teatro

dos tempos que fogem ao que se sonha da humanidade

crítica de “A Neve ou Fora de Controle”, de René Piazentin com a Cia. dos Imaginários.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

René Piazentin é o primeiro dramaturgo a ser contemplado duas vezes pelo edital da Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Seu texto O Taxidermista foi selecionado na primeira edição; Piazentin dirigiu o próprio texto junto à sua Cia. dos Imaginários.

Agora, na 5ª Mostra do importante projeto do CCSP, assina dramaturgia e direção de A Neve ou Fora de Controle, também ao lado dos Imaginários. O título da obra já traz consigo a potente metáfora que se estabelece de forma cristalina ao longo da encenação. Inicialmente é a perplexidade frente ao início do cair da neve em pleno Rio de Janeiro que cria a atmosfera que flerta com o realismo fantástico, tão característico de autores latinoamericanos.

Nas cenas, a imagem deixa de estar apenas no texto e passa a ganhar corpo. A neve cobre a cabeça das personagens, seus figurinos, o palco. O inexplicável que nos circunda foge da lógica; entre o estranhamento e a normalização, pouco se questiona sobre esse acontecimento. Soma-se a isso o procedimento da dramaturgia de Piazentin que sobrepõe passados e presentes; memórias, sonhos e realidades.


no primeiro plano, Izabel Hart como Neneno em “A Neve ou Fora de Controle” / foto: Melissa Guimarães

Quando começou a nevar? Quando as coisas passaram a estar fora de controle? Na trama, Thais (Aline Baba) e Carmem (Fernanda Gama) tentam encontrar Pedro (Rodrigo Sanches) de modos distintos. O espetáculo começa em uma fala de Thais que parece endereçada ao público; ao sacar o celular, entende-se que é uma mensagem para seu companheiro.

Carmem insiste que será impossível contatá-lo desta maneira. E que ele está falando com ela por sonhos. É neste jogo que a encenação torna-se extremamente dinâmica e pluraliza seus significados. No cenário de Eliseu Weide, praticáveis móveis entram e saem de cena, com a fluidez dos tempos que se misturam e a fragilidade da história.

Alguns dos objetos trazem consigo nichos definidos — além do belo painel, assinado por Weide, da paisagem carioca em tons talvez tropicalistas — mas seus usos se ressignificam de acordo com as necessidades da encenação de Piazentin. Celas de prisão ganham tamanhos diversos; salas de escusas reuniões políticas ganham espelhos um tanto sombrios.

Serena (Renata Grazzini) e Dodô (Mateus Pigari) em “A Neve ou Fora de Controle” / foto: Melissa Guimarães

A iluminação de Melissa Guimarães dialoga com a cenografia e as atmosferas de A Neve. Não há excesso nos recortes, mas uma precisão que encontra propostas que resultam simples e eficazes. Piazentin assina a trilha sonora que ambienta alguns momentos e, no todo, contextualiza um tempo histórico, central para a obra.

Tudo aparenta certa normalidade — afora a neve. Enquanto alguns aproveitam os momentos de sol, Thais e Carmem vão à praia pois assim sabem que terão privacidade. É sobre a ditadura, mas é também sobre os tempos que correm. O jogo com o onírico, além de escolhas inteligentes que inquietam o espectador, constroem uma ponte que escapa do lugar-comum de igualar o contexto pós-golpe de 1964 com o pós-golpe de 2016 sem tensioná-los.

A inserção orgânica de menções que parecem ser diretas na tessitura da dramaturgia não compromete a complexidade de A Neve. Na construção segura de Renata Grazzini, as palavras de Serena se redimensionam no uso de uma fala que remete diretamente a um relato da ex-presidenta Dilma Rousseff presente no documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, sobre sua lida com a tortura. Este torna-se um potente gatilho para o desenrolar do espetáculo.


Aline Baba como o ‘senhor presidente’ em “A Neve ou Fora de Controle” / foto: Melissa Guimarães

Na reunião política sonhada por Carmem, também há referência à primeira mulher presidente do Brasil: no estranhamento de Thais — que é tornada “senhor presidente”, ainda que de tailleur vermelho — a leitura da cena transita entre reuniões imaginadas de Dilma com seus aliados que viriam a derrubá-la, além de também ecoar o cenário enfrentado por Jango pré-golpe civil-militar.

Entre a repetição da história como farsa e uma construção parodística, A Neve propõe a truculência dos militares como uma palhaçaria perversa. Na relação do Militar (chamado de “Escrotão” pelos demais personagens) com Neneno, Gustavo Xella e Izabel Hart compõem uma espécie de dupla Augusto e Branco. As cenas de tortura — ainda que se tornem mais cruas e densas no decorrer da encenação — começam quase como gags de circo.

Cabe ressaltar o trabalho de Hart como o personagem que, possivelmente, carrega consigo o arco dramático mais interessante nas trajetórias da encenação. Hábil e carismática, a atriz articula leveza e precisão enquanto passeia pelos contextos em que Neneno se insere. Com um elenco equilibrado, A Neve mantém o espectador inquieto e em constante dúvida acerca do desfecho da encenação.

“A Neve ou Fora de Controle” / foto: Melissa Guimarães

Além disso, diversas pérolas se espalham por toda a dramaturgia. Na curiosa figura de Serena, a poderosa imagem de respirar — ou mesmo viver — “a meio-fôlego; ponto morto”. Não se sabe quando começou a nevar — nem quando vai parar. Tampouco se compreende em que momento isso se tornou natural. Até mesmo nas intervenções de Leandro Galor como locutor de rádio, os flocos acumulam-se em meio às duvidosas notícias que intercalam o futebol e a política.

Há muitos méritos no texto de Piazentin. Em que pese sua densidade nas duas horas de duração, é importante ressaltar a elaboração que sustenta o final, não reduzindo-o à mero golpe dramatúrgico. Surpreendente, rompe com os horizontes de expectativa e emociona.

A percepção de que todo um pensamento de humanidade se encontra Fora de Controle parece permanecer fundamental — uma preocupação atemporal. Caso contrário, seguiremos todos tomando sol à meio-fôlego; vendo a neve cair ao nosso redor; perplexos, em ponto morto. O que se sonha dormindo, o que se sonha acordado: em tempos que fogem a qualquer entendimento, poetas se vão; mas a poesia de utopias imaginadas sempre permanece.

Rodrigo Sanches como Pedro em “A Neve ou Fora de Controle” / foto: Melissa Guimarães