teatro

carta, palavras-mundo em movimento

carta crítica para o Núcleo Barro 3, a partir de Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus.

São Paulo, 24 de setembro de 2021

Ao Núcleo Barro 3

Foi muito bonito conhecê-los naquela tarde. Vê-los “bem”. Tenho usado aspas nessa palavra ultimamente. Fiquei feliz em vê-los vivos, em ação. Em 2021, eu ainda não havia ido ao teatro. Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus foi o primeiro espetáculo que vi no ano.

Vejam, tenho pensado, há algum tempo, sobre isso: ir ao teatro. Não apenas assistir teatro. Ir ao teatro, neste caso, envolveu um trajeto a pé, um trecho passando por duas linhas de metrô e mais uma pequena caminhada até o Museu da Imigração – espaço até então desconhecido para mim. Esse movimento já faz parte da experiência teatral. Ainda não é a cena. Mas já é fruição.

Aliás, antes de começar o ensaio aberto do dia 17 de setembro, quando nos aproximávamos das 16 horas, me vi sentado ali, na plataforma da Maria Fumaça, e olhei ao redor. Mais do que perceber o ambiente, me ative à sensação de estar existindo no mundo. E pensei brevemente sobre como a pandemia nos tirou a tranquilidade desta sensação.

Depois, comecei a absorver as informações daquele entorno. Para além do cenário construído diante da plataforma, apenas uma cerca nos separa dos trilhos da CPTM. Noto que dali vejo a estação do Brás – e me divirto ao perceber que, apesar de tão próxima, por conta do cruzamento das linhas de trem, precisaria andar muito mais do que para chegar à Bresser-Mooca. Do outro lado, uma rua até que movimentada e seu fluxo de carros e pessoas. Por fim, o horizonte escondido por imensos prédios em construção. A cidade de São Paulo, mais do que nunca, tornou-se um infindável canteiro de obras, penso.

Esse tempo de chegança me faz bem. E então, entra Rosana Pimenta para dar início a Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus. Ela se apresenta, assim como apresenta alguns de seus companheiros e companheiras do Núcleo Barro 3. Artistas e professores. Duas profissões que trazem em comum a ação e a aprendizagem de se ler e escrever mundos.

A palavra e sua potência. É isso. A dramaturgia de Gustavo Braunstein, estruturada de forma majoritariamente epistolar, nos apresenta a narrativa de Cordulina a partir de sua correspondência com Paulo, destinatário que transcende tempos, idades e relações. Sob a direção de Lucas França, precisa e delicada, Pimenta flui entre narradora, personagem, atriz e professora. Sentados diante dela, somos colegas, alunes, professores, público.

Paulo, sim, é o Freire. E viva nosso patrono! Que sigam vivas suas palavras, andantes e errantes. Que sigamos sempre em busca do pensar certo. O Paulo de Cordulina é mestre, mas é também aluno. É criança, adulto e promessa de futuro. Na distopia que sustenta a narrativa da encenação, é difícil esperançar no Brasil de 2030. Mas Cordulina acredita e se põe a mover-se para continuar viva – que é muito diferente de só sobreviver.

Penso nas palavras de Paulo Freire quando vejo o andaime, cenário e dispositivo cênico construído por Julio Dojcsar. São Paulo é um canteiro de obras, sim, e Aos professores é mais uma. Para além de construção, porém, penso em inacabamento. Do futuro incerto que temos por sermos gente, e termos que trabalhar por ele, e não sabermos se agiremos corretamente, e assim por nossa condição que seguimos em movimento.

Rosana Pimenta em "Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus", do Núcleo Barro 3 / foto: Douglas Scaramussa
Rosana Pimenta em “Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus”, do Núcleo Barro 3 / foto: Douglas Scaramussa

No andaime erguido sobre os trilhos, Pimenta inscreve-se no mundo a cada momento. Se de um lado há arame farpado, no outro vemos uma máquina de escrever e tantas cartas por enviar. Um piso de ônibus, uma janela fechada, um espaço vazio: a atriz transita entre os nichos possíveis de forma fluida. Quando passam os trens, barulhentos, sua reação cria composições várias com a paisagem.

É inevitável falar da paisagem, ainda que a obra não seja um site-specific. Pelas contingências do acaso – e o caos de uma pandemia – a cidade está viva ao redor da trajetória de Cordulina. Por vezes, a vontade é de vê-la gritando, enfrentando o ruído. Principalmente ao cair da tarde, quando os vagões cheios impedem qualquer medida de distanciamento.

No podcast 451 MHz, da revista Quatro Cinco Um, Ailton Krenak chama a atenção da entrevistadora para o som dos trens que passam no fundo. Ele alerta para o fato de que normalizou-se a constância com a qual empresas literalmente levam montanhas do nosso país para o exterior. O apito do trem tornou-se parte da paisagem, alienados que estamos. Aqui há outros motivos para aquele transporte ir e vir, mas algum lugar em mim evocou essa lembrança. As composições lotadas parecem também nos ter alienado de muito.

Ao mesmo tempo, durante Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus, também passaram pela paisagem pequenos pássaros, quase que pousando no próprio cenário. Na mesma entrevista, Krenak fala sobre arte; sobre como a borboleta, que desenha na paisagem, é uma artista. Essa beleza me preenche, e o trem, os passarinhos, as pessoas e carros na rua distante, os trens, os imensos esqueletos de prédio, tudo passa a fazer parte da minha fruição.

Essa abertura para o espaço da cidade confere uma porosidade ao texto de Braunstein. Quando a ação ocorre a céu aberto, sendo interrompida e tensionada pelo que lhe acontece, sua narrativa parece ainda mais urgente. Vocês, do Núcleo Barro 3, fincam o agora para que dele se desenvolva o futuro. O que não é algo doce. 

A distopia educacional parece assustadoramente próxima – e, nesse sentido, o adiamento da estreia do espetáculo para este momento estabilizado da pandemia (será essa a forma como podemos nos referir aos tempos que correm?) trouxe a ele novas camadas e dados do presente que creio que gostaríamos de não ter entrado em contato.

O ensino remoto não apenas escancara as desigualdades e abre a possibilidade de sucatear uma profissão já absurdamente desvalorizada, mas também opera um esvaziamento da própria presença enquanto componente do processo de ensino-aprendizagem. A pequena tela nas carteiras, para o público, é um elemento assustador, assim como as imagens ali apresentadas. Porém, também é ali que surge, como fissura, a práxis freireana de modo digno de marca: o desenvolvimento a partir de Eva viu a uva sintetiza, nas próprias frases, a leitura de mundo que precede-coexiste-sucede a leitura das palavras.

Seguimos, sem certezas e cheios de perguntas, acreditando no poder que reside na arte e na educação. Não falo do poder desejado pelos poderosos, mas do temido por eles. Da assunção de sermos todes sujeitos, nunca objetos, da história. Com o lápis e a caneta em riste, vocês, Barro 3, enfrentam o que se coloca diante de nós. Mesmo que as cartas nem sempre cheguem a seus destinatários, é fundamental escrevê-las. Porque cartas são palavras em movimento. E palavras escrevem mundos.

Com carinho, respeito e admiração,

amilton de azevedo.

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serviço
Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus.
Núcleo Barro 3
de 18 de setembro a 9 de outubro. sábados, às 16 horas, no Museu da Imigração
capacidade: 10 lugares (com distanciamento social) | ingressos gratuitos em linklist.bio/barro3
duração: 60 minutos | recomendado para maiores de 14 anos.

ficha técnica
Elenco Rosana Pimenta. Direção Lucas França. Dramaturgia Gustavo Braunstein. Cenografia Julio Dojcsar. Figurino Silvana Marcondes. Iluminação Taty Kanter. Direção musical Lua Oliveira. Preparação corporal Lilian Vilela. Preparação vocal e de elenco Gabriela Flores. Direção Audiovisual Cesar Barbosa. Produção Douglas Scaramussa.
"Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus"
O povo pode. “Aos professores, aos miseráveis, a Paulo, adeus” / foto: Douglas Scaramussa