orgulho, teatro

lugares do falo, lampejos de um devir

crítica de “Feminino Abjeto 2 — O vórtice do masculino”, com direção de Janaina Leite.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Nos últimos anos, é possível notar uma efervescência na cena cultural paulistana de obras que colocam em evidência as existências subalternizadas, marginalizadas. Questões raciais, de gênero e sexualidade se desenvolvem em pesquisas éticas e estéticas de diversos coletivos teatrais. Dentro do campo das lutas identitárias, as vozes afastadas da normatividade ecoam nos palcos seus gritos de resistência. Aos artistas cuja identidade está, de algum modo, vinculada aos lugares de poder e opressão, a importância em aliar-se, escutar, caminhar junto.

Porém, há a importância de entender que todo lugar é um lugar de fala: a branquitude, a masculinidade, a cisgeneridade. Assim, parece fundamental um entendimento mais profundo destes lugares hegemônicos dentro das complexidades do contemporâneo. Para tanto, mirar o olhar para si próprio. Como que “outrar-se” e entender que não existem identidades universais e, dessa forma, compreender que privilégios também carregam suas marcas.

Para tanto, tão importante quanto compreender privilégios é sobrepujar filtros sociais concebidos: há de se entender que, mesmo em uma constante busca pela desconstrução de valores opressivos enraizados, pulsões seguem introjetadas e podem se revelar no confronto honesto com nossas memórias e vivências.

“Feminino Abjeto 2” / foto: Michel Igielka

Dando sequência à pesquisa iniciada em Feminino Abjeto, Janaina Leite propôs um segundo núcleo de pesquisa. Se no primeiro o elenco da obra performativa era formado por mulheres e pessoas não-binárias, em Feminino Abjeto 2 — O Vórtice do Masculino são homens — e também performers não-binários — que ganham a cena.

Na caótica obra resultante, narrativas da crueldade do masculino se desenham; quase sempre em relação ao feminino. Há uma tensão constante entre o clichê, a misoginia e as vivências pessoais dos performers. Com um elenco majoritariamente homossexual, outras relações com a masculinidade também emergem, considerando violências sofridas por eles em suas infâncias e adolescências.

Espécie de espelho torto de Feminino Abjeto, é possível considerar as obras como um díptico — são trabalhos independentes mas complementares. Em certo sentido, Feminino Abjeto 2 desvela-se em uma atmosfera invertida de seu antecessor. Enquanto o primeiro se desenvolve em explosões, tendo processos diversos articulando-se como potências de assenhoramento — ainda que não necessariamente em chave positiva — neste Vórtice do Masculino a abjeção é algo não a se apoderar, mas a se purgar.

“Feminino Abjeto 2” / foto: André Cherri

O biográfico, em Feminino Abjeto 2, surge muitas vezes de forma relacional — não na direção do outro, mas partindo do outro em direção aos performers — e o que rompe é a difícil lida com aquele material: o que fizeram, o que foi feito deles e o que eles permitiram que fizessem deles. Nas trajetórias pessoais, desenha-se uma série de possibilidades dentro do “tornar-se homem” e uma impossibilidade de outrar-se. A masculinidade surge como um impedimento não apenas de disrupções de gênero e sexualidade, mas como algo que afeta e circunscreve as possibilidades de ações e pensamentos frente ao outro e ao mundo.

Outra característica determinante de Feminino Abjeto 2 é a essência tribal nas construções cênicas. O masculino é um bando. Logo na primeira cena, com o batalhão militar, o ideal do homem se complexifica nas palavras entoadas. Nos machões filhinhos de mamãe, a imaturidade forma um grupo massificado cuja conduta violenta torna-se a única possibilidade de ação sobre o mundo. Um ódio aos que divergem, aos dissidentes daquela norma autoritária; àquelas e aqueles que ousam questionar um modus operandi de existir.

“Feminino Abjeto 2” / foto: Michel Igielka

As violências também estão nos ritos de passagem — desde aqueles de culturas distantes até os nossos trotes de faculdade — vinculados à construção e manutenção da virilidade como inerente ao masculino. Na ação de trazer estes e outros tantos elementos à cena, Feminino Abjeto 2 recorre ao procedimento do clichê como recurso de esgotamento e exploração crítica dos materiais.

Nesta exposição de lugares-comuns e dados naturalizados, há uma inevitável agressividade e um incômodo gerado no público. No entanto, não fosse assim, soaria falso: a misoginia e o machismo se revelam até mesmo quando lugares simbólicos do feminino são visitados por eles. Paradoxalmente, questões que poderiam ser apontadas como “problemáticas” na obra tornam-se parte fundante deste enfrentamento ao vórtice do masculino.

Um ver-se homem em relação ao feminino oscila entre identificação e repulsa em Feminino Abjeto 2. A imagem da mulher parece estar reduzida à uma fragmentação entre um objeto de desejo ou idolatria e a maternidade. A diretora Janaina Leite acaba se inserindo na cena e neste duplo: é seu rosto em vídeo, tornado peça de figurino dos performers, que apresenta estas presenças femininas, efetivando inclusive a transformação da diva/desejada em mãe.

“Feminino Abjeto 2” / foto: Michel Igielka

É simbólico que quando essa mãe é colocada em um altar, os performers levam como oferendas pedaços dela. Como se sua abjeção fosse uma quase destruição, empilham partes de manequins a seus pés — e por fim, os devoram. A mãe sempre estará lá — mote de Stabat Mater, trabalho atual de Leite— enquanto uma figura em trânsito, de acolhimento, fascínio e também ojeriza.

No decorrer da peça, surgem lampejos de um devir masculino que efetivamente se desloca para compreender suas potências, que anseia escutar seu contexto para, transformando-se, modificar seu entorno. Abrindo mão de certezas e lugares historicamente estabelecidos, o falo pode minimamente deixar de ser o centro e, como seu negativo, surgir o cu como fronteira exploratória e de construção de identidade. Inverte-se a chave e novos esboços podem surgir.

Violências explodem e certezas implodem: não há como sair imune de Feminino Abjeto 2. A obra é intencional e, talvez, também involuntariamente agressiva. Desfilia-se de qualquer pretensão de construir consenso e permite-se mergulhar em um vórtice que não oferece respostas, muito menos soluções mágicas, mas levanta inquietações. E tudo termina em churrasco, cerveja e pagode. Para os vegetarianos, abobrinha.

“Feminino Abjeto 2” / foto: Michel Igielka