reflexões, teatro

para Glória Pires: sobre não ser capaz de opinar

Oi Glória. Estava vendo agora um pequeno trecho dos seus comentários na transmissão do Oscar de 2016. É bacana ver alguém sendo autêntica – e honesta – na hora de falar sobre uma obra, ou mesmo sobre a premiação como um todo. É raro, até. Não sou capaz de opinar. Acho até uma lição. Mas aí eu vi também você ontem (05/02) no Altas Horas, falando sobre a sua própria trajetória, como um bichinho de tevê – é o jeito que o Serginho descreve. E ali você falou algo que, com todo o respeito, você não era capaz de opinar.

Tem uma importância, mesmo, assim, de formação, de educação. O tempo que as pessoas passam naquela convivência… Hoje não existem mais os grupos de teatro, né? Mas existiam as grandes companhias… Então as pessoas trabalhavam, tinham repertório, era uma vida cultural muito intensa, muito valorizada – e existia todo aquele aprendizado. (Glória Pires para Serginho Groisman no Altas Horas transmitido em 05/02/2022)

Não existem mais grupos de teatro? Puxa vida… Vou falar só de São Paulo, porque é onde eu acompanho a cena. Alguns grupos que existem até hoje estão por aí, literalmente, desde que você estreou na televisão – tipo o Teatro Oficina Uzyna Uzona. Alguns surgiram logo depois, como o importantíssimo Teatro Popular União e Olho Vivo. Nas últimas décadas, então, nem se fala: o meu medo de listar aqui é o medo de deixar companhias fundamentais do teatro brasileiro de fora.

Olhando para fora do meu próprio estado, também temos outras longevas espalhadas pelo país – ficando em alguns exemplos, veja só a trajetória do Grupo Galpão, em Minas Gerais; da Cia. dos Atores, no Rio de Janeiro; da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, no Rio Grande do Sul… 

E pensando nessa coisa da formação, educação, do tempo que as pessoas passam naquela convivência, é legal conhecer todo o movimento do Arte Contra a Barbárie, encabeçado por, acredite se puder, grupos, coletivos e companhias de teatro, que resultaram na formulação e promulgação da Lei Municipal de Fomento ao Teatro na Cidade de São Paulo (entre outros desdobramentos), uma política pública que há duas décadas viabiliza a pesquisa continuada de, veja só, grandes companhias e também o surgimento e estabelecimento de novos grupos de teatro, muitas vezes egressos de ações formativas e instituições públicas e privadas de ensino das artes cênicas. 

A produção coletiva em teatro nunca deixou de existir, Glória. O que aconteceu foi a reformulação constante de nossa sociedade, ainda mais considerando os horrores das últimas décadas do século vinte, desde a ditadura, sua repressão e censura, até a compreensão neoliberal da cultura enquanto mercadoria, da aplicação de uma lógica de mercado sobre a produção artística que, grosso modo, ainda vigora nos tempos que correm – e são tempos nefastos os que correm.

Assim, seguimos – e aqui me incluo, enquanto crítico teatral, neste nós – buscando no horizonte as formas de resistir, existir, criar e conviver, de maneira ética e propositiva, enquanto artistas e pessoas de teatro neste mundo inóspito que é o do capital. Talvez as grandes companhias, do jeito que você viu, ou imaginou ter visto, já não mais existam mesmo; e que bom, já que olhando para trás e à distância encontramos tantas idiossincrasias e problemáticas em certos modos de produção.

Qual foi a última vez que você foi ao teatro, Glória? Sei que nos últimos anos ficou bem mais difícil, e eu mesmo estou agora, aos poucos e com muito zelo, matando essa saudade de ficar em silêncio diante daquilo que não sou capaz de dizer por algumas horas – e depois, pesquisando, elaborando e esperando, colocando em palavras o que calou em mim nas críticas que ouso, teimo e insisto em escrever. Aliás, até mesmo na crítica teatral brasileira estamos em bando: convido você a dar uma olhada no Dossiê Biocrítica, do longevo e frutífero Teatrojornal – Leituras de Cena, onde muitas dessas nossas casas, que de algum modo torto e bonito são também grupos teatrais, falaram um pouco sobre suas trajetórias.

Mas, voltando: não sei o que você tem visto, Glória. Em São Paulo, as coisas estão voltando, e nas últimas semanas pude assistir a Ãrrã, do Empório de Teatro Sortido (um grupo de teatro), a Língua Brasileira, do Coletivo Ultralíricos (um grupo de teatro), ao Estudo nº 1 – Morte e Vida, do Magiluth (um grupo de teatro) e a Sem Palavras, da companhia brasileira de teatro (adivinha? um grupo de teatro). Sem contar com tudo aquilo que não vi – não sou capaz de opinar sobre tudo, mas é parte importante do meu ofício assumir também em meu projeto crítico suas ausências.

E aqui estou só falando do primeiro mês de 2022. Aliás, há poucos dias, a Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) premiou uma publicação chamada Teatro de Grupo na Cidade de São Paulo e na Grande São Paulo: Criações Coletivas, Sentidos e Manifestações em Processos de Lutas e de Travessias. Ali constam registros e narrativas de 194 coletivos da grande São Paulo. Acredito que todos eles existam.

Resolvi “te” escrever, Glória, porque você tocou num ponto que é muito caro para mim e para a existência do ruína acesa, onde publico este texto: meu objeto de fruição, pesquisa e escrita é fundamentalmente o que chamamos de sujeito teatro de grupo. É o recorte sobre o qual meu olhar é lançado na maior parte do tempo – mesmo em espetáculos que não se configuram precisamente como resultados de processos de coletivos ou companhias, são essas as escolas dos artistas proponentes das obras.

A importância de formação, de educação, do tempo que as pessoas passam naquela convivência ainda está aí. As pessoas seguem trabalhando, construindo repertório(s), seguem tendo uma vida cultural muito intensa. O aprendizado também existe. E o que reverbera da tua fala, Glória, não é nem que toda essa existência não seja mais valorizada: ela só não é mais vista. Não é mais percebida. O que não se enquadra enquanto produto cultural é relegado às margens, é invisibilizada, aos poucos apagada.

E isso é muito triste, Glória. Porque hoje, na realidade absurda do nosso país, o artista é cada vez mais tido como inimigo. Como vagabundo. Você deve saber que não é nada disso. Mas uma fala dessas, que me pareceu até lançada ao ar, incerta, imprecisa – e que aqui reafirmo que não tem embasamento nenhum – pode ser mais munição aos que tanto nos atacam.

Nesse sentido, é tão importante contar com atitudes de pessoas com a tua visibilidade, com a tua trajetória, para fortalecer essa caminhada. Esse texto, caso ele chegue até você, o que acho difícil, é no fundo um convite a estar junto. A procurar saber sobre o que está acontecendo ao seu redor, ao nosso redor, na cena contemporânea do teatro, seja aí no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo ou em qualquer lugar desse imenso Brasil – que ainda pulsa vida, arte e cultura. Aqui estamos, aqui estão muitos. Há todo um mundo que existe, que deveria ser visto, reconhecido, valorizado. Até porque muitas vezes é nele que a mudança está acontecendo. Vamos ao teatro, Glória. Vamos ver os grupos de teatro. Eles estão por toda parte.

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]