das (não-)poesias que morrem sob cobertores ao luar
crítica de “Epidemia Prata”, da Cia. Mungunzá de Teatro
foto de Leticia Godoy
“acompanhe o pássaro
mas não atrapalhe o voo
não tente olhar com as mãos
estar perto requer outros dons”
[letuce – binóculos]
Quando a Companhia Mungunzá de Teatro decidiu construir o Teatro de Contêiner na Rua dos Gusmões – em um site-specific às avessas, o projeto idealizado e concretizado pelo grupo considerou suas dimensões a partir das demandas da cenografia de “Poema suspenso para uma cidade em queda” – talvez houvesse apenas imaginado de forma ingênua – e, possivelmente, leviana – a relação que seria construída com seu entorno.
O que se apresenta em “Epidemia Prata” é o choque traumático entre realidades distintas. Um coletivo de artistas funda o que viria a se tornar um polo cultural de grande atratividade e atividade no coração da metrópole a poucos metros da cracolândia. O que se gera enquanto dificuldade talvez não encontre resposta cênica na obra em questão do grupo que celebra seus dez anos sob a direção de diferentes nomes da cena teatral – quem orquestra essa árida gira de Ogun é Georgette Fadel, com codireção de Cris Rocha.
Partindo essencialmente da experiência dos integrantes da Cia. Mungunzá com as pessoas que habitam as ruas tristes e frias da região – em sua maioria, pessoas em distintos graus de vulnerabilidade – a encenação fricciona os muitos meninos prateados, tão comuns em vagões do transporte público, com o mito de Medusa. “A prata dá mais prata”, responde um garoto quando questionado do porquê daquela pintura. Assim, na materialidade consumista da metrópole, para além de um entendimento simples acerca do estranhamento que a pintura corporal causa, diversas leituras se abrem sobre o que isso significa.
Livres da imobilidade das estátuas vivas, esses jovens circulam entre nós para serem vistos. Se aqueles que contemplam, por um instante, a figura de Medusa, tornam-se pedra, nós, ao olhar esses meninos de prata, é que nos embrutecemos. Morre a possibilidade de poesia frente à dureza da realidade e nossa incapacidade de agir no sentido de uma transformação real e efetiva.
A impotência ganha contornos cênicos quando o alcance da própria alteridade se coloca em xeque. Como lidar, sem subterfúgios, romantizações ou fugas, com aquele Outro? Como permitir-se traumatizar, manter-se estrangeiro e permitir que o outro não se torne eu – numa absorção egóica ou num apagamento fascista? Como aponta, em dado momento do espetáculo, uma declamação incessante de hashtags, se #JeSuisTudo, #JeSuisNada. É uma compreensão honesta da Companhia perceber a dificuldade de unir discurso e prática. O desafio não se esgota e é reinventado à cada nova situação.
Nesse sentido, parece inevitável o caráter processual da obra. Não apenas pela contaminação epidêmica dessa prata – das moedas multiplicadas, do pó que se espalha; na inesgotável busca por se colocar no lugar desse outro – seja em cena, seja nas vivências destes seis artistas durante o processo criativo, seja na própria problematização do que se constrói.
Como se traz o invisível para a cena e o que isso gera nele, no que não está presente? Este outro ausente, que irrompe sensações desagradáveis em nós, dentro de nossas bolhas. Os relatos narrados ao público contextualizam as imagens buscadas em composições espaciais e sonoras – não fosse assim, é provável que se desenhasse um retrato hermético daquela experiência.
Na contextualização, no entanto, a crise – não apenas da representação, mas do como lidar – torna-se elemento central em “Epidemia Prata”. Encarar de frente o problema de encenar o irrepresentável. Quando a pauta em discussão materializa-se em meio ao debate, encarnada, viva e desesperada, como agir? As histórias apresentadas costuram-se numa rede prata de narrativas cruas e duras, que se contrapõem às construções poéticas da encenação. Nessa exposição de idiossincrasias, efetiva-se uma partilha da dificuldade. Uma dificuldade humana, possivelmente repleta de pequenos – e grandes – equívocos.
Não é uma experiência fácil de se assistir. Incômodos de diversas ordens são suscitados pela forma com que certas histórias são narradas – o que é contraposto nas imagens líricas – assim como quando vídeos da truculência policial na cracolândia são exibidos. Quando se fala daqueles que não conhecem papel higiênico – e daqueles que os furtam – pode não haver espaço para a poesia. Ainda assim, chove em cobertores da mesma cor onde embaixo vivem pessoas que possivelmente são muito mais do que o levado à cena.