teatro

a desolação da coragem

crítica de “Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht, com direção de Daniela Thomas.

Escrita em 1939, “Mãe Coragem e seus filhos” é um drama político de Bertolt Brecht que conta a história de uma vivandeira, Anna Fierling, que cruza os campos de batalha da Guerra dos Trinta Anos (1618–1648) negociando com as tropas. Conhecida por seu apelido que dá nome à obra, Fierling faz da guerra sua subsistência e desejo de lucro. Acompanhada de três filhos e da carroça onde leva seus produtos, ao final do espetáculo — mas não da guerra — só resta a ela sua carroça.

O papel eternizado por Helene Weigel, companheira de Brecht e posterior diretora do Berliner Ensemble, traz em si as contradições tão presentes na dialética brechtiana. Na estreia, em 1941, a recepção desagradou o autor: o público acabava compadecendo-se da figura de Mãe Coragem, e nesta ação se perdia o caráter crítico pretendido pela obra. As ações da protagonista configuram escolhas eticamente questionáveis; ao mesmo tempo que busca proteger seus filhos da guerra, depende dela para viver.

A complexidade do discurso do espetáculo reside precisamente nos atritos entre as tomadas de decisão de Mãe Coragem, sua ética e suas afetividades — em relação, principalmente, aos três filhos. Nesta fricção, emerge a conscientização de que as guerras não se tratam de meras fatalidades as quais devemos nos acostumar e adaptar, mas sim produtos da ação de sujeitos e coletividades que trazem consigo terríveis consequências.

Na guerra desenrola-se não apenas um processo de desumanização mas também de suspensão — e inversão — de valores morais. Se logo no início Eilif, o filho mais velho, acaba alistando-se ao exército e é celebrado ao lado de seus superiores poucas cenas depois por seus atos de bravura, durante um breve período de paz ele é condenado pelas mesmas ações. Como se a valentia do herói de guerra não passasse de covardia à luz de uma sociedade (momentaneamente) pacífica.

“Mãe Coragem” / foto: Jennifer Glass/Fotos do Ofício

A contradição das escolhas da protagonista evidencia-se na morte de seu filho Queijinho. Ele, ingênuo e honesto, leva às últimas consequências sua tarefa de proteger o cofre com o dinheiro do regimento. Por suas ações, é capturado. Sua mãe tem a chance de libertá-lo por meio de negociações intermediadas pela prostituta Yvette. No entanto, salvar o filho a faria perder sua carroça.

Restará apenas Kattrin, a filha muda, para ajudá-la a arrastar seus produtos pelos campos de batalha. Por pouco tempo: ao alertar um vilarejo do perigo iminente de uma invasão inimiga tocando um tambor, acaba também assassinada. Mãe Coragem segue com sua carroça, agora sozinha, ainda vivendo da guerra.

A Trupe Coragem, que assina a presente montagem em cartaz no Sesc Pompeia é encabeçada por Bete Coelho, no papel-título, e Daniela Thomas, na direção (também assina o cenário ao lado de Felipe Tassara). A tradução é inédita, feita diretamente do alemão por Marcos Renaux, com alguns cortes.

“Mãe Coragem” / foto: Ariela Bueno

Não há concessões feitas no sentido da aproximação de “Mãe Coragem” à realidade brasileira. Há até a escolha por manter certo distanciamento, percebida desde a duplicidade da figura da narradora — Carlota Joaquina e Luisa Renaux apresentam as cenas em português e também em alemão. É como se a encenação de Thomas nos lembrasse a todo momento que aquilo é uma fábula antiga e remota, cabendo ao público realizar sua leitura particular sobre os diálogos que se constroem com os tempos que correm.

O espaço cênico é concebido de modo que uma mesma cena é vista à diferentes distâncias por cada segmento da plateia. O que emerge na enorme área de ação é a desolação de um deserto, ideia reforçada pelo material que o cobre, espécie de lama escura. Os poucos elementos cênicos — além da carroça, há algumas flâmulas e as bandeiras que anunciam o número das cenas, mas não muito mais do que isso — efetivam uma imensidão vazia. É como se toda a ação se desenvolvesse em campos dilacerados por onde a guerra já passara e destruíra tudo.

A iluminação de Beto Bruel recorta a cena e a preenche de certa crueza pastel. Efeito semelhante se verifica nos figurinos esfarrapados de Cassio Brasil. A encenação, tal qual uma sociedade em guerra, tem suas estruturas em permanente construção e reconstrução, com seus encaixes expostos e mecanismos aparentes. A utilização de efeitos estéticos espetaculares — como a chuva que cai sobre Coelho — parece enfatizar a diferença de dimensões entre o indivíduo e as forças que agem sobre ele. Em metáforas que reiteram a desolação que permeiam os acontecimentos de “Mãe Coragem”, o dado de humanidade daqueles sujeitos é massacrado por seus contextos.

Bete Coelho em “Mãe Coragem” / foto: Ariela Bueno

Assim, não se revelam na obra apenas as mazelas das guerras como eventuais períodos turbulentos e cruéis de nossa história, mas a percepção do que se passa nestes momentos como mera explicitação de comportamentos já presentes na sociedade. A difícil luta pela sobrevivência e a busca por proteger os seus se contrasta à ganância e a avareza na figura de Mãe Coragem.

Esta dialética se mantém presente a todo instante na complexa e carismática atuação de Coelho. Atriz de talento inquestionável, constrói a protagonista de maneira ao mesmo tempo sutil e poderosa. Em um elenco equilibrado, Coelho destaca-se sem ofuscar as demais interpretações. No desenho que compõe em sua interpretação, deixa o público suspenso entre compreender suas motivações e repudiar suas ações.

Também chama atenção a Kattrin de Luiza Curvo. A mudez da personagem demanda uma construção corporal expressiva, e Curvo apresenta um trabalho sólido e de muita qualidade neste sentido. Impressiona a potência de sua interpretação, mesmo nas cenas que ocorrem mais distantes do espectador. Amanda Lyra completa a excepcional parte feminina do elenco com sua debochada Yvette. É bem-vinda a comicidade de Lyra, que beira o escracho, em uma encenação tão sóbria.

Luiza Curvo em “Mãe Coragem” / foto: Jennifer Glass/Fotos do Ofício

Mesmo com alguns cortes no texto, “Mãe Coragem” segue sendo um espetáculo longo, com cerca de 2h30. As escolhas de Thomas conferem ainda maior densidade ao texto brechtiano. A desolação é exigente: demanda engajamento e atenção do público. Neste quesito, é importante a presença dos músicos em cena, sob direção musical de Felipe Antunes, a fim de manter o bom ritmo da encenação.

O registro escolhido para a execução das canções originais de Paul Dessau seguem as premissas brechtianas da serventia da música no teatro — não são os personagens que cantam, mas sim seus atores, comentando a ação para a plateia. Na necessária microfonação do elenco, a eficiente engenharia de som faz com que o áudio chegue de maneira cristalina nas várias caixas posicionadas em frente às plateias. No entanto, causa certo estranhamento, visto que perde-se aí a potência que a encenação confere às distâncias e ao confronto das dimensões do espaço e dos atores.

No espetáculo, não se trata apenas da guerra antiga como motivo para um cenário desértico e o decorrente massacre do indivíduo por seu contexto. A sociedade segue operando na manutenção de circunstâncias perversas que insistem em acabar com a reserva ética presente em cada ser humano. Não há espaço para súbitas tomadas de consciência nesta desolação da coragem. Entre a paz que a levaria à falência e a guerra que levou seus três filhos, Mãe Coragem escolhe seguir puxando sozinha sua carroça.

Bete Coelho em “Mãe Coragem” / foto: Ariela Bueno