teatro

fotos de dentro, fotos de fora; homens que brincam, homens que choram

crítica de “Aquilo que meu olhar guardou para você”, do grupo Magiluth.
foto: Thiago Liberdade

Em uma fotografia, muito mais do que o registro objetivo de alguém ou de algo, o caráter subjetivo que o olhar do fotógrafo sugere abre um grande campo afetivo no olhar do observador. Fotos eternizam momentos; produzem uma imagem que, seja resgatando ou inventando memórias, despertam diversas sensações. Elas são aquilo que um olhar escolhe guardar para si próprio e para o outro.

Quando o público entra no espaço cênico, os atores — todos homens — do grupo pernambucano Magiluth estão agitados, andando pelo espaço inquietos. De mão em mão entre os espectadores é passado um pequeno projetor. As fotos de São Paulo são vistas pequenas, na camiseta de um dos atores; são vistas grandes, nas vigas e paredes. A premissa de “Aquilo que meu olhar guardou para você”, segundo o elenco diz, foi partir de fotografias de cidades para construir narrativas.

O espetáculo, com dramaturgia de Giordano Castro, que também atua, se estrutura em três playlists. O nome das cenas está escrito na parede do fundo. É uma escolha que parece afirmar a importância da teatralidade na montagem. Na direção de Luiz Fernando Marques Lubi — em parceria com o grupo — há a constante lembrança de que se trata de uma peça de teatro. Fundamental, ali, é o jogo e a brincadeira.

Neste sentido que já se estabelece um dos elementos mais bonitos de “Aquilo que meu olhar guardou para você”: são homens que brincam. Além de Castro, Erivaldo Oliveira, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner compõem o talentoso elenco. Numa lida sutil com a performatividade, eles parecem constantemente interpretar eles mesmos, em um trabalho extremamente orgânico e habilidoso.

Aquilo que meu olhar guardou para você
Lucas Torres em “Aquilo que meu olhar guardou para você” / foto: Bernardo Cabral

Nas três playlists, as cenas são fragmentos que vão e vem, entre desenvolvimentos de situações e sugestões de relações possíveis a serem criadas entre elas. Há uma trajetória interessante na encenação. No início, a cena constrói efetivamente as imagens como fotografias, na delicadeza poética do texto de Castro e no trânsito entre narração e ação. Aos poucos, como que se esquecendo da referenciação direta às imagens concretas, há um deslocamento para as fotografias de dentro; a subjetividade que passa a ganhar cada vez mais campo.

A metateatralidade utilizada no jogo dos atores, na lembrança de que sim, é uma peça, é ficção (e mesmo quando algo parece espontâneo, basta olhar para as playlists anotadas na parede e lá estará a “Briga”, por exemplo), mantém o público ativo, compondo sua leitura distanciada do que acontece em cena. Ao mesmo tempo, os afetos produzidos em cena vão estabelecendo, ao longo da obra, uma intimidade na relação palco-plateia — e tal relação acaba por ser deshierarquizada no final, quando “Aquilo que meu olhar guardou para você” se abre para o convívio e, de um certo modo, para a história dos espectadores, estes outros.

O que se evidencia é a beleza das pequenezas do cotidiano. O que pode emergir de situações simples; das relações pessoais comezinhas. São Paulo é o universo da ação, com este olhar de fora sobre essa enorme cidade, que por vezes acizenta e massacra nossas subjetividades. Mas a cidade de fora é só parte do assunto; o Magiluth fala das — e para as — cidades de dentro de cada um de nós.

São homens que brincam, que brigam, que amam, que choram. É sobre memória, sobre desejos e sobre afetos. Evidenciam-se os tantos masculinos possíveis na presença tão aberta dos cinco atores em cena. A homossexualidade está em alguns fragmentos; na maioria, o que transborda é a homoafetividade. Homens que se permitem a criancice do jogo, se permitem apaixonar-se, desapaixonar-se; a pureza e a complexidade do sentir.

Aquilo que meu olhar guardou para você
Giordano Castro em “Aquilo que meu olhar guardou para você” / foto: Blenda Souto Maior

Com toda a operação técnica realizada de dentro da cena, a encenação constrói-se no fazer dos atores. Há um espaço determinado por fitas no chão, mas ele mesmo é desfeito e refeito; respeitado e ignorado. Ancorada fundamentalmente no trabalho de interpretação e na potência da construção de narrativas imagéticas a partir desta, “Aquilo que meu olhar guardou para você” faz uso de poucos elementos cenográficos. E em descobertas que, quando vistas no palco, parecem simples, compõem belas imagens — seja com a faísca de isqueiros, seja a composição das lâmpadas coloridas da iluminação.

Na carinhosa construção da interação com o público, um dos momentos mais tocantes do espetáculo: Torres está, desde o início, com um pequeno panda inflável nas mãos. No momento onde se revela o porquê, é possível apreender uma metáfora que parece sintetizar uma ponte entre o teatro, as fotografias e as relações humanas. Ainda que seja doloroso deixar uma lembrança material se esvair, nada é capaz de desfazer o registro dela que há dentro de nós.