teatro

adeus, glória!

crítica de “Fim”, com direção geral de Felipe Hirsch e textos de Rafael Spregelburd.
foto: Elisa Mendes

No programa de “Fim”, há o registro de um generoso diálogo entre Felipe Hirsch e Rafael Spregelburd — respectivamente, diretor e autor da obra. Em um dado momento, Hirsch cita uma frase presente em “O Fim da Arte”, um dos capítulos do espetáculo; Spregelburd comenta, então, sobre a origem da arte e sua estreita relação com a morte.

Ao longo dos séculos a morte passou a ser vista de maneira mais asséptica e distanciada não apenas pela arte, mas pela sociedade como um todo. Memento mori — “lembre-se de que você vai morrer”: a expressão latina pode ser encarada quase como insólita nos dias de hoje. E talvez esteja no confronto do desejo de eternidade com a concretude do efêmero o cerne de “Fim”.

Compreender a finitude enquanto parte natural tanto de indivíduos quanto de ciclos é um desafio que muitas vezes resulta angustiante ou desesperador. Lidando com macro categorias, a obra de Hirsch carrega um discurso amplo, por vezes difícil de definir. O papel da arte — e mais especificamente, do próprio teatro — frente ao contexto atual parece emergir enquanto central. É, como o diretor afirma no início da conversa com Spregelburd, “uma obra bastante política, ainda que metafórica”.

Os quatro quadros anunciados — “O Fim das Fronteiras”, “O Fim da Arte”, “O Fim da Nobreza” e “O Fim da História” — podem ser vistos de maneira isolada, mas inevitavelmente postos em sequência transbordam e friccionam-se uns com os outros. Na direção de arte de Daniela Thomas e Felipe Tassara, os elementos cênicos também geram essa impressão de sobreposição, quase literal, entre os capítulos na manutenção da presença de certos móveis no palco.

A cenografia, pendurada em cordas com seus contrapesos aparentes, já na abertura da cortina constrói uma poderosa imagem inicial. Uma suspensão de toda a materialidade reverbera não apenas enquanto uma interessante elaboração cênica; mas efetivamente a impossibilidade de organizar concretamente as reflexões de forma lógica e concebível em resposta ao tortuoso contexto.

Em comum aos quatro capítulos está a lida com o contemporâneo. Suas narrativas tensionam teorias e a observação do real, e “Fim” formula paródias que refletem o que parece ser uma dissociação entre certas práticas e pensamentos e a realidade em si. E as frustrações, angústias e sem-sentidos que emergem destas possíveis alienações — sejam elas observadas em referencial individual ou social.

Logo no primeiro quadro, uma expectativa frustrada. Há uma imagem positiva acerca de um fim das fronteiras. A formulação de uma aldeia cooperativa global é destroçada pelo discurso bilíngue de Renato Borghi — que, cabe ressaltar, apresenta uma energia admirável em cena; como se os anos de experiência só o rejuvenescessem — e a catastrófica “tradução” feita por Magali Biff. Até o painel onde o público está habituado a ler legendas toma partido e torna-se um divertido comentador da situação. No lugar de um utópico mundo sem nações, a consolidação de um mercado global. Nas falas de Borghi é possível identificar uma narrativa de que a colonização das Américas ressoa como espelho de nossos tempos.

E a escolha da canção “Cambalache”, composta num distante 1934, parece falar diretamente aos nossos tempos em suas crises generalizadas — sejam as de valores, políticas, de representação, econômicas; enfim. E também é delas que trata o espetáculo. Em “Fim”, essas categorias à beira da extinção se colocam em xeque e são obrigadas a considerar o que vem depois do abismo; a crise também é uma fronteira a ser estabelecida — e, talvez, superada.

No quadro seguinte, Rodrigo Bolzan e Amanda Lyra trazem para a mesa o conflituoso embate entre crítica e arte — que transborda, de certo modo, para a distância academia — sociedade. A restauração do “Ecce Homo” feita por Cecília Giménez — o “Potato Jesus” — se torna o centro de um extenso debate. Seria a assunção de que as boas intenções de Giménez em sua ação de restauro — corroboradas por seu apreço à pintura — tornam o antes pouco significativo quadro uma obra de arte “O Fim da Arte”?

Há uma curiosa transformação durante o capítulo no discurso que Lyra defende. Ao dialogar apenas com Bolzan, seu par dentro de um programa de “História da Arte” dentro de alguma instituição de ensino, ela reflete acerca das fronteiras do que pode ou não ser considerado arte. Neste sentido, uma dupla operação pode ser apreendida na encenação. Simultaneamente, o que está em jogo é a autoridade garantida àqueles que podem ou não conferir a algo — seja um quadro ou uma ação — o estatuto de obra de arte e também o rebaixamento do que significa a arte em nosso mundo.

Como valorar a arte contemporânea quando compreendida dentro de novos horizontes? A cultura memética se consolida cada vez mais; o que cabe ao crítico frente a isso? Enquanto à sós com outro professor, a personagem de Lyra parece de fato angustiar-se frente ao que falar, ao que pensar; a como responder aos questionamentos de alunos mais jovens.

No entanto, quando chega o aluno com seu pai — Vinícius Meloni, em ótimo trabalho, e Borghi — sugere-se que todas as inquietações da professora eram oriundas da tese de um estudante. E nesse momento, ela volta à aliar-se diretamente com seu semelhante; mais do que questionar-se acerca do próprio fazer, interessa defender seus lugares e postulados.

Ao achincalhar a reflexão do aluno, seu pai versa sobre a problemática de se medir uma fronteira. No causo contado, Espanha e Portugal decidem, separadamente, calcular suas fronteiras. Obviamente, o resultado é muito diferente — “é preciso uma matemática elástica para medir uma fronteira ou para entender Portugal”, afirma o filho. Mais do que lamentar por um possível fim da arte, o que ressalta é a reflexão — não respondida — acerca de quais réguas podem (ou devem) ser usadas para não só a valoração da arte contemporânea, mas para seu reconhecimento em si.

O que é arte, ou ao menos como uma camada social a observa, é temática presente também no quadro seguinte. “O Fim da Nobreza” revela de maneira ácida os hábitos de uma categoria que busca incessantemente em tentativas reacionárias salvaguardar o próprio status quo. A deliciosa presença silenciosa de Danilo Grangheia como a mãe da condessa (Biff) ressalta a decrepitude moral desta “casta”.

Sua brutalidade é revelada na lida com artistas contratados para uma exibição em uma festa. A completa dissociação desta nobreza com a realidade reverbera de modo gritante a miséria do imaginário de nossa dita elite. Assim como o estado de miséria de muitos artistas. Na exagerada alienação da anfitriã, pérolas incessantes surgem com sua completa incapacidade de formular que a drag queen Glória é o performer Alex (Bolzan).

Como se a potência transformadora da arte não fosse o bastante para salvá-la de sua própria desgraça; como se a arte fosse o violento truque exibido pelo conde. Na ausência completa de uma afetividade real entre aquelas pessoas, resta um deserto do desamparo. O fim da nobreza, infelizmente, não é o fim de uma classe dominante. Com a verdadeira nobreza, foram-se, entre tantas coisas, também os mecenas.

Entrando verticalmente no campo da arte teatral em si está o último quadro — “O Fim da História”; que desenvolve-se inevitavelmente para uma reflexão sobre o fim do teatro. Evoca-se a metateatralidade pra discutir-se o que é feito com as histórias no mundo de hoje. A operação contemporânea de diversos grupos de buscar em obras clássicas apenas o que lhes interessa para dialogar com o contexto atual pode servir de metáfora para procedimentos escabrosos que nos cercam. Propostas revisionistas obscuras, além da pura e simples distorção de fatos que ocorreram, tiram a letra maiúscula de História e passam a reescreve-la da maneira que for conveniente.

Nos ensaios de um grupo medíocre, como somos levados a entender, Tchekhov é a base de um trabalho que não se sabe bem no que vai resultar. Em certo momento, é dito que todo mundo já montou essa peça. E eles se perguntam por que eles não conseguem. O fim é mais uma vez, aqui, retrato da impotência de nossas formas na lida com o que se apresenta ao nosso redor.

Um teatro salvo de um incêndio não pode ser salvo da realidade externa que o sufoca cada vez mais. Aqueles fantasmas de um tempo — de hoje — buscam incessantemente organizar esteticamente seus discursos. Pouco resulta; muito se esvazia e elementos já criados anteriormente são evocados. Neste sentido, ainda que na corrida pelo espaço de olhos fechados de Grangheia pareça haver uma intenção de imperfeição contida na paródia, não deixa de ser bela a citação coreográfica de “Café Muller”, de Pina Bausch. A compreensão de que não é sempre tão necessário ser original talvez sirva para elevarmos novamente a história à sua importância primeira.

A presença de Blackyva na cena final é interessante e pode servir como crítica à própria obra. O único corpo negro e trans do elenco se destaca em duas intervenções pontuais — como jovem estudante em “O Fim da Arte” e neste momento, como um entregador que entra no antigo edifício teatral salvo do incêndio. É compreensível que frente a um experiente elenco jovens artistas — assim como Blackyva, Sarah Rogieri tem poucas participações (ela também assina a assistência de direção e pesquisa do espetáculo) — sejam menos utilizados pela encenação. Ainda assim, falando em tantos fins e crises, é interessante observar este dado.

Em sua apoteose, “Fim” deixa o público com uma dúvida: como será o fim do Brasil? E porque insistimos tanto em sua manutenção, visto que talvez seja o momento de entender que sim, que se extinga este estado das coisas para que o novo possa de fato surgir. O espetáculo de Hirsch e seus Ultralíricos é potente em todas as suas camadas. A encenação se completa no crescente acompanhamento musical de Maria Beraldo e Mariá Portugal, na iluminação de Beto Bruel, nos figurinos de Veronica Julian e Diogo Costa e nas coreografias de Georgette Fadel.

Entre tantos fins, talvez só reste o adeus. E compreender que o silêncio de Deus se manteria em mais uma extinção, assim como na dos dinossauros. O que interessa é o que se extingue. E como se extingue. Como resistimos, e como nos extinguimos.