teatro

cenas curtas, dia 1 — os tempos para as almas

olhar de amilton de azevedo sobre o primeiro dia [24/9] do 20º Cenas Curtas, do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (MG).

Embarco no voo Congonhas — Confins. Há anos não viajava de avião. Altitude de cruzeiro. Olho pela janela e sorrio como uma criança. As nuvens vistas de cima lembram-me da beleza do mundo, que andamos a esquecer pelo que está sendo feito dele. Chegando em Belo Horizonte, passo mais tempo no uber até o hotel do que no ar. É interessante essa relação entre os tempos. 20 anos de Cenas Curtas. Um recorte contado em 45 minutos de documentário. Na Mostra de Cena-Espetáculo, 15 minutos para, como disse Chico Pelúcio, “acalmar ou acordar a alma”. No pouco tempo entre as ações no palco, o público conversa, celebra, compra cervejas; o teatro como essa festa do encontro, do estar junto. Como é lido no final do documentário, “resistir não é sozinho”.

Desde 2000, o Galpão Cine Horto realiza de forma ininterrupta o Cenas Curtas. Chegando à vigésima edição, lança agora um documentário que registra essa história. Produzido em apenas dois meses por Marcos Coletta e Paula Dante, Cenas Curtas 20 anos: A Festa dos Encontros será exibido todos os dias do festival. São depoimentos preciosos de muitas pessoas envolvidas na construção deste acontecimento pungente no cenário teatral da cidade de Belo Horizonte que agora completa duas décadas.

Chico Pelúcio, diretor e coordenador geral do Galpão Cine Horto, em suas falas (antes da exibição do filme e na abertura da Mostra de Cena-Espetáculo) na terça, 24, falou sobre a necessidade de se pensar políticas públicas como projetos de Estado, e não de governo. É mesmo um ato de resistência realizar um festival por tantos anos sem nenhuma interrupção. Pelúcio lembra que cultura nunca foi efetivamente prioridade de um governo. Mas artistas e trabalhadores da cultura insistem.

O Cenas Curtas é um ato de resistência, insistência e celebração. Do impulso de realizar um festival neste formato até sua materialização como possibilidade de experimentação livre de artistas das mais variadas linguagens e gerações, a lembrança de que é possível concretizar alguns sonhos.

O público abraça o evento e lota o Teatro Wanda Fernandes no primeiro dia, para a Mostra de Cena-Espetáculo, com as quatro vencedoras da Mostra Rascunho de Cena. Nos entreatos, propostos pelo projeto Rampa (de Marcelo Veronez, Claudia Manzo e Luisa Bahia), artistas convidados experimentam tensões entre música, performance e teatralidade. Servindo como um respiro entre a diversidade das cenas, traz também potências próprias. Assim, não necessariamente harmoniza mas — positivamente — desarranja leituras e organizações sobre o que se vê e experiencia.

“Transe” / foto: Guto Muniz

Na primeira cena, o que pode a arte fazer em tempos de violência? Como a arte responde à violência nos países de América Latina? Transe, da Maldita Cia de Investigação Teatral, parece evocar nossos fantasmas. Entre o documento e o ritual, o real e a mediação em vídeo, a Maldita Cia cria imagens que transitam da dor e da angústia para a ressignificação e a superação. Na presença e no poderoso relato de Emely Vieira Salazar, presa e torturada durante a ditadura civil-militar brasileira, riso e perplexidade suspendem a recepção do público.

O estranhamento segue no relato do ex-torturador, interrompido pelo riso histérico de um ator. É como se a evocação deste Eichmann brasileiro servisse para expurga-lo por meio do escracho. Nos corpos dos performers, as palavras de longe remetem à pinturas corporais dos povos originários. Entre a paralisia e o transe, a arte aqui busca formas de lidar com as dores da memória; do ontem e do hoje.

A segunda Cena-Espetáculo é a curiosa Quem vai olhar as crianças?, de Raquel Castro, no palco com cinco jovens garotas. Essencialmente irônica, de algum modo faz lembrar das crianças nos filmes de Wes Anderson: sempre mais sagazes do que os adultos, mas sem perder sua ingenuidade. Castro interpreta uma ex-deputada que está focada em mudar o panorama machista da política — e para isso, está “preparando” meninas para disputar cargos no executivo e no legislativo.

“Quem vai olhar as crianças?” / foto: Guto Muniz

Seu comportamento junto à elas e suas escolhas de organizar uma espécie de competição revelam sua reprodução de padrões e expectativas do patriarcado. Nos discursos escolhidos pelas jovens há muita potência: do histórico “Não serei interrompida” de Marielle Franco ao recente desabafo de Greta Thunberg, as garotas articulam lucidez, esperança e doces doses de ingenuidade. E no final, entre enigma e assertividade, a tomada para si da possibilidade de construir narrativas outras ao confrontar nossa linha sucessória presidencial.

Em Rueiros, terceira cena, o Grupo dos Dez e o Coletivo Fio Cena, uma ciranda de pequenos momentos de vida num espaço da cidade. Ao contar-cantar tantas histórias de modo quase sobreposto, a cena traz uma cacofonia que remete mesmo ao andar da cidade, ruidosa. No entanto, encontram seus momentos harmônicos, onde a polifonia constrói bonitas imagens de encontros. Nas interações entre as personagens, fragmentos de vidas que se cruzam cotidianamente sem se dar conta em torno de um acontecimento comum e a beleza emerge.

“Rueiros” / foto: Guto Muniz

Encerrando a Mostra Cena-Espetáculo, Um Preto, da Companhia Negra de Teatro, estabelece-se como um acontecimento pungente logo na primeira imagem. Três homens surgem, no contraluz, segurando instrumentos musicais. Ecoa, de certo modo, a foto do Projeto Favelagrafia/Anderson Valentim dos jovens do Morro do Turano com rostos cobertos e portando instrumentos de sopro como armas. Diferente deste registro, aqui há um refinamento estético de outra ordem. Na sonoridade, no corpo que dança, na voz falada e cantada, Um Preto é manifesto pela pluralidade.

Contra as pretensas universalidades hegemônicas, múltiplas existências negras são evocadas. São tantas e tantos que nem precisam ser nomeados para que lembremos dos tantos possíveis que há por trás de uma identidade racial. Ousada, a cena propõe uma espécie de clímax no seu meio. Após os aplausos que talvez imaginassem que nada mais precisaria ser dito após aquilo, Felipe Soares segue não precisando nomear para ser entendido: sua fala é codificada em metáforas, mas os questionamentos colocados por ele permanecem latentes ao final de Um Preto.

“Um Preto” / foto: Guto Muniz

Ainda há mais ações no Cenas Curtas: os Rolês, em frente ao Galpão Cine Horto. Vejo a instalação Escora para Tetos Prestes a Desabar, de Luana Vitra. A bandeira nacional feita de cimento e lama pela artista está sustentada por quatro escoras utilizadas na construção civil. A luta é para que o céu não caia, parafraseando o pensamento de Davi Kopenawa sobre a cosmovisão dos povos originários sobre o fim do mundo. Acima de nós, essa bandeira atualizada que remete a um país sob risco. Do outro lado da rua, já está acontecendo Quanto Pesa, de Lucas Dupin e Ludmilla Ramalho. A bandeira nacional aqui é negra. E se torna a cada instante mais insustentável.

Ao término do primeiro dia, frente à tanta angústia que nos circunda nas mais diversas áreas da vida, o Cenas Curtas lembra que a arte segue viva. Sem dúvida, Pelúcio, as cenas acalmaram e acordaram muitas almas. Em tempos difíceis, quinze minutos é espaço enorme de potência e afeto.

[amilton de azevedo está em Belo Horizonte à convite do Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. texto com colaboração de Andréa Martinelli na edição]