orgulho, teatro

(tra)veste-se quem se quer ser

crítica de “Luis Antonio – Gabriela”, da Cia. Mungunzá de Teatro

A narrativa de “Luis Antonio – Gabriela”, espetáculo da Companhia Mungunzá que estreou em 2011, assume a complexidade de lidar com a diversidade ao mesmo tempo em que compreende a dinâmica fluida que se dá entre o campo afetivo pessoal e a política. Com direção e argumento de Nelson Baskerville, é a partir de suas memórias de infância que a obra se constrói. Partindo de uma premissa documental, traz para a cena a vida de Gabriela, irmã de Baskerville que, como, em certo momento, um cartaz em cena afirma, “dizem que nasceu em um corpo errado”. Da conturbada infância em família até as noites de Bilbao, acompanhamos Luis Antonio descobrindo-se Gabriela, travesti.

Partindo de relatos de familiares do diretor (a madrasta Doracy, a irmã Maria Cristina e cartas da própria Gabriela) – além de Serginho, amigo de Gabriela – a dramaturgia acertadamente, em consonância com a encenação, foge da tentativa de estabelecer uma relação de causalidade entre os acontecimentos apresentados. Um vídeo de Baskerville, gravado em um ensaio, traz um caráter processual para a cena que parece justificar a epicidade da obra. Ele ressalta a importância das improvisações do elenco na elaboração do espetáculo e afirma não querer apresentar linearmente a história – ao passo que também diz não ver problemas em utilizar-se de linguagem realista para contá-la. Ainda que o recorte de certas cenas flerte com ela, os recursos da encenação – como o vídeo ao vivo e as ações simultâneas dos demais atores – constantemente ampliam essa perspectiva; além disso, as interpretações, mesmo com forte carga dramática, são construídas sob o viés da narratividade.

A encenação se desenha estruturalmente épica. Atores e atrizes se apresentam no início do espetáculo e dizem ao público quais personagens interpretarão. Ademais, símbolos e procedimentos utilizados também são explicitados. A realidade teatral é construída junto ao público de maneira aberta. Curioso notar que, ainda que tais recursos possam ser utilizados para gerar um distanciamento reflexivo do público acerca do que é contado (além de servir, em certos momentos, como necessário respiro da narrativa poético-documental), o que se verifica é uma condução da plateia que a prende potente e afetivamente à obra.

Neste sentido, a dramaturgia sonora é eficaz no desenho das emoções que atravessam o espectador. A bela voz de Day Porto redimensiona imagens e passagens textuais de “Luis Antonio – Gabriela”. Com direção musical de Gustavo Sarzi, também músico em cena, a trilha do espetáculo estabelece-se como importante camada dramática, construindo distintas atmosferas.

A história familiar apresentada, com forte carga pessoal e emotiva, não se exime da responsabilidade ética frente ao tema. Baskerville, sendo obviamente parte dessa história, é também personagem; e passagens traumáticas de sua relação com a irmã, ainda na infância, não são omitidas. Na encenação, distintas violências ganham diferentes representações. Enquanto as constantes agressões que os filhos sofriam do pai são apresentadas simbolicamente, é o abuso sexual, mesmo representado fora do palco e mostrado em vídeo, que gera o maior desconforto.

Para além das violências físicas, o que emerge como central é a violência discursiva. O pronome masculino, além do nome civil, demora a ser abandonado na referência à personagem-título. E talvez seja relativo a esse ponto uma das grandes reverberações da alteração da obra feita para a presente temporada. Quando Luis Antonio efetivamente assume-se como Gabriela, seu papel deixa de ser interpretado por Marcos Felipe, da Mungunzá, e passa para a atriz convidada, Fábia Mirassos – mulher trans.

Cabe aqui, em espécie de parênteses, contextualizar brevemente a questão. A pauta da representatividade trans no teatro, capitaneada pelo Movimento Nacional de Artistas Trans (MONART), é, de certo modo, simples: trinta anos sem “transfake” – ou seja, que atores cisgêneros deixem de representar personagens não-cis. Trata-se de uma demanda importante em diversas esferas – desde a econômica até a política, passando essencialmente pela artística. Uma estética que considera a existência de tais corpos é fundamental não apenas para uma normalização do que hoje é visto como marginal, mas para sua sobrevivência. Trata-se da responsabilidade do artista frente à construção do imaginário; seu entendimento dele enquanto campo de disputa e ferramenta transformadora.

A Mungunzá foi uma das companhias questionadas pelo MONART exatamente pelo espetáculo em questão. Em um primeiro momento – como muitos artistas que passaram por isso – assumiram uma postura defensiva e reativa. No entanto, a decisão de ouvir e refletir ética e esteticamente acerca desta reivindicação trouxe à tona novas potencialidades artísticas e políticas para “Luis Antonio – Gabriela”.

Com a presença de um corpo trans em cena, as relações das demais personagens com Gabriela se ressignificam. Duplamente, o confronto da travesti com a materialidade de seu próprio corpo é também o confronto de cada um de seus familiares com o “não saber lidar”, que se decanta em uma transfobia que muitas vezes não se percebe como tal. Nos figurinos de Camila Murano, todo o elenco (excetuando-se Pedro Augusto, técnico performer, e Sarzi, o músico) utiliza modeladores corporais. Tal proposta, somada às diversas intervenções cirúrgicas de Gabriela, feitas na tentativa de encontrar-se num “corpo certo”, dialogam ainda com as bolsas hospitalares presentes na arquitetura cênica (de Marcos Felipe e Baskerville). O que emerge é a visão abjeta que se tem sobre corporeidades fora da normalidade.

A ideia da construção de si parece permear a obra como um todo. Gabriela busca construir sua identidade enquanto enfrenta um contexto violento, conturbado e marginal. Baskerville constrói, enquanto encenador, a organização da própria memória, as relações familiares e, até mesmo, a vida imaginada de sua irmã após a última vez que se viram. Na poética cena da reminiscência da infância, o que antes era um violento abuso sexual perpetrado pelo corpo masculino de Marcos Felipe como Luis Antonio é agora uma coreografia do jovem Bolinho (apelido de Baskerville; interpretado por Verônica Gentilin) com o corpo feminino de Mirassos-Gabriela.

Não se trata de apagar e modificar aquilo que de fato aconteceu; nem de isentar certas responsabilidades. Mas sim, um exercício imaginativo de ressignificação e de construção de possíveis. Quando a Mungunzá convida Mirassos e repensa uma obra consolidada, ela se inclui nesse empreendimento de reinventar imaginários. A potência conquistada nas alterações reafirma a importância dos artistas alinharem-se com as demandas dos oprimidos de seu tempo. Não se trata apenas do significado político, mas a compreensão das possibilidades estéticas que se abrem a partir de certas escolhas.

Na presença simultânea de Marcos Felipe e Fábia Mirassos, Luis Antonio finalmente vê-se Gabriela. Com a fronteira entre atores e personagens nublada, veste-se quem se quer ser. A imagem conjunta final coroa esta nova trajetória da encenação. O caminho para a coexistência é conturbado e complexo; é também essencialmente amoroso e humano – considerando tudo que isso significa.