teatro

a raiz do baobá: semear imaginários (numa mala cabe a vida?)

crítica de “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus”, do coletivo O Bonde.

Maio de 2015. A notícia de um garoto de 8 anos encontrado dentro de uma mala na fronteira entre Marrocos e o enclave espanhol de Ceuta, no norte da África, corre o mundo. “Je m’appelle Abou”, disse o menino, ao ser encontrado. Ele se chama Abou. Seus pais, que viviam nas Ilhas Canárias legalmente, queriam traze-lo para perto; por questões burocráticas, não conseguiram. E Ali Outara, o pai, pagou então 5 mil euros para que ele passasse pelos controles aduaneiros — e afirmou, à época, não saber que iriam colocar seu filho em uma mala.

A foto do escaneamento que detectou Abou dentro da mala, frente ao contexto atual — uma crise global de refugiados, cujos números batem novos recordes a cada ano — já carrega consigo uma poderosa narrativa. Mas para além do uso desta imagem como metáfora, que outras histórias ela pode contar? Que outros sentidos poderia suscitar?

Em uma palestra realizada em uma conferência TED, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie refletiu acerca dos perigos de uma história única sobre alguém ou algum lugar. Ao reduzirmos nosso imaginário a uma única narrativa, nós o fechamos para todas as outras coisas que algo, alguém ou algum lugar também é — ou pode vir a ser.

Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso. (Chimamanda Ngozi Adichie)

Em “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus”, espetáculo infanto-juvenil de estreia do coletivo O Bonde, um dos narradores afirma, mais de uma vez, que “toda história é sagrada”. Essa reconquista do paraíso proposta por Adichie (parafraseando Alice Walker) é atingida por uma dupla operação na obra escrita por Maria Shu. A dramaturga parte do fato real para criar um Abou entre o ficcional e a realidade; entre a leveza da imaginação e a dureza do concreto.

Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus
“Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus” / foto: Tide Gugliano

Além da possibilidade de construir uma história outra sobre este menino que tão pouco se soube, há o dado fundamental de se tratar de uma história sobre África contada por artistas negros. Representatividade é importante por diversos motivos; um deles é a possibilidade da construção de imaginários diversos. De saber que um espetáculo infanto-juvenil pode contemplar narrativas afrocêntricas — que talvez falem muito mais ao Brasil do que fábulas europeias.

E quando comecei a escrever, por volta dos sete anos, (…) eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. (…) E eles falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido, apesar do fato que eu morava na Nigéria. (Chimamanda Ngozi Adichie)

Compõem o coletivo O Bonde os jovens atores Ailton Barros, Filipe Ramos, Jhonny Salaberg e Marina Esteves, todos oriundos da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Eles se revezam, de forma dinâmica, como narradores da história de Abou. Acompanhados em cena pelos musicistas Ana Paula Marcelino e Anderson Sales (dirigidos por Cristiano Gouveia, que também compôs as belas canções originais do espetáculo), rapidamente capturam a plateia.

Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus
“Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus” / foto: Tide Gugliano

Em alguns momentos, as cenas ganham uma densidade que pode resultar cansativa para algumas crianças mais novas. A escolha por inserir concretamente dados da realidade e não abrir mão do discurso crítico torna a obra exigente — o que passa longe de ser um demérito.

A direção de Ícaro Rodrigues leva a cena criativas imagens em diálogo com o poético texto de Shu. Nesse sentido, cabe ressaltar a cenografia de Eliseu Weide (que também assina os figurinos) e a certeira escolha de utilizar a tão referenciada mala como central na encenação. No painel do fundo, dentro das muitas malas cabe a paisagem africana — e não são tantos os que já saíram de lá levando consigo todas suas raízes dentro de uma pequena bagagem?

As imagens e metáforas estão o tempo todo em fricção com a realidade do mundo. A mala, transformada em cachorro por Abou, é chamada de Ile. A palavra em iorubá pode ser traduzida como casa, lar — e é utilizada para se referir à casas de candomblé; terreiros. E se por um lado o garoto concretamente habitará aquela mala por algum tempo, por outro parece haver a sugestão de que mesmo em movimentos diaspóricos, não se deixa nunca para trás todo o seu lar.

A lida do garoto com seu contexto, de certo modo conduzida por seus pais — representados aqui por bonecos sobre malas de Weide — pode remeter aos procedimentos de “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni. A imaginação é aqui também proteção contra os terrores do mundo. Porém, o público-alvo de “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus” são efetivamente os pequenos — e a obra, ainda que talvez de forma mais sutil para as crianças do que para os adultos, não deixa de revelar as péssimas e violentas condições de vida presentes no mundo; especialmente no tangente à situação africana.

Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus
Marina Esteves em “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus” / foto: Tide Gugliano

O espetáculo estabelece-se, então, como um contundente elogio à um imaginário livre. Uma defesa da imaginação enquanto potência; enquanto ferramenta para existir no mundo em plenitude. Com canções em iorubá e a construção de narrativas que dizem respeito à cosmovisão deste e de outros povos de África, a obra subverte os padrões de uma moralidade “ocidental” e abre um campo de possibilidades para que imaginários outros também emerjam.

Trata-se de um infanto-juvenil corajoso — e que exige esta coragem também dos pais; abertos e dispostos a apresentar, sempre com tons lúdicos e poéticos, temas tão importantes para seus filhos e filhas. Conforme afirma o programa, “é uma peça para crianças de todas as cores e idades”. Para o público negro, um vislumbre da representação de sua ancestralidade; um resgate de seu imaginário. Para brancos, a chance de construir uma história outra; de ampliar os horizontes.

Neste sentido, cabe também refletir o que queremos dizer ao falar de um “teatro negro”. Há um importante movimento na cena contemporânea de racialização de certas discussões estéticas — e também éticas. O fundamental, talvez, seja não perder de vista que a pesquisa efetuada pelo coletivo O Bonde (e por tantos outros) não dialoga apenas com a negritude. A localização do discurso consolida um ponto de partida — e uma afirmação artístico-política — mas não circunscreve a obra a um determinado público. Muito pelo contrário.

É um alento para os tempos que correm verificar o brilho no olhar dos intérpretes, engajados com a história sendo contada e com a escuta atenta para as reações do público. A carga política é evidente em “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus”. Nas interferências da “rádio Abou”, a informação vem com tons de denúncia. Ainda assim, a potência maior da obra é lidar com essa densa temática sem perder de vista a delicadeza e a beleza. A poesia do espetáculo encanta crianças e emociona adultos.

As transformações no cenário e os usos das malas e outros recursos surpreendem o espectador. Na afirmação constante do poder libertador do fomento à imaginação, esta se consolida como a maior arma daqueles que sonham com tempos melhores. É ela quem pode proteger uma frágil semente até que floresça o baobá.

Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus
“Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus” / foto: Tide Gugliano