teatro

por um relicário vivo (a memória como desejo de futuro)

crítica de “KINTSUGI, 100 memórias”, do Lume Teatro.
foto: Arthur Amaral

Um homem que o sr. K. não via há muito o saudou com as palavras: ‘O senhor não mudou nada’. ‘Oh!’, fez o sr. K, empalidecendo. (Histórias do Sr. Keuner, Bertolt Brecht)

Completando 34 anos em 2019, o Lume Teatro — Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP — volta-se para a própria memória. Como outras vezes ao longo de sua trajetória, aproxima-se da cultura oriental na ideia que estrutura “KINTSUGI, 100 memórias”. O kintsugi é uma técnica japonesa cuja tradução possível é “emenda de ouro”. Trata-se de uma arte de reparo/restauração de cerâmicas quebradas fazendo uso de uma liga com pó de metais preciosos, como ouro e prata.

Mais do que o ato restaurativo em si, o resultado — onde as rachaduras ganham destaque — de tal processo enfatiza a imperfeição do objeto. Como se suas cicatrizes douradas carregassem-no de história. De memória. No palco vazio, uma cerâmica habita o centro. Entram Ana Cristina Colla, Jesser de Souza, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini. Eles brindam com saquê. Ferracini, com a cumplicidade de seus pares, ergue o objeto e deliberadamente o deixa quebrar. O Lume Teatro estilhaça o vaso para operar seu restauro; revisitando os fragmentos, olham para trás para mirar o agora que pousa futuros.

Para tanto, inventariam cem memórias individuais, coletivas e sociais. Grande parte delas é material — fotografias, objetos pessoais, figurinos e elementos cênicos de outros espetáculos do grupo — e está devidamente etiquetada e catalogada: o inventário está presente no programa do espetáculo. O brinde com saquê é a memória 01. O vaso que quebra, a 02.

Assim, o que antes era espaço vazio e habitado por um uno — o vaso, íntegro — se torna repleto de cacos a serem remendados. Primeiro, concretamente: em ação quase contínua, um dos atores ou atrizes sempre está operando o kintsugi no canto da cena. Depois, os estilhaços espalhados pela cena são os fragmentos a serem revisitados, reimaginados, reelaborados.

“KINTSUGI, 100 memórias”, do Lume Teatro / foto: Alessandro Soave

Pois toda memória é um ato de criação. Recupera-se o vivido a partir da ótica do momento presente. Para “KINTSUGI”, o Lume convidou o jovem dramaturgo carioca Pedro Kosovski para costurar este sem-fim de histórias que voltam à mente ao se olhar para o passado. Não por acaso, a parceria se mostra extremamente eficaz. Kosovski havia escrito, junto à Aquela Cia. de Teatro, a “Trilogia da Cidade”, que tensionava documentos, materiais e paisagens históricas a um olhar poético-teatral. Na sequência, escreve e dirige “Tripas”, autoficção onde revisita e ressignifica sua relação com seu pai, o ator Ricardo Kosovski — em cena no monólogo.

Aqui, sem dúvidas, o trabalho do dramaturgo foi abrir a escuta não apenas para as tantas memórias a serem organizadas, reescritas, reconstruídas; mas também para compreender o caráter da performatividade do grupo que estaria colocada em cena. O texto de Kosovski conduz o público por este inventário caleidoscópico; e ao mesmo tempo que muito é dito, tanto não se pode explicar — nas narrativas, há muito que apela ao sentir.

A direção do argentino Emilio García Wehbi, também convidado pelo grupo, aproveita a extrema competência de seu elenco para criar composições cênicas que retomam pesquisas tão caras ao Lume e, ao mesmo tempo, constroem — quase que despretensiosamente — algo de novo, algo pulsante. Como se as memórias sendo organizadas espacialmente compusessem não um cenário, mas um relicário vivo.

Jesser de Souza e Ana Cristina Colla em “KINTSUGI, 100 memórias”, do Lume Teatro / foto: Alessandro Soave

O resgate da memória, no entanto, não a sacraliza; seja no jogo com a assunção do inegável dado de representação presente na teatralidade da obra, seja na forma de encarar as tantas “versões” de um mesmo acontecimento — memória é também sonho, é exagero. É invenção.

Na criação, assinada por Wehbi, Kosovski e o elenco, importante não é a mera busca da unicidade a ser recuperada — seja o kintsugi realizado no vaso, seja o realizado em relação às cem memórias — mas sim o novo olhar sobre aquilo que já existia. A compreensão de que, em muitas memórias, alguém agiu de maneira imperfeita — o que quer que isso signifique — e que também em seu resgate também provavelmente haverá imperfeições, imprecisões.

O que se estabelece ao final de “KINTSUGI” é precisamente o fato de que toda memória carrega em si desejos de futuro, talvez desde o momento em que ela era ação presente; mas principalmente ao ser retomada depois. O acontecimento que é tantas vezes revisitado pela obra reverbera, em suas muitas versões, o agora que era, então, um futuro desejado.

Jesser de Souza em “KINTSUGI, 100 memórias”, do Lume Teatro / foto: Alessandro Soave

Desse modo, entre as tantas camadas operacionalizadas pelo espetáculo parece emergir como potência central a performatividade de um grupo. Ao reabitar instrumentos, canções, cenas, ressalta-se o entremear entre arte e vida daqueles artistas. O peso das memórias a serem carregadas, aquelas que seriam ou não passadas em frente, as ignoradas; entre o intangível da memória e tantos objetos afetivos, toda uma existência pode caber no espaço demarcado da ação.

A presença de Luis Otávio Burnier — fundador do Lume Teatro e precocemente falecido aos 38 anos, em 1995 — é inevitavelmente evocada. Seja em um sonho de Ferracini, seja na leitura de trechos dos diários dos atores. A imagem mais bonita talvez esteja localizada no item 07 do inventário. A almofada de Burnier está em cena. É tocante ver, como acontece algumas vezes, um de seus discípulos sentando nela para observar seus colegas.

Estruturando esta autoficção com um olhar que se volta majoritariamente para a trajetória do grupo o que se estabelece em “KINTSUGI” é uma ode e uma defesa ao fazer artístico. Há um caráter político que permeia muito da obra, mesmo quando isso nem necessariamente é dito. Em um jogo de palavras interessante na escolha do subtítulo, as cem memórias também ressoam o que é não tê-las — sem memórias.

Renato Ferracini em “KINTSUGI, 100 memórias”, do Lume Teatro / foto: Alessandro Soave

Neste sentido, duas camadas são friccionadas de maneira provocativa. Na pesquisa de campo, o Alzheimer foi o foco; o grupo visitou pacientes com demência e conversou com especialistas. Ao mesmo tempo do desvanecer da memória daqueles indivíduos, um país revelando-se cada vez mais desmemoriado.

Ao trazer estas pessoas para a cena por meio de suas fotografias, imagens, dizeres e ações, Wehbi, Kosovski e o Lume sintetizam o discurso da encenação. Em um dos relatos, a paciente dizia que não gostaria de esquecer de nada, pois são todas as memórias que nos fazem ser quem somos. Em outro, um paciente já em estágio muito avançado pouco se lembrava em palavras, mas recuperou o gesto de um saque de tênis com precisão.

Se o corpo não é tão somente corpo, mas corpo-em-vida, então ele é o canal por meio do qual o ator entra em contato com aspectos distintos de seu ser gravados em sua memória. O corpo não tem memória, ele é memória, como disse Grotowski. (Luis Otávio Burnier; A Arte de Ator, Revista do Lume 2 / Revista ILINX 1)

Ao recuperar canções e partituras corporais de espetáculos anteriores, as pesquisas do grupo ressurgem ainda potentes; na composição — breve e belíssima — do que se pode afirmar ser a mímese corpórea (uma das linhas de trabalho do Lume) do corpo-memória de um paciente que de tanto já esqueceu parece que tudo está sendo dito.

Renato Ferracini e Ana Cristina Colla em “KINTSUGI, 100 memórias”, do Lume Teatro / foto: Alessandro Soave

Ainda relacionada ao Alzheimer está o desenho sonoro de Janete El Haouli e José Augusto Mannis. A presença constante deste “bordado sonoro”, como o programa nomeia, uma atmosfera constante que envolve sutilmente a cena partindo dos “Noturnos” de Chopin, remete à possibilidade de portadores deste mal acessarem e resgatarem memórias a partir de estímulos musicais — e acaba por agir da mesma maneira com o público, que vai sendo absorvido por ela quase sem notar.

Capturados pelo narrar — e reviver o lembrar — dos atores, os espectadores se aproximam e se identificam; além de certo distanciamento constante, a fim de visitar suas próprias lembranças. E no palco já tomado por muitas das cem memórias do inventário a ser posto em cena, Ferracini surge com um “Time Capsule” da Apple — um dispositivo de back-up — e afirma estar ali toda a memória do Lume. Se por um lado é verdade, é curioso contrapor um pequeno objeto em suas mãos ao espaço cênico tomado por objetos incrustrados de história.

Passado, presente e futuro se colocam em trânsito frequente durante toda a encenação. Quando Colla traz o relatório médico de sua mãe e conta sobre o encontro que teve com ela, é como se a memória fosse mais verdadeira do que o momento presente. O que é a memória no agora? É como estruturamos quem somos? É onde nos recriamos?

Recuperando o estilhaçado à muitas mãos, “KINTSUGI, 100 memórias” compreende que memórias são sementes de futuro e a importância das imperfeições na composição de quem somos. O único lugar possível de se conceber futuros é no presente. Na corrida — recuperada de “Shi-Zen, 7 Cuias” — que não avança, o ímpeto não deixa de ser em frente; de seguir. No poema de Álvaro de Campos que finda o espetáculo, o único medo é o do não-sonhado; da memória impossível de ter-se construída.

(…)

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.

(…)

(Álvaro de Campos)

Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini em “KINTSUGI, 100 memórias”, do Lume Teatro / foto: Alessandro Soave