teatro

mecanismos de salvação

crítica de “Hipocôndrio”, solo de Lucas Heymanns.

Pílulas, pastilhas, colírios, soluções nasais, pomadas e uma aparência decrépita: assim que Hipocôndrio começa, já se sabe que Adriano Leiva Cunha irá morrer. O solo com criação e performance de Lucas Heymanns inspira-se na personagem central de Doutor Fausto, de Thomas Mann. No livro, a vida do compositor Adrian Leverkühn, que recria e atualiza a negociação faustiana, é narrada por seu melhor amigo. No espetáculo de Heymanns, o performer é simultaneamente protagonista e narrador.

Outra diferença fundamental entre o romance e a peça é a ausência da figura mefistotélica na segunda. Adriano Leiva Cunha vê-se constantemente confrontado pelos (poucos) que o cercam. Como se, na solidão daquela figura, envolta por nossa sociedade contemporânea, não houvesse acordo possível para seu reconhecimento como gênio.

Neste sentido, as composições assinadas por Heymanns não se tratam exatamente de obras sacras transcendentais: se tratam de canções perturbadoras dentro do contexto evangélico que permeia a encenação — a pregação, sintonizada em uma emissora de rádio vinculada à Igreja Universal do Reino de Deus, constrói um diálogo interessante com o espetáculo.

A composição corpóreo-vocal de Heymanns, com preparação corporal de Carol Figner (e amparado também pela orientação de maquiagem de Carol Pires), traz à cena não apenas uma figura moribunda — apesar de sua juventude — mas escancara também sua batalha interna. Se Leverkühn intencionalmente contrai sífilis para alcançar a genialidade, Leiva Cunha sente-se amaldiçoado por sua doença jamais diagnosticada.

Lucas Heymanns em “Hipocôndrio” / foto: Cristiano Prim

Em Hipocôndrio, o que se constrói é a narrativa de um homem que, cercado de tantas angústias, busca em diversos lugares mecanismos de salvação. No centro da obra estão, lado a lado, religião e indústria farmacêutica: em uma quase divertida imagem-síntese, o protagonista coloca uma pastilha de Redoxon no copo d’água separado para o momento da oração. Também, o canto gregoriano composto de nomes de medicamentos ressalta este olhar salvacionista da procura de sentido para a vida.

Este ser irremediavelmente solitário parece buscar em bulas de remédio e pregações pastorais respostas milagrosas para o existir. Ainda que o discurso se elabore a partir desta figura extrema, a atmosfera angustiante construída por Heymanns — sua partitura de ações repetitiva e incessante na lida com os remédios é desesperadora — acaba por possibilitar um grande campo de reflexão acerca de questões contemporâneas.

Há um misto de fascínio com o mistério, que beira o anticientificismo, e um entendimento de que certas respostas também podem estar nas ciências. No duplo personagem-narrador concebido por Heymanns emerge uma intenção brechtiana com grande potência. Dialética, permite ao performer colocar-se como o amigo que observa e comenta as ações de Leiva Cunha. E, por compor primorosamente a personagem, mantém o espectador profundamente conectado com esta atormentada figura.

Partindo do embate entre impulsos daimônicos, patologias misteriosas e a complexidade da vida, Hipocôndrio atinge a subjetividade do público ao operar uma espécie de memento mori. Ao mesmo tempo, situando a narrativa no contemporâneo, joga com a angústia que nos aflige; com o desencanto. Não há remédios prescritos para as dores do mundo.

Lucas Heymanns em “Hipocôndrio” / foto: Tomás Tancredi