performance, teatro

no impulso de “Tropeço”

sobre Tropeço, dramaturgia-arquipélago de Anderson Feliciano, publicado pela Editora Javali

“No agora de mim e nas bordas do eu, o rio de águas revoltas caminha em direção ao mar do amanhã que serei” (Pequeno tratado amoroso)

Diante do primeiro momento em que sua mãe é descrita como negra, o narrador de O Avesso da pele, de Jeferson Tenório, como que decreta: a pele fora nomeada, a existência ganhara sobrenome. Mais adiante, ele ouvirá de seu pai que não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E que é necessário, precisamente, preservar o avesso (…) preservar aquilo que ninguém vê.

Está neste avesso, entre músculos, órgãos e veias, (…) um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E segue: são esses afetos que nos mantêm vivos. Pois parece estar nesta escrevivência dos afetos a experiência de Tropeço, dramaturgia-arquipélago de Anderson Feliciano.

A publicação da Editora Javali oferece ao leitor, conforme descreve o antropólogo e curador Hélio Menezes em seu abundante e afetivo prefácio, três fragmentos, três ilhas de um arquipélago investigativo mais amplo a que Anderson tem oportunamente chamado de Poética do Tropeço.

Após as três ilhas, há também o posfácio-manifesto Por uma Poética do Tropeço, elaboração do autor em torno das premissas e arcabouços de sua produção artística e trajetória de pesquisa. Feliciano afirma que, em constante movimento, a Dramaturgia do Tropeço é a ressignificação poética de uma fragilidade que não é só fraqueza.

Há na obra um ímpeto performativo que não apenas transcende o papel, a palavra escrita enquanto materialidade, mas ecoa – e, de certo modo, atualiza – a provocação de Janaína Leite no prefácio-manifesto do livro Hysteria/Hygiene, do Grupo XIX de Teatro, nomeada Nós, os ‘impublicáveis’, em espécie de resposta à afirmação de Jean-Jacques Roubine de que certas dramaturgias, construídas coletivamente, são inseparáveis da encenação.

Aqui não há a coletividade na autoria no que diz respeito à singularidade de Feliciano. Mas a Poética do Tropeço pesquisada pelo autor reverbera de modos distintos essa existência com sobrenome, seja na afetividade das relações intersubjetivas ou na política de segregação de corpos. 

A fricção entre estruturas e conteúdos emerge na referenciação direta à Rosa Parks em Outras Rosas, texto eminentemente performativo e terceira ilha de Tropeço. No posfácio, Feliciano pergunta: como pensar e elaborar velhos e novos problemas no contemporâneo relacionados às questões raciais, tendo em vista a preocupação pela busca de novas formas estéticas?

A questão transborda em Apologia III, fotoperformance onde além de raça, gritam também vivências de infância em torno da sexualidade bicha de Feliciano, que explora mais demorada e profundamente a homoafetividade masculina em Pequeno tratado amoroso.

A escrita performática torna-se o impulso não necessariamente para a Poética do Tropeço como um todo, mas enquanto possibilidade de uma materialidade que transcende o mero registro. Em Tropeço algo parece escapar, como em certas ilhas onde não se pode desembarcar; há algo de habitável, mas há também o selvagem e o inóspito. 

Ler as três ilhas presentes na publicação é um convite a navegar além. E, conforme Feliciano nos lembra em seu posfácio, analisar a dramaturgia contemporânea produzida por artistas pretes é navegar por mares desassossegados. Que paisagens são evocadas por essas existências com sobrenome? Tudo que artistas pretes escrevem são fragmentos, componentes, do Teatro Negro? Ainda é possível falar este nome e sobrenome no singular?

Ainda: o que significa analisar uma obra a partir deste enquadramento? O que resolve utilizar raça – e outros marcadores sociais da diferença – enquanto categoria? O que pode a crítica diante das novas invenções de mundo, formais, éticas, estéticas, que emergem efetiva e diuturnamente de criações de corpos, corpas, individualidades e coletividades ditas dissidentes?

No quinto exercício de Pequeno Tratado Amoroso, o narrador-performer-autor afirma que nenhuma ficção dá conta do que podemos inventar na vida. O que se inventa na vida está nesse espaço entre músculos, órgãos e veias; neste íntimo e imenso espaço dos afetos. É dali que nascem os impulsos para tantos tropeços e devires.