teatro

vozes desejantes (do que?)

crítica de Descontrole Público, do Núcleo Pequeno Ato, com direção de Pedro Granato.

Um personagem controlável. Na página onde se pode adquirir ingressos para Descontrole Público, essa é a descrição da compra. Impossível não pensar que teremos em mãos uma ficha de fliperama. Desde este momento, estabelece-se um pacto de que a obra foi construída de modo a ser jogada – e não apenas assistida. Sob a direção de Pedro Granato, o Núcleo Pequeno Ato, em diversas configurações de elenco, vem pesquisando uma forma autoral e singular de teatro jovem, trazendo consigo estruturas imersivas e interativas.

Granato escreveu e dirigiu o que veio a se tornar a Trilogia Jovem: Fortes Batidas (2015), 11 SELVAGENS (2017) e Distopia Brasil (2019). Foram obras de grande repercussão, cumprindo diversas temporadas e circulações ao longo dos anos, com uma adesão de muitas pessoas – especialmente jovens – que não tinham o costume de ir ao teatro. O fenômeno pode ser explicado, talvez, pela construção de experiências que estabelecem comunicação direta com seus públicos, muitas vezes convocando-o à ação, implicando-o na narrativa.

Já no ambiente online, o Núcleo Pequeno Ato lança seu olhar sobre a gamificação, que de algum modo já se fazia presente na imersividade dos trabalhos anteriores, mas aqui assume contornos nítidos possibilitados por ferramentas do ambiente digital. Caso Cabaré Privê (2020) convida o público a tornar-se detetive, exibindo cenas pré-gravadas de um acontecimento – um crime ou um acidente? – e dividindo a plateia em sub-salas do aplicativo Zoom para que atores e atrizes do elenco respondam individualmente aos questionamentos dos investigadores da vez.

A obra ainda trazia consigo a experiência de segunda tela ao lançar mão de um site que era atualizado ao vivo conforme novas informações eram adicionadas ao inquérito. O público, então, tomava parte do andamento da narrativa – além de também ser convocado a decidir a ação final do espetáculo. Não era em si uma obra aberta, mas com uma estrutura bastante porosa, visto que as personagens teriam que responder perguntas muitas vezes inusitadas. De certo modo, o espectador-detetive era conduzido pela dramaturgia da encenação na direção da resolução do mistério.

Em Descontrole Público, a experiência de engajamento dos espectadores é radicalmente outra: inserida a ficha no fliperama, entramos no Zoom, onde somos recebidos por uma trilha sonora de sucessos reconhecíveis em versões 8-bits. Então, um videotutorial acolhe até os menos afeitos às peculiaridades da plataforma para as configurações necessárias e somos apresentados às regras do jogo. Depois disso, o público é orientado a escolher a sua personagem da noite. A única informação que temos sobre cada uma delas é a fantasia que utiliza.

Descontrole Público - grupo Storm Trooper - Victor Otsuka
imagem de divulgação de “Descontrole Público” / foto: Victor Otsuka

Antes de entrarmos no jogo, um vídeo que passeia pelos ambientes da festa serve de prólogo. Nele, vemos as personagens interagindo, mas muito pouco se apreende de quem são, quais suas relações, seus desejos; enfim: somos lançados à ação de peito aberto, chamados ao controle de uma personagem que não sabemos quem é.

Curioso notar que o espetáculo traz consigo elementos de todas as obras anteriores citadas neste texto. A festa é o cerne de Fortes Batidas. Ainda que muito mais focado em debates progressistas, há a manutenção da tensão e do confronto presente em 11 SELVAGENS. A dramaturgia aberta de Caso Cabaré Privê está catalisada e radicalizada na interferência direta do público nos rumos da ação. E Descontrole Público é uma espécie de Distopia Brasil às avessas no que diz respeito à interatividade.

Na reunião das famílias que se estruturava enquanto metonímia da teocracia instaurada no país, os espectadores eram controlados pela ação do elenco. Guardas apontavam as miras lasers de suas armas para as pernas cruzadas do público e a insistência muitas vezes tornava-se imposição na realização de gestos ou reprodução de frases. A provocação estava precisamente na abertura para a negação, para a revolta – efetivada dramaturgicamente ao final da encenação.

Enquanto isso, na festa de Descontrole Público, as atrizes e atores controlados pelo público hesitam em diversos momentos, como que reforçando que as suas tomadas de decisão ali dependem das escolhas sendo feitas pelos espectadores-jogadores da vez. A experiência ganha contornos únicos a cada apresentação, mas há um cuidado do Núcleo Pequeno Ato em não perder de vista seu discurso cênico – que envolve, inclusive, apontar para problemáticas embutidas em sua própria proposta.

A dramaturgia de Beatriz Silveira e Felipe Aidar, na prática, funciona como as margens de um rio, dando contorno ao seu fluxo: há uma estrutura fixa na organização dos seis núcleos, cada um construído a partir de uma personagem controlável e que contém seu próprio conflito central, mas que opera de modo extremamente maleável. Pode-se pensar na festa como um sistema solar, onde cada planeta tem seus satélites, mas nada impede que órbitas se cruzem e até mesmo impactos aconteçam.

Cada personagem controlável torna-se pivô dos acontecimentos que disparam as narrativas de seus grupos. As atrizes e atores nesta função devem manter a escuta atenta tanto para os comandos de voz que chegam no fone de ouvido quanto para aquilo que acontece em seu entorno. Enquanto isso, a maior parte do numeroso elenco deve lidar em tempo real com as tomadas de decisão do público – nem sempre sustentadas pela lógica que se apresenta.

Os caminhos e intensidades do desenvolvimento de cada conflito estão concentrados, portanto, no desejo das pessoas que escolheram aquela personagem naquela seção. Em certo aspecto, trata-se de uma experiência radicalmente democrática – o que pode, muitas vezes, ser um pouco assustador. Um aviso disparado para todas as salas anuncia o tempo restante, e esse parece ser de fato o único limite. Além dele, a única regra neste sentido é a de não dar comandos que possam desrespeitar a integridade física do elenco; o que não impede empurrões ocasionais e um clássico “joga a bebida nele”.

Neste sentido, é curioso pensar em torno do que o público quer ver e como ele conduz essa ação, principalmente considerando o pequeno número de informações que se tem sobre quem seriam aquelas pessoas e o que está por trás da situação que se desenrola. Não se trata de uma obra pautada pelo improviso, onde os personagens não-controláveis seguiriam aceitando as informações trazidas pelo personagem controlável, dizendo “sim” para as circunstâncias propostas a cada novo comando. 

Existem relações e decisões tomadas antes do início do jogo-espetáculo que serão descobertas em ação – e é o espectador-jogador que decide se irá acatá-las ou agir de forma errante. São inevitáveis, então, ruídos na comunicação entre as personagens – o que serve de potente engrenagem para a ampliação dos conflitos sugeridos inicialmente. Atrizes e atores são atentos ao que se propõe ao mesmo tempo em que buscam seguir nos trilhos da narrativa. A experiência do público nesta condução se torna o elemento central, mesmo quando ela é dissonante.

Descontrole Público - Luchador - Victor Otsuka
imagem de divulgação de “Descontrole Público” / foto: Victor Otsuka

Pensando na gamificação, a câmera instalada no ombro dos personagens controláveis pode remeter a diversos jogos em primeira pessoa, mas é também a trend de vídeos pov (point of view; ponto de vista) tão presentes no Tik Tok e espalhados por outras redes. Já a imensa liberdade nos comandos de voz a serem utilizados ecoa os jogos de mundo aberto – com a diferença marcante de uma limitação tanto temporal quanto espacial em cada partida-apresentação.

Neste tipo de jogo, é comum que certos valores sejam deixados de lado a fim de que as missões sejam mais divertidas. Em Descontrole Público parece haver um constante balanço entre a vontade de botar fogo no parquinho e agir de modo virtuoso – e este suposto equilíbrio é instável, balançando ao sabor do vento de cada coletivo-controlador que se forma a cada apresentação. 

Além da dissonância entre o enquadramento ficcional e os comandos dados pelo público, há também uma disputa entre as vozes que estão no controle de cada personagem. Entre dez e vinte jogadores-espectadores estão em cada sub-sala, onde se constrói uma coletividade temporária e aleatória, muitas vezes heterogênea em suas ideias, expectativas e desejos. Orientações sobrepostas e contraditórias podem resultar em interpretações divertidas e confusas da atriz ou ator que busca executar todos os comandos que chegam em seu ouvido.

O elenco, ciente das operações que movimentam o espetáculo, reage com a medida certa de naturalidade e estranheza às erráticas atitudes das personagens controláveis. Na ficção, que corre próxima à realidade, surgem muitas das questões que afligem nossos tempos; os conflitos parecem atualizar o que se debatia em Fortes Batidas, mas agora o público está implicado de outro modo.

Na pista de dança imersiva, a interação com as personagens era a partir de nós mesmos. Aqui, estamos protegidos por um avatar que cegamente atende a comandos de voz, comandos sem rosto – é ele que age, é ele que se relaciona com o outro, é ele que dá corpo e vazão aos desejos. A festa, auspiciosamente à fantasia, é a catalisadora de tudo que está à flor da pele depois de um ano e meio de isolamento e do quanto o digital tornou-se ainda mais central em nosso dia a dia. Como iremos interagir? Como queremos nos relacionar? A provocação de Descontrole Público tensiona os limites do enquadramento ficcional a partir da premissa da gamificação e seus riscos intrínsecos.

Cada apresentação do espetáculo é um espaço de pesquisa para o elenco e equipe, considerando que a obra só acontece neste contexto. O imprevisível é elemento constante; na repetição e na variação surgem possíveis acúmulos e constroem-se novos repertórios. Descontrole Público é uma experiência em eterno processo de descobertas. 

Na atmosfera de celebração que se torna cada vez mais densa, há algo de Climax (2018), filme-catástrofe de Gaspar Noé. Em comum, a busca por seguir existindo em meio ao caos. Também há, em um mistério que se revela aos poucos no filme e também no espetáculo, a possível sedimentação da lógica de certas atitudes e acontecimentos. Mas ainda que os espectadores-jogadores não descubram ou não saibam as motivações de muitas das personagens, a tarefa de reinventá-las está inteiramente em suas mãos – ou vozes. Em Descontrole Público, obediência, responsabilidade e liberdade são vértices dos quais tensionam-se linhas à beira de se romper.

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ficha técnica:
Concepção e direção: Pedro Granato. Dramaturgia: Beatriz Silveira e Felipe Aidar. Assistente de direção: Gustavo Bricks. Elenco: Agnaldo Moreno, Álvaro Leonn, Andressa Lelli, Bea Carmo, Beatriz Silveira, Bela Tortato, Celina Vaz, Guilherme Trindade, Heloísa Pires, Julia Terron, Manfrin, Mariane Aguiar, Maysa Nanci, Natália Correa, Paloma Alecrim, Priscila Paes, Renata Xá, Taiguara Chagas, Talita Torrecillas, Victor Moretti e Well Bakari. Videomaker: Gustavo Bricks. Operador de Zoom: Felipe Aidar. Produção Executiva: Leticia Gonzalez. Iluminação: Taiguara Chagas. Figurino: Isabella Melo. Diretor de Arte: Renan Ramiro. Confecção de figurinos: Ateliêles. Ass. de Montagem: Diego Dac. Coreografia: Gabriela Gonzalez. Fotos: Victor Otsuka. Assistente de Fotografia: Letícia Cruz. Designer Gráfico: Lucas Sancho. Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli. Produção: Contorno Produções. Direção de Produção: Jessica Rodrigues e Victória Martinez. Assistente de produção e comunicação: Carolina Henriques. Realização: Pequeno Ato. Apoio: Casa 8.

serviço:
DESCONTROLE PÚBLICO 
De 20 de agosto a 05 de setembro - Sextas e sábados às 21h e 23h, domingos às 19h e 21h.
Duração: 40 minutos.
Classificação etária: 16 anos.
Ingressos: a partir de R$20.
Compre o combo por R$ 100,00 e assista os 6 personagens em um final de semana.
Capacidade: 90 espectadores.
Venda de ingressos e acesso à transmissão: Sympla.com.br/pequenoato
Especificação técnica: baixar o aplicativo Zoom, preferencialmente no PC ou notebook. Também é possível assistir por tablet, celular ou emparelhamento com Smart TV. Para controlar os atores é necessário o uso do seu microfone.