teatro

paisagens linguagens

crítica de Língua Brasileira, uma peça dos Ultralíricos e Tom Zé.

“Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente. E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em apreendê-la.” (O som do rugido da onça, Micheliny Verunschk)

Língua. Som, voz, palavra, escuta, cultura, registro. Matéria viva que constrói e é construída pelos tempos. Atravessada por povos e territórios em movimento. Por fluxos de comércio, guerras, colonizações, resistências e insistências. Tom Zé canta de mares-algarismos; o Coletivo Ultralíricos, de Felipe Hirsch, leva à cena universos-alfabetos: Língua Brasileira nasce da música homônima do tropicalista moçárabe e convida o público a uma travessia de séculos e séculos entre documentos e canções.

Há algo na encenação que ecoa e inquieta. Como a língua, viva, ela pulsa em suas interpretações; em seus discursos, caminhos e descaminhos. Língua Brasileira começa e se encerra com Georgette Fadel, em cena, como que aprendendo a dizer em línguas de povos originários da América do Sul: do mito da fonte da fala dos Mbyá-Guarani às palavras que resistem dos Apiaká.

Ao mbya-guarani, tupi antigo, nheengatu e apiaká de nossos povos originários somam-se línguas africanas, como fon, iorubá e quimbundo, que surgem em quadros ao lado das línguas que antecederam o português – desde grego e latim até o protoindo-europeu – e de outras que dele surgiram, caso do patuá macaense e do crioulo cabo-verdiano. O público ainda ouvirá textos em galego, árabe, moçárabe e em nórdico e islandês antigo.

Mas a direção geral de Hirsch não constrói uma Babel incompreensível; muito pelo contrário. Com dramaturgismo e consultoria geral do professor, tradutor e escritor Caetano Galindo, Língua Brasileira constrói uma trajetória consistente de paisagens linguagens na cena. A pesquisa da obra contou com a presença de 36 consultores nas mais de vinte línguas vistas em cena. Neste sentido, é fundamental ressaltar a qualidade técnica de seus intérpretes (Amanda Lyra, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Laís Lacôrte, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan), que dão voz e corpo às tantas línguas e suas diversas cadências e sonoridades de modo impressionante.

Tom Zé assina música e letras, entre trabalhos reconhecíveis e inéditos, compostos especialmente para Língua Brasileira (o artista pretende lançar um álbum, com direção artística de Hirsch, com as composições) e Maria Beraldo é a diretora musical. As canções estão tão simbiotizadas ao desenvolvimento da peça, que  Tom Zé já disse que Hirsch considera que o espetáculo é que é uma trilha visual do disco.

A dramaturgia da encenação, assinada por Coletivo Ultralíricos, Hirsch, Juuar (também diretora assistente) e Vinícius Calderoni, segue de certo modo a estrutura já presente nas obras que antecedem Língua Brasileira dentro da chamada Tetralogia involuntária dos Ultralíricos (Puzzle, A Tragédia e Comédia Latino-Americana e Selvageria).

Aqui, porém, parece haver uma dimensão outra; talvez pelo entremear das canções de Tom Zé, talvez pela materialidade da linguagem estar amparada quase exclusivamente na relação entre intérpretes, com seus corpos, gestos e vozes, e as palavras, nas sonoridades mais ou menos compreensíveis, legendadas ou não, que dançam e ocupam palco, plateia e imaginário.

Na Tetralogia, o foco sempre esteve na literatura; na palavra de escritores brasileiros contemporâneos (Puzzle), latino-americanos (Tragédia e Comédia) e textos e documentos ligados à história do país (Selvageria). A direção de arte de Daniela Thomas e Felipe Tassara, dupla presente nas quatro criações, estabelecia-se como um importante dispositivo cênico: papeis em branco, blocos imensos, sacos de lixo em incessante queda… Em Língua Brasileira, o palco quase nu recebe em seu centro um quadrado de partículas pretas (similar ao que cobria a imensa arena de Mãe Coragem, dirigida por Thomas) e, ao fundo, projeções.

Os atores e atrizes pisam descalços ali naquele espaço que ora é terreiro de esperanças, ora é a cinza que sobrou da devastação – pois é também sobre terra arrasada que se conta e canta. Para falar da história da língua brasileira é preciso pensar sobre as línguas marginalizadas pelo processo colonial – os glotocídios, como comenta Hirsch

Há uma tensão inerente e inevitável à essa abordagem histórica, destes tempos e narrativas que fizeram de tantas línguas essa múltipla e ampla Língua Brasileira. A cena é sóbria; até mesmo os adereços são todos pretos, monocromáticos. São, muitas vezes, representações ligadas às línguas e origens dos textos interpretados, mais ou menos reconhecíveis. Sua utilização trafega por essas referenciações, mas também está à serviço da crítica, ora ácida ora debochada, presente em diversos momentos da encenação.

Nas projeções também se vê pouca saturação; além das legendas, um big-bang de letras compõem galáxias de alfabetos – a imagem em movimento parece remeter à capa de, precisamente, Galáxias, de Haroldo de Campos, presente no roteiro da obra.

Aliás, Campos, belamente interpretado por Conceição, é um dos autores que nenhuma legenda identifica. É o mesmo que acontece com José Agrippino de Paula e sua PanAmérica, texto apoteótico de Língua Brasileira. De certo modo, a direção de Hirsch constrói hierarquias tanto na compreensão quanto na referenciação do material presente na dramaturgia.

O público tem acesso ao roteiro completo no rico e denso programa de Língua Brasileira, é verdade, de modo que basta consultá-lo para lembrar – ou conhecer – a fonte de determinados trechos. Porém, no caso recorrente da ausência de traduções projetadas, trata-se nitidamente de uma escolha; um convite deliberado dos Ultralíricos de se deixar levar pelas imagens construídas na cena e nos ouvidos.

Assim, está imbricada na estrutura do espetáculo essa variação da atenção, muitas vezes deslocada para outras sensações que não o conteúdo daquele fragmento. O que estamos ouvindo? O que se entende, o que se vê, o que se percebe? Nessas paisagens linguagens há um quê tropicalista na abordagem do caldeirão de línguas, povos, violências e travessias que nos trouxeram até a Língua Brasileira. Não por acaso, das entranhas do peixe cósmico, a tropicália é lançada com o refrão de Tropicalea Jacta Est na apoteose da encenação.

Da língua à língua o caminho é povoado de narrativas das opressões físicas e simbólicas que atravessam a história. Em meio aos documentos que transportam o público entre séculos de civilizações e barbáries, as músicas de Tom Zé parecem lançar o olhar (e os ouvidos) para outros possíveis. A singularidade do compositor, aqui, reside exatamente nessa força de convocar utopias e evocar futuros. As canções estão sempre acompanhadas de legendas, um lembrete à plateia de que o conteúdo das letras é dramaturgia, elas fazem parte do mosaico construído em Língua Brasileira, com suas reinvenções míticas, por vezes quase idílicas, de tantos tempos.

Antes do espetáculo e no entreato, um painel de Thiago Martins de Melo cobre todo o palco; é só quando ela sobe ou desce que o público percebe a sua imensidão. As cores de Tupinambás, Léguas e Nagôs guiam a libertação de Pindorama das garras da quimera de Mammón são as únicas vistas nas quase três horas da encenação; e elas bastam. A obra do artista plástico é, de algum modo, a síntese de tudo que está e diz em Língua Brasileira. Um confronto profundo, belo e triste, entre história e utopia.

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ficha técnica
Língua Brasileira, uma peça dos Ultralíricos e Tom Zé

música
Tom Zé
direção geral
Felipe Hirsch
elenco
Amanda Lyra
Danilo Grangheia
Georgette Fadel
Laís Lacôrte
Pascoal da Conceição
Rodrigo Bolzan
direção musical
Maria Beraldo
músicos
Fábio Sá
Fernando Sagawa
Luiza Brina
Thomas Harres
diretora assistente
Juuar
dramaturgia
Ultralíricos
Felipe Hirsch
Juuar
Vinícius Calderoni
dramaturgista / consultor geral
Caetano Galindo
direção de arte
Daniela Thomas
Felipe Tassara
iluminação
Beto Bruel
figurino
Cássio Brasil
design de som
Tocko Michelazzo
preparação vocal
Yantó
design de vídeo
Henrique Martins
assistente de direção e operação de vídeo
Sarah Rogieri
assistente de pesquisa
Adriano Scandolara
direção de palco
Nietzsche
assistente de iluminação
Sarah Salgado
assistente de figurino
Alice Tassara
Marcelo X
operação de luz
Sarah Salgado
Igor Sane
operação de som
Le Zirondi
Lúdi Lucas
design gráfico e assistente de cenografia
Bárbara Bravo
assessoria de imprensa
Factoria Comunicação
Vanessa Cardoso
produção Tom Zé
Neusa Santos Martins
produção primeira fase
Bruno Girello e Ricardo Frayha
difusão Internacional
Ricardo Frayha
assistente de produção primeira fase
Renata Bruel
assistente de produção
Diogo Pasquim
produção executiva
Arlindo Hartz
direção de produção
Luís Henrique Luque Daltrozo