teatro

todos os olhos sobre eles

crítica sobre Desfazenda – me enterrem fora desse lugar, do coletivo O Bonde, com direção de Roberta Estrela D’Alva.

“Na fina camada entre memória e esquecimento, por vezes o que se revela, desconcertante e assustador, é o presente.”

(epígrafe do documentário Menino 23)

Todos os olhos sobre eles. Coletivo O Bonde. Quatro pessoas pretas, em um palco preto, recortadas pela luz branca. Quando a peça-filme Desfazenda – me enterrem fora desse lugar chega ao teatro, após o prólogo onde o céu é o mar em movimento, o sample de Tupac (All Eyez On Me) pode ser entendido como afirmação ou pedido. Vidas pretas, em nosso país e em tantas outras partes do mundo, parecem existir sempre entre a hipervisibilidade e a invisibilização.

Quando Sarí Corte Real abandona o garoto preto Miguel Otávio de Santana, de 5 anos, em um elevador e aperta o botão da cobertura, é porque para ela, ele deveria sumir. Assim como desapareceram Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique, os três meninos de Belford Roxo, em dezembro do ano passado e, oito meses depois, a investigação segue em aberto. Invisíveis.

Quase como paradoxalmente, pessoas pretas são também hipervisíveis na sociedade racista em que vivemos. Luiz Carlos foi constrangido por seguranças do supermercado Assaí, de Limeira (SP), e teve de ficar de cuecas para provar que não roubou o estabelecimento. No estacionamento de um Carrefour de Porto Alegre (RS), João Alberto Silveira Freitas foi espancado até a morte pelo policial militar Giovani Gaspar da Silva e por Magno Braz Borges, segurança da loja. Era a véspera do Dia da Consciência Negra.

Enquanto isso, no primeiro mundo, George Floyd seguiu sendo uma ameaça para Derek Chauvin, policial branco, durante os oito minutos e quarenta e seis segundos em que seu joelho o estrangulava no chão. Anos antes, Eric Garner disse onze vezes a Daniel Pantaleo, outro policial branco, que não conseguia respirar.

Todos os olhos sobre eles o tempo todo. Ou nunca. Demorou sessenta anos para a história dos meninos tornados números e escravizados na fazenda Santa Albertina, no interior de São Paulo, vir à tona. Foi só em 1998 que o historiador Sidney Aguilar Filho revelou o que lá acontecia nos anos de 1930. Dona da fazenda, afamília Rocha Miranda, composta por industriais cariocas abastados e nazistas, membros da Ação Integralista Brasileira, “adotou” cerca de cinquenta crianças, majoritariamente negras, em um orfanato do Rio de Janeiro.

É a partir da pesquisa de Aguilar Filho que o diretor e roteirista Belisário Franca filma Menino 23 – infâncias perdidas no Brasil, inspiração para a dramaturgia de Lucas Moura em Desfazenda. O documentário esmiúça as estruturas racistas que possibilitaram o caso emblemático, que é infelizmente mais um dentre tantos de nossa triste e violenta história. Para tanto, traz ao centro personagens que vivenciaram o ocorrido e, assim, versa sobre as dores de cicatrizes jamais cicatrizadas em indivíduos e na sociedade. Já a peça-filme do O Bonde fabula novos sentidos e significados a partir da ficcionalização dos acontecimentos e subjetividades.

O Bonde em "Desfazenda"
Ailton Barros, Filipe Celestino, Marina Esteves e Jhonny Salaberg: O Bonde / foto: José de Holanda

O segundo trabalho do coletivo formado por Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves mais uma vez lança o olhar para um fato histórico e constrói, a partir daí, a sua narrativa. Em Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus (2019), a dramaturgia de Maria Shu conta a história de Abou, inspirado no menino de oito anos encontrado dentro de uma mala na tentativa de cruzar a fronteira da Espanha em 2015.

Voltado ao público infantil de todas as idades, cores e elementos cênicos povoavam o palco, e O Bonde contava e cantava a narrativa de travessia do jovem garoto, fincando as raízes do baobá em um movimento de semear imaginários. Agora, em Desfazenda, a palavra falada é o núcleo duro de uma história em preto e branco.

O palco nu é pouso de três atores, uma atriz e quatro microfones com pedestais. A caixa preta crua amplifica a sensação de clausura daquelas personagens narradas, cuja vida desde muito cedo era trabalho forçado e permanência. Com direção de Roberta Estrela D’Alva, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, a síntese dos elementos e a precisão do diálogo entre voz, corpo, luz, fotografia e trilha remete à Vai te Catar!, espetáculo solo de spoken word da atriz-MC que estreou em 2008.

O desenho de luz de Matheus Brant, que também assina direção de fotografia e, ao lado de Gabriela Miranda, direção de imagem e montagem, é um quinto ator na peça-filme. Além do jogo entre revelação e ocultamento, ela também oscila em suas significações. Vemos vultos na negridão da noite, corpos golpeados pela branquitude do brilho pra deixar cego que cantam Emicida e Karol Conká em Todos Os Olhos em Nóiz. E silhuetas com contornos tão bem definidos em sua unidade que nem se pode imaginar que tem seus múltiplos rostos cobertos por instrumentos de dominação colonial.

Se em Quando eu morrer poderíamos ver no baobá um desejo de futuro, a natureza aqui é a favela. A potência ancestral que ali poderia haver é agora uma árvore seca, que não dá mais frutos. O Padre, antagonista invisível de Desfazenda, insiste em regá-las. Como escreveu Djaimilia Pereira de Almeida em A Visão das Plantas, às flores, brotos e mudas não importa quem as cuide. O protagonista do romance da autora nascida em Angola é um velho ex-capitão de navio negreiro que cultiva em seu quintal um lindo jardim.

Na fazenda há pouco de beleza, mas há em algum lugar essa insistência dos tempos; o temor de uma guerra que sempre pode nos alcançar. O Padre rega uma árvore seca. Quantas relações de poder podem estar representadas nesta imagem? Esta favela, talvez, possa ser vista enquanto projeto de um patriarcado branco, cristão, absolutamente falido e que não aceita o fim de seu legado de sangue.

Neste sentido, Desfazenda toca em muitas heranças coloniais, incluindo aí o salvacionismo branco tão presente no ativismo contemporâneo. Qual é a guerra? Quais são as gaiolas? Os medos? O medo de quem prende, o medo de quem está preso. O contrário do medo é o movimento, afirma a dramaturgia. Verso a verso, aquelas quatro crianças narradas se colocarão em movimento para chegar ao ponto de existir.

A direção musical de Dani Nega faz da trilha o sexto atuante de Desfazenda. A palavra falada por vezes é cantada, e são seus ritmos – no desenho assinado por Estrela D’Alva – que dão também as atmosferas das cenas. No jogo cênico, diálogos tornam-se batalhas e solilóquios são dolorosas poesias em ação.

Nas palavras faladas entre beats e silêncios, cada uma a seu modo volta o olhar para a própria vida e tenta buscar em algum lugar outros imaginários possíveis. Doze (Salaberg) é quem convida ao exercício do “e se…“, mas é só no momento em que algo além do ordinário surge como o vento dos tempos que o processo de descoberta de si é efetivado.

O preto e branco é rasgado pelo vermelho. Vermelho e preto, preta criança, agita a canção Saci. É essa a força mítica que vem, correndo das matas, abrir as portas do mundo concreto e de todos os outros. A libertação começa a se apresentar na história por meio desta entidade-moleque e suas ações quase que travessuras. São elas que disparam memórias-reflexões na forma de depoimentos das quatro personagens.

Desfazenda - o Bonde de perfil
Marina Esteves, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Ailton Barros em “Desfazenda” / foto: José de Holanda

Treze (Esteves), a única mulher em cena, torna-se multidão ao denunciar as opressões sofridas pelas mulheres pretas. Quarenta (Barros) versa sobre o amor, a sexualidade e a afetividade entre homens pretos. Vinte e três (Celestino) surge de algum modo como uma testemunha dos tempos. Doze é o sonho e a rebeldia. Mas talvez seja outro o número central em torno do qual gira a narrativa de Desfazenda. 

Primeiro, o uno. Falando em coro um texto como ladainha, as silhuetas pretas sobre o fundo branco desenham uma figura única. Oram um só corpo. A cena se repete e, aos poucos, aquele uno cinde-se e passa a se entender como, efetivamente, várias partes que formam o todo. São indivíduos, em suas complexas subjetividades, que compõem uma coletividade.

Depois, o Zero. Quantificação e representação do nada. Há um paralelo possível com uma personagem de Menino 23, na fazenda chamado de Dois – de idade próxima à uma das crianças da família Rocha Miranda, foi criado como negro da casa. Já falecido, as falas de sua família a seu respeito no documentário evidenciam o lugar contraditório e complexo da identidade que se forjou, muito pelo contexto de sua infância.

Zero, em Desfazenda, é o primeiro dos muitos meninos e meninas que chegariam ali. Sua relação com o Padre era única, de modo que ele não se via na mesma condição de aquelas e aqueles que seriam seus iguais. Quando seu diário é descoberto, não por acaso são as quatro pessoas do O Bonde que dividem-se em dar-lhe voz.

Não há nada de simples em uma existência, ainda mais quando se perde a referência de quem se é. Zero se esquece que é preto não por negar sua identidade, mas por vivenciá-la apenas enquanto sistema de opressão. Uma trajetória de redenção acaba se efetivando na ação desta figura em ser o impulso primordial do que (oxalá) está por vir.

Do mar no céu ao mergulho e tudo que está no meio. Prólogo e epílogo são navegações. Que caminho tão escuro. E tão cheio de areia. No balanço das águas, as lágrimas que não se podem ver mas que há muito se acumulam. O Bonde lança ao futuro seus manifestos do agora, antes do fim. E o que vem depois do fim? Todos os olhos sobre eles.

[texto com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

ficha técnica
Desfazenda - me enterrem fora desse lugar
Direção: Roberta Estrela D'Alva
Dramaturgia: Lucas Moura
Direção Musical: Dani Nega
Elenco: Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves
Vozes Mãe e Criança: Grace Passô e Negra Rosa
Direção de Imagem e Montagem: Gabriela Miranda e Matheus Brant
Direção de Fotografia: Matheus Brant
Consultoria Artística: Daniel Lima
Som direto: Ruben Vals
Treinamento e desenho de spoken word: Roberta Estrela D'Alva
Produção Musical: Dani Nega
Músicas "Saci" e "Tocar o Gado": Dani Nega e Lucas Moura
Figurino: Ailton Barros
Desenvolvimento de figurino: Leonardo Carvalho
Operação de câmera e Efeitos óticos: Isadora Brant
Design Gráfico: Tide Gugliano
Fotos: David Costa, Isadora Brant, José de Holanda e Tide Gugliano
Legendas: Francisco Grasso
Desenho de Luz: Matheus Brant
Operação de Luz: Gabriele Souza
Técnica de iluminação e traquitanas: Giovanna Kelly
Produção: Corpo Rastreado – David Costa, Gisely Alves e Julia Tavares
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério
Realização: O Bonde
Dramaturgia livremente inspirada no filme "Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil" de Belisario Franca