teatro

réquiem para as ondas que quebram (ou o testemunho do mar que fica)

crítica de “Trezentos e sessenta graus (ou as muitas mortes e vidas de Sofia)”, de Sônia de Azevedo [mãe do autor]

foto de Stephanie Borges

Sofia está em um parapeito. Na sua frente, o oceano. Pássaros voam, ondas batem, pescadores jogam suas redes e a vida se movimenta. Mas nela, tudo se suspende. “Trezentos e sessenta graus (ou as muitas mortes e vidas de Sofia)” se ancora nesta beira de precipício.

O texto de Sônia Machado de Azevedo – que também assina a direção – foi recentemente publicado em livro com o mesmo nome (pela editora Lamparina Luminosa). Trata-se de uma história que são muitas. Uma mulher jovem, cuja breve vida encontra seu fim, súbito, no suicídio. Na escrita poética de Azevedo, as narrativas do que foi e do que poderia ter sido navegam com fluência e lirismo – e muita dor.

A angústia do momento final, decisivo, daquela que decide saltar para o abismo, é levada para a cena em um monólogo denso, belo e poderoso. A interpretação de Juliana Pina chama atenção pelo carisma da atriz, que torna os espectadores cativos de sua agonia. Mas Pina não é apenas a Sofia cujo corpo será encontrado por alguém que passa. No contato direto com a plateia, ela é narradora, testemunha e também a voz da autora, que sonha outras vidas para quem já não as vive.

Desse modo, a obra traz não apenas o suplício de quem se vai ou a consternação dos que ficam; a invenção de memórias toma a ágora na tentativa de lidar com a perda – de forma, por vezes, bem humorada: criando existências outras, de varias idades, comportamentos, enfim.

O início do espetáculo, uma espécie de prólogo no momento da entrada da plateia, traz uma figura inquieta, buscando ajuda, tentando verbalizar suas tribulações. E ali um recorte se faz claro. O tema da obra é, sim, o suicídio; porém, não como um genérico ou questão fundamental da filosofia – ainda que a dor apresentada seja existencial, “Trezentos e sessenta graus” fala sobre ser mulher no nosso mundo.

Cabe ressaltar a responsabilidade com a qual a peça encara essa questão difícil. No trânsito entre personagem e narração – e entre imagens abstratas e a concretude das ações – há extrema sensibilidade. Azevedo parece consciente do desafio de se manter na linha tênue que separaria a possível glorificação do ato e a culpabilização – seja do próprio suicida ou de seu entorno. Enfrentar este risco é tão fundamental quanto falar do assunto. Ele existe, e evitá-lo não o fará acabar.

As aproximações metafóricas da dramaturgia são encarnadas no corpo e nas ações de Pina. Por vezes, a voz narra a imagem construída pelo corpo. Como se Sofia, viva e morta simultaneamente, se observasse. A intérprete alterna entre chaves dramáticas, épicas e líricas de forma hábil, potencializando a entrecortada narrativa de Azevedo. A construção do espetáculo parece almejar levar a cena não apenas uma trajetória, mas muitas que se cruzam pelos mais diversos motivos.

Desse modo, são muitas as mortes desta mulher, mesmo antes de seu salto. Quando seu próprio quarto-lar se transforma em um não-lugar. Quando ela é abusada. Quando se casa. Quando se divorcia. Quando é silenciada pelo mundo. Depois da queda, as reinvenções; as muitas vidas imaginadas e sonhadas, das alegrias mais prosaicas até os sonhos mais utópicos.

Ainda que “Trezentos e sessenta graus” se passe neste parapeito e o tempo de sua ação pareça compreender os minutos antes da decisão final e os segundos até atingir o chão, a obra dilata não apenas o tempo mas também o espaço. Como se em sua queda, Sofia voasse – mas não como os pássaros. Sofia voa em suas memórias do não-vivido, suas decisões irreversíveis e tantas outras que poderiam ser diferentes. A personagem é caleidoscopizada neste longo instante expandido, sendo tantas que já não estão; uma, em possível arrependimento, tenta agarrar-se ao parapeito. Outra, lança-se ao mar abraçada a si mesma.

Neste momento que parece durar uma eternidade, nos tornamos testemunhas de alguém cujos tormentos levaram ao completo esvaziamento de sentidos. E acompanhamos, no seu último voo e subsequentes invenções, a imensidão da existência.

Como quando, na praia, ao vermos aos ondas se quebrando, não imaginamos a distância percorrida por elas. Não vislumbramos quanto movimento foi necessário para esse momento final. E, finda aquela onda, contemplamos o tamanho do mar em seu fluxo constante.

A atmosfera sonora construída por Cella Azevedo no início do espetáculo parece inserir o público dentro dos pensamentos, ruidosos e confusos, da personagem. O belo canto de Sonia Goussinsky, que pontua diversos momentos, traz ao mesmo tempo um tom lamurioso, quase fúnebre, e certa impressão de acolhimento e leveza.

A iluminação de Junior Docini faz Pina flutuar. Com recortes interessantes, faz excelente uso do espaço e da movimentação da intérprete. O uso moderado de uma luz frontal faz com que as sombras de Sofia sempre estejam bem a vista do espectador. Uma espécie de ribalta de LEDs, no fundo do palco, em conjunto com a fumaça liberada antes e em um momento específico do espetáculo, dá tons etéreos à cena de forma a alimentar o imaginário do público frente àquela narrativa.

Pina e Azevedo dividem a autoralidade da encenação – na ficha técnica, a intérprete também assina a concepção cênica e o figurino; a diretora e autora fica com corpo e desenho de cenas, além da adaptação da própria obra para o palco. Isso se revela no diálogo entre a movimentação livre – ainda que partiturada – de Pina e a formação técnica e poética de Azevedo. Vale ressaltar que a jovem atriz foi aluna de sua diretora, trazendo assim uma assinatura interessante em seu trabalho – aqui, reforçada pela presença da própria professora.

No ato final de “Trezentos e sessenta graus”, precisamente a invenção de Sofia, o diálogo entre ambas deixa de se fazer presente apenas no processo e se torna evidente na própria obra. Pina é jovem – ainda que talvez mais velha do que tantas Sofias – enquanto Azevedo já tem seus muitos netos. O texto dito pela atriz, parece, aqui, a voz da autora. Pina, essa Sofia imaterial e presente em cena, se desnuda para ser o que quiser. E é a voz daquela que já envelheceu e tanto sonha com quem não mais existe entre nós que enuncia os tantos possíveis que nunca serão. “Os mortos não envelhecem”, diz a jovem atriz, sorridente. Os que ficam, sim.