entre os duros relatos e a potência do corpo vivo de Calderoni.

MDLSXSilvia Calderoni em “MDLSX” / foto: Renato Mangolin

Em “Step”, do Vampire Weekend, a — um tanto violenta — canção de amor reafirma a força do sujeito mas a impotência na solidão.

I’m stronger now, I’m ready for the house / Such a modest mouse, I can’t do it alone, I can’t do it alone”

Na francesa “Formidable”, de Stromae, também, de algum modo, sobre amor, ouvimos:

Formidable / Tu étais formidable, j’étais fort minable / Nous étions formidables

O último verso do refrão, em uma possível extrapolação, tensiona-se com a problemática levantada por Calderoni acerca da impossibilidade de construir um “nós” em nossa sociedade contemporânea. O que aproxima nossas singularidades? Raça, classe, gênero… e como isso opera de fato? Como tais recortes propõem efetivamente confrontos ao poder estabelecido? “MDLSX” parece ir na direção de uma proposição clara referente a gênero.

O “Establishment Blues” de Sixto Rodriguez afirma:

This system’s gonna fall soon, to an angry young tune / And that’s a concrete cold fact

E também, em “Up Past The Nursery”, do Suuns:

Do what you can’t, you cant’, you can’t, you get it in / Do what you can’t, you cant’, you can’t, you take it in”.

Tal enfrentamento ecoa em “Human Fly”, do The Cramps:

And baby I won’t care, cuz baby I don’t scare / Cuz I’m a reborn maggot using germ warfare rockin’

Em oposição à agressividade punk e à postura bélica do The Cramps, mas agregando ao dado do renascimento, o duo Ibeyi o traz poeticamente em “River”. A ideia de uma nova vida — tal qual o segundo nascimento de Cal no romance “Middlesex” — surge como um anti-réquiem na assunção de quem se é de maneira livre e plena.

Carry away my dead leaves / Let me baptize my soul with the help of your waters / Sink my pains and complains / Let the river take them, river drown them / My ego and my blame

Na balada “Everyday”, de Buddy Holly, a caminhada frequente em direção ao amor — que parece a cada dia mais distante. Pois também se trata dos afetos e afetividades; nesse sentido, a obra não lida apenas com questões de identidade de gênero, mas com sexualidades dissidentes de modo geral.

Everyday, it’s a gettin’ closer, / Goin’ faster than a roller coaster, / Love like yours will surely come my way, (hey, hey, hey)

MDLSXSilvia Calderoni em “MDLSX” / foto: DIANE ilariascarpa

Expectativas acerca da masculinidade e feminilidade — tanto do outro quanto de si — podem ser questionadas na fricção da obra com músicas como “Nancy Boy” (“bixinha”, em tradução livre), do Placebo, “Coin Operated Boy”, do Dresden Dolls e “Sorry I’m a Lady”, do Baccara. Críticas à opressão de gênero são encontradas em “Witches! Witches! Rest Now In The Fire”, do Get Well Soon (“They want you to burn in hell / Because of your magic spell”) e em “One Hit”, do The Knife.

So where’s the femininity / The one with skirts and high heels / A shiny sink and home made meals / The one and only way / If you enter you’ll stay

Calderoni apela ao público que esteja com ela nessa caminhada. Seja na melancólica “Galapogos”, do Smashing Pumpkins (“I won’t deny the pain / I won’t deny the change / And should I fall from grace / Here with you / Will you leave me too?”) ou na dúbia “Imitation of Life”, do R.E.M.

“This lightning storm, this tidal wave / This avalanche, I’m not afraid / Come on, come on / No one can see me cry”

Em “Road to Nowhere”, do Talking Heads, o convite direto para a viagem rumo ao desconhecido — e a percepção de que este destino, ainda que incerto, pode ser o paraíso. Nesse sentido, o caminho a ser seguido por Calderoni é o que nos compele a fundar, da maneira que for possível, este “nós”. Um plural que afirma suas singularidades. Não basta romper a norma para recriá-la; uma existência renascida da maneira que verdadeiramente sempre foi clama pela negação da normalidade.

Apresentada como um pedido para seu funeral, “Please, Please, Please Let Me Get What I Want”, dos Smiths, tocada no momento dos aplausos, se redimensiona. Aqui, um pedido singelo a ser atendido em sua enorme radicalidade. E um anti-réquiem para um renascimento.

“So please, please, please / Let me, let me, let me / Let me get what I want / This time”

MDLSXSilvia Calderoni em “MDLSX” / foto: Simone Stanislai

“So for once in my life / Let me get what I want / Lord knows / It would be the first time”