retrospectiva, teatro

retrospectiva 2018

incandescência

Há um caráter inevitavelmente subjetivo na confecção de uma lista dos destaques do ano. Anterior mesmo à elencar os espetáculos, há a seleção feita ao longo do ano sobre quais assistir – levando em conta a dimensão da cena teatral de São Paulo, é impossível considerar que todas as obras postulantes à tal distinção tenham sido vistas. Assim, a presente lista considera os cerca de cem espetáculos acompanhados por amilton de azevedo ao longo de 2018. Além de obras cuja estreia efetivamente se deu na capital paulistana, constam também peças apresentadas pela primeira vez na cidade (exceção feita à dois espetáculos vistos no Mirada, em Santos); sejam elas originalmente de outras cidades brasileiras, co-produções com outros países ou estrangeiras.

A ideia do teatro como a chama da vela que ilumina enquanto se consome – sua efemeridade – foi, de certo modo, inspiração para o nome da presente página. Algo que já não existe em sua forma original – uma ruína – mas que permanece, de alguma maneira, acesa: o registro em palavras, na forma de uma reflexão crítica, de uma obra presencial. Assim, na lista a seguir, constam as obras cuja reverberação permaneceu/permanece incandescente no autor (e no contexto atual).


RevoltaR (Cia. Livre)

A dramaturgia de Dione Carlos navega por ilhas de revolução e naufrágios da memória. A encenação dirigida por Vinicius Torres Machado lida com questões políticas e a subjetividade em constante trânsito.
[o autor não escreveu crítica sobre o espetáculo]



Espetáculo Refúgio (Alexandre Dal Farra)

De forma desconcertante, a direção e a dramaturgia de Alexandre Dal Farra lidam com a incomunicabilidade presente nas relações atuais. Entre perplexidades e incertezas, o sem-sentido da busca por um outro lugar que não “aqui”.
[crítica]



Insones (Victor Nóvoa / Kiko Marques)

A angustiante dramaturgia de Victor Nóvoa traz para a cena – de maneira vertiginosa, na direção de Kiko Marques e com equilibrado elenco – neuroses contemporâneas de forma assustadora. Com a proximidade do réveillon, cabe mesmo perguntar à que brindar.
[crítica]



As 3 uiaras de SP City (Laboratório de Técnica Dramática)

Quando vozes há muito soterradas emergem, elas trazem consigo grande potência. É o que acontece na dramaturgia de Ave Terrena sobre a perseguição LGBT ocorrida na década de 80 – que não perde de vista questões atuais. Protagonizada por Danna Lisboa e Verónica Valenttino, o projeto contemplado pelo edital de pequenos formatos cênicos do CCSP é um marco importante da cena teatral.
[crítica: https://bit.ly/2LH0bxF]



Peça para adultos feita por crianças (Elisa Ohtake)

Delicioso encontro da poética de Elisa Ohtake com as questões de Hamlet em confronto com o mundo infantil. Traz à cena a complexidade existencial presente nas crianças para questionar a “chatice adulta”.
[crítica: https://bit.ly/2Qaka8y]



Tripas (Pedro Kosovski / Ricardo Kosovski / RJ)

Bem construída autoficção do talentoso dramaturgo carioca Pedro Kosovski, o espetáculo estabelece uma narrativa fabular para lidar com acontecimentos e relações reais entre Pedro e seu pai, o ator Ricardo Kosovski.
[crítica: https://bit.ly/2yDtU7Y]



El Manantial del Corazón (Conchi León / México)

Na obra mexicana, apresentada no Mirada, verifica-se a potência que há no simples. Sem grandes invenções, a encenação dialoga com tradições rituais a fim de, simultaneamente, retomá-las e ressignificá-las.
[crítica: https://bit.ly/2BL9Wq6]



Ítaca – Nossa Odisseia I (Christiane Jatahy / França/Brasil)

Concebida na França com elenco dividido entre homens francófonos e mulheres brasileiras, essa visita à Odisseia realizada por Christiane Jatahy traz Penélopes e pretendentes, Calipsos e Odisseus plurais para a cena. A grandiosa encenação divide-se em dois espaços de ação simultânea e debate da imigração na Europa à política brasileira.
[crítica]


sal. (Selina Thompson / Reino Unido)

A performer britânica Selina Thompson constrói seu monólogo a partir da narrativa de sua viagem por uma antiga rota do comércio escravocrata. Thompson viajou em um navio cargueiro, e as situações vivenciadas por ela são pontos de partida para a discussão sobre suas origens familiares e as diásporas. Momentos de ênfase na oralidade – em forma similar ao spoken word – e de significativas ações cênicas se alternam na obra. Apresentada na MITsp.
[crítica: https://bit.ly/2SrL25V]



Medea Mina Jeje (Kenan Bernardes / Juliana Monteiro / Rudinei Borges)

O encontro de um intérprete de grande habilidade, dirigido de forma precisa, com um texto de dolorosa beleza poética. A dramaturgia de Rudinei Borges historiciza, no contexto escravocrata, o mito de Medeia. No espaço cênico de Juliana Monteiro, também diretora, a aridez da mineração é contrastada com os sons do mar no início e no final do espetáculo (do desenho de som de João Paulo Nascimento); a atmosfera construída, em conjunto com a luz de Wagner Antônio, faz a atuação de Kenan Bernardes brilhar.
[crítica: https://bit.ly/2s2qoxu]



Epidemia Prata (Cia Mungunzá de Teatro)

2018 foi um ano realmente marcante e de destaque para a Mungunzá. O Teatro de Contêiner estabelece-se cada vez mais como um polo cultural plural cravado no centro de nossa cidade. Sua programação parece buscar abarcar a diversidade da produção teatral ao mesmo tempo em que não ignora o contexto de sua localização. Dessa maneira, a criação de Epidemia Prata é honesta e enfrenta, esteticamente, as dificuldades e a impotência frente à realidade dos artistas do coletivo. É um “não saber lidar” assumido e desenvolvido em uma encenação que, jogando com seus fracassos e as impossibilidades de representar o real/a realidade, traz imagens de grande beleza poética – enquanto afirma não ser possível criar poesia sobre o que se vê, o que se diz. Complexa e passível de importantes debates acerca do fazer artístico, a obra serve como reflexo de muitas das discussões atuais. Neste sentido, cabe destacar também a reestreia de Luis Antonio – Gabriela, grande sucesso do grupo, com a presença de Fábia Mirassos, atriz trans, como protagonista [crítica]. Trata-se de uma escolha sobretudo humana – como afirma Renata Carvalho – e ética, além de política, mas com interessantes implicações estéticas.
[crítica]



Odisseia (Cia Hiato)

Na pesquisa da companhia, sendo desenvolvida há mais de dez anos, o jogo entre o enquadramento ficcional e sua relação com o real sempre esteve presente nas obras. Aqui, a hiato parte dos cantos da Odisseia de Homero para construir seu jogo entre representação e performatividade; entre invenção e memória. Fazendo do público o seu Odisseu, a lógica da narrativa é invertida: o que antes era paisagem e Outro, torna-se sujeito da história. Odisseu – a plateia – é aqui apresentado sempre em relação; sob outra ótica, deixa de ser protagonista. É interessante notar que o espectador, mesmo inserido na ação, é quase objeto dos atores, manipulado quase que por “desígnios divinos” – e ainda assim, há grande potência construída na relação atores-público.
[crítica]



Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas (Teatro do Vestido / Portugal)

Apresentada no Mirada, as sete palestras performativas que compõem o monólogo de Joana Craveiro exigem engajamento – e resistência – do espectador ao longo de suas mais de cinco horas de duração. A pesquisa histórica realizada por Craveiro, trazida na materialidade cênica, é de um rigor admirável e é habilmente estruturada esteticamente. Há, nesse sentido, uma radicalidade da linguagem do teatro documentário; e a abordagem da obra, que varia entre a história de um país e a narrativa de seus sujeitos invisíveis, confere dinâmica e potência à encenação, que traz um panorama histórico de Portugal – mas sem perder de vista a trajetória pessoal de Craveiro e sua família.
[crítica: https://bit.ly/2Tcizko]



Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã (Carcaça de Poéticas Negras)

A dramaturgia de Jhonny Salaberg traz o encontro de sua própria vivência enquanto jovem preto periférico com uma refinada carpintaria que bebe do – tão latino – realismo fantástico. A denúncia urgente e poderosa do genocídio negro que ocorre cotidiana e institucionalmente no país ganha contornos poéticos sem perder a densidade. Naruna Costa é precisa em uma direção que propõe soluções cênicas simples e inventivas para as demandas do texto. No potente elenco, Ailton Barros e Clayton Nascimento fazem companhia à Salaberg. O projeto teve a dramaturgia contemplada pelo edital de pequenos formatos cênicos do CCSP – que vem fomentando sistematicamente excelentes trabalhos a cada ano – e o coletivo Carcaça de Poéticas Negras assina a realização da obra. Um verdadeiro acontecimento.
[crítica: https://bit.ly/2BKhcm1]