vertiginosa barbárie
crítica de “Insones”, dramaturgia de Victor Nóvoa e direção de Kiko Marques
foto de Erica Modesto
Não há ao que brindar na noite de réveillon dos “Insones”. Personagens buscam as razões e chegam apenas a reticências. Quatro figuras que passaram o ano inteiro sem dormir se juntam para esse momento de celebração quase universal. É quando olhamos, em retrospectiva, para quem fomos e miramos o que queremos ser no futuro próximo.
Uma contagem regressiva e o novo pode chegar. A mudança nunca leva um instante, mas é sempre significativo deixar o passado para trás. Talvez seja isso que almeja o espetáculo escrito por Victor Nóvoa e dirigido por Kiko Marques. Como o dramaturgo afirma no programa, em texto assinado também pelas atrizes Fernanda Raquel e Helena Cardoso (Paulo Arcuri e Vinicius Meloni completam o elenco do espetáculo), há o desejo que a obra deixe, algum dia, de se tratar de um espelho e passe a ser uma antítese da realidade.
Para além desta reflexão escrita, não há muita esperança na encenação. A bem da verdade, é uma intensificação devastadora daquilo que vemos a nossa volta; e, talvez central para a compreensão da proposta, do que vemos em nós. A iluminação de Marisa Bentivegna segue a missão incessante de uma das insones, frenética pelo ocultamento absoluto das sombras que a própria luz projeta.
As figuras, no entanto, são inteiramente as sombras que negamos possuir. Personificações da velocidade pela qual rolamos pelo feed do Facebook, sobrepõem assuntos, encarnando a bizarrice do algoritmo da plataforma, que pode proporcionar imagens fofas de gatinhos e registros de linchamento no intervalo de duas ou três publicações.
Um vomitório egóico, o outro é completo objeto do eu. A comunicação é mentirosa, supérflua. Não importa o que está em pauta; importa discutir. E, na discordância, só resta a violência. No discurso, na relação, na agressão. O apagamento é tão natural quanto efêmero. Como na observação, quase um lugar-comum da pós-modernidade, de Zygmunt Bauman citando Ralph Waldo Emerson, a segurança dos indivíduos frágeis, patinando em gelo fino, está na velocidade.
Não é que não existam afetos sendo construídos. Mas a superficialidade é tanta que sua destruição é tão imediata quanto os novos circuitos que se estabelecem – para, no instante seguinte, novamente se quebrarem. A direção de Marques coloca os quatro atores em um registro exagerado de interpretação. Seus corpos pulam, correm, se equilibram, dançam, agridem; só não param, nunca. Não que não haja imobilidade; ainda que a encenação seja vertiginosa em sua velocidade e intensidade, os raros momentos de um andamento mais lento – e os quase inexistentes silêncios, visto que além da verborragia constante há a insistente trilha sonora de Carlos Zimbher – ameaçam dar um respiro ao espectador. Não se configuram suspensões, mas sim talvez apertos no peito.
“Insones” é angustiante quando insere o público na questão. E parece esse ser o grande nó do espetáculo. O texto de Nóvoa inevitavelmente gera o riso. Se certos comportamentos já são ridículos quando vistos no cotidiano, a amplificação deles dentro do contexto da obra traz um forte efeito cômico. No entanto, o humor que se supõe almejado é aquele que a risada é sucedida pelo desconforto de ter achado graça naquilo. Pois os quatro insones, há 365 dias acordados (e lidando de maneiras distintas em relação a isso), são indubitavelmente um espelho de nós, olhando para telas no segundo antes de dormir e no primeiro ao acordar. E – talvez, na realidade, muito mais do que na peça – temos consciência disso.
Cabe, portanto, refletir acerca da recepção da obra. A proposta dos artistas é cristalina – e muito bem executada. No entanto, a quem diz o que? Para alguns, uma metáfora direta e agressiva, desconfortável de se assistir. Porém, se não há algum nível de identificação, resta uma leitura mais distanciada que isenta de responsabilidade aquele que vê; tornando-se uma mera comédia sobre os nossos tempos. Não se trata de uma questão de mérito, mas de perspectivas: não é nenhuma ideia nova de que cada espectador completa a poesia escrita pelo espetáculo. E a poesia de “Insones”, sem dúvida, não é das mais agradáveis de se completar. Ainda que desesperançosa, verdadeira. Que seja brindado o momento onde este retrato da barbárie que é nossa civilização for deixado para trás.