teatro

enfrentar tempestades, navegar o próprio oceano

crítica de “Quarto 19”, a partir do conto de Doris Lessing, com atuação de Amanda Lyra e direção de Leonardo Moreira.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Uma narrativa de um fracasso. Um fracasso da inteligência. É assim que Amanda Lyra introduz a história que irá contar em Quarto 19. A partir do conto To Room Nineteen de Doris Lessing, publicado pela primeira vez em 1963, o público é apresentado à vida de uma protagonista sem nome. As decisões racionais e sensatas a fizeram escolher se casar são o ponto de partida para um denso relato que acompanha a trajetória desta mulher em busca de si própria; de sentido para a vida.

Na acertada direção de Leonardo Moreira, Lyra é narradora e personagem. Há uma aparente liberdade em suas ações e falas, mas também nota-se uma precisão impressionante no trabalho da atriz. Reafirmando o já visto em seus trabalhos recentes — destaca-se sua cena com Rodrigo Bolzan, Vinicius Meloni e Renato Borghi em Fim, de Felipe Hirsch e a construção da prostituta Yvette em Mãe Coragem, de Daniela Thomas — sua presença cênica e domínio do palco é impressionante.

O monólogo, que estreou em 2017, tem como foco central o texto de Lessing, traduzido (e possivelmente adaptado, ainda que isso não conste na ficha técnica) por Lyra — idealizadora do projeto. A construção da intérprete dialoga com as demais camadas da encenação para potencializar a angustiante narrativa — que não deixa de ter doçura, leveza e humor — e sua atuação conduz o público por toda a trajetória desta mulher. A iluminação de Marisa Bentivegna propõe recortes sutis, alinhados à criação de som de Miguel Caldas, onde a movimentação de Lyra joga com diferentes incidências de luz e sombra.

Amanda Lyra em “Quarto 19” / foto: Cris Lyra

Na construção do espaço cênico, há uma acertada escolha em criar uma perspectiva — que se mostra, muitas vezes, ausente para a protagonista — na angulação do cenário que é também assinado por Bentivegna. A escolha pela cor verde dialoga com o conto, mas até que isso seja revelado ao público, é possível vislumbrar um cromaqui; um fundo infinito de lugares possíveis, sejam os narrados pela protagonista ou os inimagináveis por ela.

A poltrona salta aos olhos como único objeto concreto. Nas idas e vindas de Lyra, a impossibilidade de, nem que por um instante, parar, sentar e apenas estar ali. Uma certa tensão, muito bem-vinda, acumula-se nestas aproximações e distanciamentos. A composição cênica desenhada de forma fluida nas andanças da protagonista constrói sensações e os diversos espaços.

Estabelece-se então todo um universo desta mulher. O recorte é burguês, mas há um trânsito sábio entre as frustrações do indivíduo, da mulher que fica em casa cuidando das crianças e lidando com a empregada, e o contexto social que é pano de fundo para os relacionamentos que se constroem. Assim, a suposta inteligência que estrutura aquele casamento, a racionalidade que sempre o sustentou passa a ruir frente à realidade, aos desejos e à procura de quem se é. Uma busca pelo “apenas ser”. Por um “eu” que exista além de funções, papéis, relações. A metáfora apresentada no início desenvolve-se de maneira inteligente ao longo da obra: não há sensatez no mundo que possa construir uma embarcação que sobreviva às tempestades nos oceanos de dentro e de fora.

Amanda Lyra em “Quarto 19” / foto: Cris Lyra

O indizível é uma presença constante. Compartilhado com o público, impossibilita um franco diálogo com seu marido — o que talvez pudesse transformar aquela e tantas outras relações da personagem. A partir destes não-ditos, a complexidade da situação se desdobra ainda em outros problemas, mentiras, descompassos. Então, o insuportável daquela existência permanece em uma crescente, se afastando cada vez mais da possibilidade de resolução. E ainda que se possa inferir o desfecho, não deixa de surpreender — talvez arrebatar — a cena final na interpretação de Lyra.

Trata-se de uma teatralidade que parte e se sustenta em uma narrativa do cotidiano, neste encontro potente entre intérprete e diretor. Na fala da protagonista, a ideia de que manter as mãos ocupadas podem afastar o perigo. Nas ações de Lyra, as mãos que contam e as mãos que tensionam. Narrar, vivenciar, o “ela” e o “eu”; doçura e peso.

Da sensatez inicial à perturbação do delírio, a protagonista de Quarto 19 passa pela efêmera (ou, até, ilusória) emancipação trazida pela solidão. Este tensionamento entre as expectativas e construções do feminino e a busca pelo entendimento sobre quem se é; o que é ser mulher neste recorte, neste contexto que se impõe. A tentativa de ir além do construído no olhar do outro apresenta seus perigos; da obra, infere-se o enlouquecimento da personagem. Uma tempestade no oceano de si. A pretensa organização cartesiana, racional e isenta nas relações revela-se tão frágil como um bote em meio aos turbilhões pulsionais que movem a vida.

Amanda Lyra em “Quarto 19” / foto: Cris Lyra