teatro

lá, onde a grama é mais verde (ou uma poética do desconcerto)

crítica de “Refúgio”, de Alexandre Dal Farra

foto de Nadya Librelon

Na última parte de seu artigo “A personagem contemporânea: uma hipótese”, o dramaturgo e professor Luís Alberto de Abreu versa sobre matrizes possíveis para tal construção. Para tanto, parte da ideia de “desenraizamento”. Em Kafka, “a realidade brutal, caótica, sem sentido impõe-se sobre o homem que não é capaz de perceber um sentido nisso”. Já em Beckett há um aprofundamento do “abismo entre discurso e ação, entre caráter e pensamento”; Vladimir e Estragon, de “Esperando Godot”, são “incapazes de articular um discurso e, se isso fosse possível, seria um imenso esforço para conjugá-lo com a ação”.

Mais a frente, o autor afirma que, na realidade contemporânea, “a alienação de si mesmo, característica dos personagens trabalhados por Kafka e Beckett, talvez tenha se aprofundado ainda mais. Não estão apenas perplexos como Joseph K. nem apenas com a ansiedade passiva de Vladimir e Estragon. Passaram à ação. Todos os dias, em qualquer lugar do mundo, topamos com consciências fragmentadas, com seres perplexos que, no entanto, agem.”

Ainda que não de forma absolutamente direta, tal reflexão parece pertinente ao observar as personagens construídas por Alexandre Dal Farra em “Refúgio”. Há um dado do absurdo presente desde o início nas relações estabelecidas. Ao longo da encenação, este se acentua. A família – Ele, Ela, Irmão, Irmã e Pai (Marat Descartes, Fabiana Gugli, Clayton Mariano, Carla Zanini e André Capuano, respectivamente) – está em uma sala no que se apresenta como uma festa infantil. A partir de um primeiro desaparecimento, que ocorre após um convidado, em outro cômodo, dizer que precisa ir embora, a questão acerca do que está acontecendo se desenrola.

A presença cada vez mais intensificada de um “lá”, um outro lugar – ou um não-lugar? – torna possível traçar paralelos com a questão kafkiana do sem-sentido de uma realidade social que se impõe sobre os indivíduos, como que obliterando suas possibilidades. Assim como os diálogos entre os personagens flertam, por vezes, com cores beckettianas. Os discursos que a primeira vista soam desarticulados, em uma crescente que vai da tentativa de compreender o outro à certa desistência que leva a uma completa incomunicabilidade, parecem revelar outras camadas do texto.

A peça inicia com uma colocação da personagem Ela acerca de uma suposta felicidade daqueles que foram à guerra: “Elas estavam esperando tanto tempo por uma coisa, que quando veio, elas comemoraram, sabe?”. A ideia de algo por vir povoa a encenação, considerando o repentino ensejo de ir para “lá” concretizado por diversas personagens.

Mais a frente, a Irmã tece um comentário a partir da visão de baratas em um restaurante que parece efetivar uma metáfora política na obra. A sobrevivência escondida e permanente de “toda uma civilização de baratas embaixo do piso” traz consigo a leitura de uma imutabilidade da ordem social vigente. E a conclusão de que “às vezes é melhor deixar elas lá, mesmo” corrobora a posição pessimista de certa passividade frente ao que (nos) acontece, que, de certa forma, permeia “Refúgio”, considerando a forma como se relacionam os personagens.

Certa exceção a esta passividade se localiza principalmente em Ela. Ainda que seu marido, Ele, também seja mais reativo, é nela que se desenha uma consciência minimamente mais elaborada acerca do que se passa. Esse dado distancia a personagem das matrizes já citadas. Na obra, portanto, há, sim, a fragmentação interna e algum aspecto da inação beckettiana, e certamente há a tentativa kafkiana de uma busca pelo sentido dentro uma realidade caótica. Porém, mais do que isso, se revela uma desarmonia. Trata-se de uma poética do desconcerto; o que se vê em cena são consciências desconcertadas.

O desarranjo é temática constante nas obras de Dal Farra. E é comum ver, em seus trabalhos, uma violência que não teme se apresentar. Considerando espetáculos realizados (escritos e/ou dirigidos) nos últimos três anos, como exemplo, é possível pensar em “BRUTO” (2015, com direção de Luiz Fernando Marques) – encenado pelo Núcleo Experimental de Artes Cênicas do SESI-SP, trazia diversas situações com níveis de violência que transitavam do sutil para o explícito; e o encontro de jovens em uma festa, o centro da obra, trazia uma sucessão terrível de acontecimentos.

No ano seguinte, em “Teorema 21” (2016, também com direção de Marques), encenado pelo grupo XIX de teatro, atualiza-se de forma sádica o “Teorema” de Pier Paolo Pasolini. A família construída pela dramaturgia de Dal Farra revela-se nos atos violentos cometidos; a proximidade com a plateia amplifica a crueldade explícita.

Já em 2017, “Branco – o cheiro do lírio e do formol” carrega consigo certa violência desde sua proposição. A encenação, assinada por Dal Farra e Janaína Leite, não se furta de confrontar a brutalidade da branquitude. Aqui a agressividade era, no entanto, mais simbólica – e por mais que houvessem possíveis camadas distintas de apreensão do discurso, ele por si carregava potência hostil.

Em “Refúgio”, ainda que a violência esteja presente – seja na fúria das personagens ou mesmo na indigesta cena onde o Pai come incessantemente – este ímpeto hediondo do artista de não esconder do palco as desumanidades presentes em nossos tempos – e, talvez, na própria natureza humana – parece se organizar de modo distinto.

Os elementos da encenação operam de modo que não encerram significados em si mesmos. O cenário de Marisa Bentivegna (que também assina o desenho de luz) serve de diversos ambientes para localizar os espaços onde as ações ocorrem – restaurante, bar, cozinha, sala, etc. – mas, para além disso, possibilitam ao menos duas leituras evidentes que podem conduzir o espectador a construir entendimentos particulares da obra.

Com a mobilidade das paredes e o cerceamento dos espaços, não é difícil enxergar um labirinto, aprisionando cada vez mais aquelas personagens a eles mesmos. Cada vez mais massacrados pelo exterior, correndo para dentro de si, o confinamento torna-se inevitável. Mesmo os que, por algum tempo, saíram buscando outros refúgios, acabam retornando para aquele.

Ainda, na própria ideia do nome da peça, considerando as citações à guerras e armas, há um tom apocalíptico levemente sugerido. As paredes, cinzas e gastas, propostas por Bentivegna, parecem indicar as de um abrigo subterrâneo. Na descrição de “lá”, o não-lugar visitado por algumas personagens, se desenham paisagens um tanto bucólicas – fogueiras, danças, uma beira de rio…

Como se estas figuras, sufocadas pelo caos urbano, vislumbrassem esse outro possível, mesmo que sem tanta capacidade de organização de tal reflexão. Neste sentido, pode-se identificar um quê de Bartebly, personagem de Herman Melville, nas súbitas tomadas de ação que ocorrem ao longo da peça. O “prefiro não” do escrivão de Wall Street frente as demandas passadas a ele se torna, em “Refúgio”, o repentino movimento até “lá”. O ato não traz consigo explicação – e o sem-sentido se efetiva na perplexidade daqueles que ficam.

A escolha da encenação da forma com que se realizam as abruptas saídas também abre um novo campo de possibilidades para o espectador. Saindo de cena e indo rumo à lugares vazios na plateia, o “lá” torna-se o espaço real, em oposição ao campo ficcional construído no palco.

Sem buscar justificar os acontecimentos ou desvendar o que está acontecendo com aquelas pessoas e com o mundo onde se inserem, “Refúgio” flerta com elementos do absurdo mas, ao mesmo tempo, parece oferecer caminhos para que o público realize assimilações mais amplas sobre a obra. Restamos nós, do lado de cá tão perplexos quanto os que estão lá, incertos e confusos; mas, de algum modo, seguindo.

[referência citada: ABREU, Luís Alberto de. “A personagem contemporânea: uma hipótese” in Sala Preta, Brasil, v. 1, p. 61-67, sep. 2001. Disp. em: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57006/60003>]