teatro

profanar túmulos, imaginar vidas

crítica de “Criatura, uma Autópsia”, solo de Bruna Longo

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Frankenstein. Curioso pensar que este nome remete, muitas vezes, à criatura e não ao criador. A história escrita por Mary Shelley, muito conhecida e talvez pouco lida, é ponto de partida para Criatura, uma Autópsia, de Bruna Longo. O programa do espetáculo contextualiza não apenas a pesquisa de Longo, mas também a vida de Shelley e sua obra Frankenstein ou o Prometeu Moderno e apóia a recepção da peça

O processo criativo iniciou-se pelo interesse de Longo na solidão da criatura. A artista viu os rumos de seu trabalho se transformarem ao entrar em contato com a biografia de Shelley — ela teve acesso aos manuscritos originais da autora e de sua família, guardados na Universidade de Oxford. O projeto é absolutamente autoral: a atriz assina concepção, dramaturgia e trilha, além de dividir o cenário com Kleber Montanheiro e ter Larissa Matheus colaborando com os objetos.

Surge uma relação interessante na construção de monólogos que partem de anseios pessoais. A artista cerca-se de provocadores e colaboradores para nutrir o trabalho com um olhar de fora, mas sem perder a total autonomia da criação. Para além de qualquer valoração, o resultado é fruto dos desejos e caminhos definidos pela pessoa que concebeu o projeto.

Em Criatura, uma Autópsia, Longo estrutura o solo principalmente sobre uma dramaturgia física, mesmo que haja uma densa textualidade. A fisicalidade da encenação se evidencia quando a atriz se torna a criatura de Frankenstein. Intérprete hábil, constrói a trajetória de toda uma existência angustiada sem usar palavras. Porém, este dado já está presente desde o início. É seu corpo em relação ao espaço — e fundamentalmente nas ações com os objetos — que comporta uma intrincada narrativa.

Bruna Longo em “Criatura, uma Autópsia” / foto: Danilo Apoena

No tensionamento entre vida e obra, emerge como central a relação de artistas com o mundo que os circunda. Assim como em Frankenstein, a busca da criação — aqui artística — também se relaciona com criar vida a partir das perdas. Criatura sobrepõe biografia, invenção e romance na reflexão acerca dos túmulos que profanamos constantemente.

O mundo pode ser visto como um cemitério de lembranças. Lugares e momentos muitas vezes se enterram em nossas memórias e podem ser evocados ou evitados. Na arte, muitas vezes, não é possível fugir do que nos constitui. Shelley, na introdução de uma edição de Frankenstein, questiona-se sobre como uma garota tão jovem pode escrever algo tão terrível — ela tinha apenas 19 anos à época. O olhar inquieto e aprofundado de Longo sobre sua biografia permite que Criatura sugira hipóteses.

A mãe da autora, Mary Wollstonecraft, uma das vozes de um movimento feminista ainda emergente no norte do mundo, veio a falecer dez dias após o parto. Desde o nascimento, a vida de Mary Shelley foi acompanhada e cercada da morte. O espetáculo de Longo passeia por estas histórias, entre diários, trechos de Frankenstein e poucas inserções da atriz. Neste sentido, é bem-vindo o subtítulo uma Autópsia.

Não se trata de obra biográfica, tampouco se narra a — complexa — história do romance. Criatura se localiza neste lugar de busca; da relação entre doutor e criatura, criador e criação. Assim, no trânsito entre as camadas da narrativa, por vezes alguns dados podem não ser compreendidos de imediato — momentos específicos podem gerar certa confusão, mas nada que interfira na relação do público com o espetáculo.

Bruna Longo em “Criatura, uma Autópsia” / foto: Danilo Apoena

No cenário de Longo e Montanheiro, uma diagonal é estabelecida pelo contorno de duas correntes. A delimitação do espaço potencializa os momentos em que a atriz transgride esses limites. Para além de ações específicas, porém, há outras em que a corrente parece ser algo demasiado simples de ser atravessada, o que gera certo ruído.

Nas pontas da diagonal, constroem-se dois nichos. Ao fundo, parecem acumular-se os materiais da vida de Shelley. Representações de suas dores, pulsões e perdas. Na frente, os instrumentos; entre o rudimentar, o místico alquímico, a pena e o papel, as possibilidades de criar vida. A trilha, que também é concebida por Longo, apresenta-se às vezes como uma sonorização perturbadora.

Criatura, uma Autópsia faz poucas concessões ao espectador. O silêncio inicial, o uso das narrações em off e um importante dar-se o tempo para as explicações — ou contextualizações. Há muito do não-dito na dramaturgia, da solidão, da morte; das formas de se lidar com as dores inomináveis do mundo. A arte, essa criatura que muitas vezes não pede para nascer, segue buscando seus caminhos.

Bruna Longo em “Criatura, uma Autópsia” / foto: Danilo Apoena