permanência, travessia e transbordamento
crítica de “Ítaca – Nossa Odisseia I”, de Christiane Jatahy
Christiane Jatahy propõe sua Odisseia em um campo fronteiriço. Lugares, personagens, linguagens e narrativas são situadas e depois se entrecruzam. É sobre o Brasil, é sobre a França, é sobre Ítaca; é fundamentalmente sobre os caminhos, seja daqueles que os percorrem ou dos que esperam.
Em “Ítaca – Nossa Odisseia I”, Jatahy assina a criação, direção, dramaturgia e cenário. A obra propõe uma série de binariedades que se mostram plurais. A divisão do público em duas plateias, a partir da estrutura cênica proposta com a colaboração de Thomas Walgrave (para a temporada em São Paulo, também colaborou Marcelo Lipiani), estabelece simultaneamente duas narrativas que se contaminam.
As três atrizes e os três atores interpretam quatro personagens – dois no ato/espaço “Ítaca”, dois em “Caminho de Ítaca”. De um lado, Penélope e Antínoo, um pretendente; do outro Ulisses e Calipso. O espelhamento parece ressaltar o caráter de embate entre o feminino e o masculino. Além da opressão de gênero, a questão da tentativa masculina de impor sua língua – os atores são francófonos – às mulheres, realça ainda mais a violência desta relação, trazendo também a tona a problemática da colonização europeia.
Neste sentido, se as leituras já podem variar de acordo com a sequência dos atos assistidos, há de se considerar que, quando apresentada na França – onde estreou – “Ítaca” deve se revelar outro espetáculo. Aqui, são as atrizes que falam a língua do público, o que gera uma maior cumplicidade com as figuras oprimidas.
Existem críticas nítidas colocadas na criação de Jatahy. Se, em Homero, os pretendentes buscavam desposar Penélope, aqui a metáfora se concretiza duplamente acerca de questões históricas e atuais. Europeus invadem uma casa, abusam de uma suposta hospitalidade para fazer o que bem entendem e não medem esforços para tomar as rédeas daquele local. E homens que cercam uma mulher a fim de destituí-la de seu lugar de poder. Sendo o espaço de Ítaca claramente o Brasil, o público tem em suas mãos, simultaneamente, a narrativa da colonização e a narrativa do golpe.
Por outro lado, o caminho de Ítaca, mais precisamente a ilha de Calipso, parece trazer consigo dados que tendem, de certo modo, a Europa atual. A inserção de trechos de diários de refugiados põe em xeque o retorno de Ulisses ao lar: que lar é este para onde se atravessa mares de monstros para se chegar?
Ainda que contendo essas potências políticas, a obra transborda para outra temática. O amor e a guerra estão ali; a esperança e as expectativas também. Situando-se em um primeiro momento num espaço festivo – assim como em outros espetáculos de Jatahy, como a própria afirma na entrevista presente no programa de “Nossa Odisseia I”, a festa é o lugar do encontro mas também da melancolia – o elenco rompe a todo momento com a quarta parede, incluindo o público dentro dos acontecimentos. E ao mesmo tempo, exigindo dele um olhar reflexivo sobre o que se vê através de comentários que por ora soam épicos, por outros, ganham tons performativos. A interpretação é sutil, de traços naturalistas; o diálogo com os espectadores é orgânico, o que gera de fato um campo afetivo e íntimo.
Pequenas inserções em vídeo já surgem neste primeiro momento. Mas é em um terceiro ato onde a pesquisa da relação entre o teatro e o audiovisual, cada vez mais verticalizada, de Jatahy, se acentua. As projeções filmadas ao vivo – Paulo Camacho assina uma bela fotografia executada pelo elenco – fazem com que o espaço cênico torne-se espécie de estúdio que estrutura um filme performático.
A água que invade cada vez mais a cena, agora transborda – não mais Ítaca, não mais ilha; travessia – e se torna a grande matéria da narrativa. As personagens se dissipam e confundem, positivamente, o espectador. Atravessando o palco de um lado a outro, Penélopes e Calipsos, Ulisses e Antínoos. A água é o oceano que nos divide e a lágrima que nos une. É violência, é afeto. O enredo se desconstrói no que se torna um grande mar.
Capturado não apenas pelas poderosas imagens transmitidas nas projeções – cuja construção se revela na cena – mas por toda a trajetória da dramaturgia de Jatahy, o espectador se vê entre o deslumbramento e a angústia. Se identifica com o humano ali, afogando-se, e com todas as questões pertinentes vindo à tona em tantos embates.
“Ítaca – Nossa Odisseia I” traz a trajetória de quem fica e de quem almeja outro lugar. As figuras femininas são atacadas e massacradas pela língua estrangeira, pelo masculino, pela violência e pela espera. Mas, combativas, não se permitem pacificadas e recusam a passividade. Querendo que o outro vá embora ou permaneça, sua multiplicidade se revela na resiliência.