retrospectiva, teatro

(anti)retrospectiva 2021

insistente incandescência

Pandemia, ano dois. Incandescência. Começo a escrever este texto como um esforço, um exercício de insistência, registro e memória. Não sei quantas obras assisti em 2021. Não tomei nota. Mas sem dúvida não chega nem perto do ano passado, com 44 textos publicados. Muito menos das setenta críticas de 2019 ou da centena de peças vistas em 2018. Dentre todas as publicações neste site no último ano, figuram apenas catorze reflexões a partir de espetáculos vistos. Seis online, oito presenciais – quatro destas publicadas nos últimos dias.

Seria um absurdo listar aqui destaques, considerando a dimensão da cena paulistana e brasileira e até mesmo internacional, no que diz respeito ao virtual. Esta incandescência é difícil, pois o que emerge na retrospectiva de 2021 é a ausência. O que pode, parafraseando o título de um texto de Kil Abreu, a crítica em tempos de morte? O que pude eu diante do que se apresentou?

Importante dizer que foi um ano de muito trabalho. Entre março e abril, na triste efeméride de um ano de isolamento, realizamos, ruína acesa, Tudo, menos uma crítica e Sesc Pinheiros, o Crítica Isolada. Foram quatro encontros de trocas extremamente ricas com colegas de labuta das mais variadas realidades, de nordeste a sudeste do Brasil (descentralizados, mas ainda assim com tanto a se expandir).

Estando em comissões de seleção, como a do Prêmio Zé Renato (São Paulo/SP) no primeiro semestre e do Funcultura Geral (PE) no segundo, me peguei pensando continuamente sobre crítica e curadoria, ética e estética, criação e reflexão. Foram três oficinas de crítica ministradas virtualmente (no Sesc São Caetano, na SP Escola de Teatro e junto ao III FESTÃO) onde pude compartilhar aprendizados e questionamentos, assim como encarar novas dúvidas e tatear descobertas e fazeres junto a tantas e diversas pessoas.

Sou imensuravelmente grato a esses encontros. Aos meus pares, na crítica, que insistimos, mesmo diante de tantos vazios e dificuldades, especialmente. Acompanhando os projetos de crítica publicados no Horizonte da Cena, me alimentei; me alimentei muito, dos vários dizeres das várias pessoas colaboradoras. Talvez tenha sido a imagem de soltar a mão, do texto de Victor Guimarães, que fez com que o que estava entalado na garganta saísse nas quatro críticas publicadas nesta última semana de 2021.

Foram catorze reflexões em um ano. É pouco, mas é também significativo; de algum modo preciso insistir e acreditar que é significativo. O exercício crítico da curiosidade epistemológica, conforme apresentado por Paulo Freire, é indissociável de minha forma de ser e estar no mundo. Criticar é elaborar, subjetiva, objetiva e profundamente aquilo que se frui. E, como diz Ailton Krenak, que citei tantas vezes em tantas ocasiões nos últimos tempos, a vida é fruição.

Estamos vivos. Seguimos fruindo. Nessa (anti)retrospectiva onde grita a fantasmagoria da ausência diante da vida que retorna, do teatro em retomada, sinto que tangencio o que talvez seja o projeto de crítica do ruína acesa. Generosidade e rigor são palavras-chave em torno das quais orbito, mesmo que as atrações gravitacionais sejam desiguais e por vezes me falte uma ou outra.

A crítica teatral ainda é um lugar de poder, e deve se assumir enquanto tal. Não enquanto exercício autoritário de juízos particulares, mas como espaço de reflexão e valoração. Seria irresponsável, neste contexto, destacar uma ou outra obra. Listas sempre revelam mais sobre seus autores do que sobre o que é listado. Circuitos de (in)visibilidade seguem se retroalimentando, mesmo que partindo de boas intenções. O que fazer? Abandonar premiações, destaques, louvas? Não sei; caso eu tivesse acompanhado a cena com mais afinco, esta incandescência também elencaria os nomes considerados de maior valor.

O problema não é o valor. O problema não é a reflexão e a avaliação. O problema é sempre a que serve aquilo que se produz dentro do mundo do capital, onde inevitavelmente existimos. O projeto de crítica do ruína acesa é contra-hegemônico. É anti-produtificação, operando na direção contrária à mercantilização do fazer teatral. Talvez tenha sido necessário encarar o não-dar-conta deste 2021 para que eu entendesse isso. Mas a chama segue, como fantasma, como calor, como insistência; como crença, como esperança.

Venha, 2022. Seguimos, sigamos, seguiremos.

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