reflexões, teatro

generosidade e rigor

oitavo texto produzido no contexto do ciclo de debates Crítica Isolada, idealizado por Tudo, Menos Uma Crítica e ruína acesa, com realização do Sesc Pinheiros. acompanhe as ações por meio do instagram @critica_isolada.

Começar um último texto com intenção de reticências. Difícil encarar essa como a tarefa de finalizar o Crítica Isolada. O Fernando chamou o texto dele de o fim e todo o resto, e eu adorei isso. Pensei em nomear este de eu não sei. Seria honesto. Foram quatro encontros absolutamente distintos em suas tonalidades, mas ainda assim conectados. Também vou usar a imagem de arquipélago, que o Fernando traz no texto dele a partir de uma colocação da Lorenna Rocha no chat do último debate. 

Ilhas cercadas de rochas, impenetráveis. Outras com a calma das ondas que convida ao banho. Faixas de areia, cais para desembarque, casas para passar a noite. Cada uma, mais ou menos isolada, observando as paisagens circundantes. Criando registros, narrativas, imagens, historiografias, convívios. Em comum, talvez, um constante desejo de remar contra as marés. Ou de existir no diálogo com elas. Recentemente li uma matéria chamada a dança de Atafona, sobre uma cidade carioca que o mar vem engolindo.

Qual é o mar que avança sobre essas ilhas críticas, tomando de assalto todo o arquipélago? Onde há descanso, onde estão os perigos? O que combater, o que proteger? O que fazer daqui pra trás? Salto dessas imagens para as perguntas deixadas por Guilherme Diniz, do Horizonte da Cena, e Kil Abreu, do Cena Aberta, em nosso último encontro:

Que paisagens históricas queremos ajudar a construir com nossas críticas?

Guilherme Diniz

O que é o exercício da crítica no mundo da mercadoria?

Kil Abreu

eu não sei, seria o nome deste texto, já disse. De algum modo, há no texto oásis e miragens pontuações pertinentes para a pergunta do Guilherme. Ali, observando minha produção do último ano, é possível notar quais os recortes e limitações das paisagens históricas que o meu fazer crítico vem ajudando a construir. Ao mesmo tempo, em devagar/insistir a reflexão em torno dos alcances de minha escrita reverbera a provocação de Kil.

Não respostas, evidente que não. Mas tentativas (para reiterar a insistência nessa palavra, como fez Fernando em seu último texto) de ao menos contornar estas perguntas, organizar inquietações. Recentemente, este projeto – o ruína acesa – completou quatro anos. Escrevi uma espécie de texto-celebração e publiquei na data de aniversário, 17 de abril. Peço licença para trazer aqui a última frase dele, onde digo que mantenho uma esperança que talvez pareça ingênua: se o que escrevo inquieta ou acalma uma única pessoa que seja, se o que escrevo é interessante ou pertinente para um alguém, faz sentido continuar.

As paisagens históricas que eu – que sinto ser importante de compreender antes de pressupor um nós – desejo ajudar a construir são monumentos-galharufas. A ideia de galharufa me encanta. Há quem diga que é um objeto real, há quem considere um conselho – ou até mesmo um mero trote. Compartilho aqui a minha experiência: foi-me apresentado como algo tão catito quanto simbólico.

Assim, penso em paisagens que são celebrações sobre as belezas possíveis de cada dia e também meditações sobre suas dores. Ora imensas, ora diminutas. Registros de um olhar que se debruça com rigor e generosidade na mesma medida. De um olhar que antes de ver a cena vê seu contexto; percebe antes de tudo a realidade sobre a qual a arte se faz vôo. 

Isso só se alcança com autonomia e dignidade. E é a partir destas condições que se articulam as redes possíveis, flutuantes e imersas, que surfam nas ondas e navegam com os ventos e marés por todo o arquipélago. Embarcações de tamanhos diversos, mas porque assim desejam e não por necessidade. 

É preciso ver as paisagens, muitas delas, e para isso são necessários muitos olhos – e ouvidos, e bocas, e mãos que digitam – não para eleger de forma unânime quais merecem o zelo e a proteção; mas pelo contrário, para que o fazer crítico combata histórias únicas, compreenda e tensione discursos hegemônicos (ou que passaram a ser hegemônicos em seus contextos), enfim, faça florescer um jardim colorido – sem com isso esconder ervas daninhas. Que tudo seja dimensionado por seu próprio tamanho, também. Monumentos e galharufas; gostei desta imagem.

Talvez essa seja a grande responsabilidade da crítica: encarar frontalmente as paisagens que estão sendo desenhadas a fim de dimensioná-las pelo que elas são – e suas origens, contextos e porvires. Mais do que função, de algum modo penso que muites de nós carregam a assunção de missão no fazer, no trabalho crítico. De efetivamente colaborar nessas construções, nessas criações que são também tentativas de criar tensões, fissuras, neste doloroso tecido que é a realidade.

É nesse processo que o ofício pode furtar-se da cooptação pelo mundo da mercadoria, na compreensão de possibilidades outras de valoração do fazer teatral dentro da análise crítica. E ela própria, a crítica, também não se deve deixar cair refém nesta lógica desumana de produção, nesta lógica racista, machista, opressiva, inerente ao capitalismo. O que pode a crítica – aliás, o que podem as pessoas críticas – diante disso? Muito ou muito pouco?

A fuga reside precisamente na insistência. Aqui não compreendida como repetição ou como uma produção incessante, exaustiva, desgastante. Ainda que seja, também. Viabilizar espaços de crise no próprio pensamento é tão valioso quanto cansativo. Mas insistir neste fazer que é labuta diária, mesmo quando não existem textos sendo escritos. Insistir inclusive de que somos, também, como Guilherme bem lembrou, trabalhadores da cultura.

Insistir em seguir das formas possíveis, das formas que desejamos, das formas necessárias. Crer em contra-capturas, na força da piracema que vence a correnteza do rio. É seguir acreditando que o teatro vale a pena pois a vida vale a pena. Como disse Luiz Antônio Simas, diante da morte do Brasil só nos resta, paradoxalmente, a vida. Viver é a nossa mais subversiva tarefa.

O Crítica Isolada tomou como efeméride o um ano de pandemia para pensar em torno do teatro e da crítica nestes tempos. O que percebemos? Que não precisamos estar assim tão isolados. E também o quanto as questões se reorganizam, se redimensionam, mas também permanecem as mesmas. Nosso ciclo de debates versou sobre este um ano, mas foi inevitável olhar mais para trás – para assim também vislumbrar o que temos adiante.

É um desafio pensar como narrar criticamente estes tempos, nos lembrou Guilherme. E sempre suspeitando de respostas fáceis, lineares, que não se deslocam em suas elaborações. Sobre a tarefa da crítica neste contexto, Kil comentou em torno da necessidade de um trabalho rigoroso o suficiente para comportar as circunstâncias. E como há aí, em meio a isso tudo, dificuldade e beleza. Generosidade e rigor, com dignidade e autonomia: um arquipélago muito bonito pode ser concebido sobre estes alicerces.