arquipélago, destaque, retrospectiva, teatro

retrospectiva 2022

este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

incandescência

Um longo poema da criação diz que, certa feita, Exu foi desafiado a escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma viagem ao mercado. Uma continha o bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito. Exu pediu uma terceira cabaça. Abriu as três e misturou o pó das duas primeiras na terceira. Balançou bem. Desde este dia, remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença. O dito pode não dizer e o silêncio pode fazer discursos vigorosos. A terceira cabaça é a do inesperado: nela mora a cultura. (Luiz Antonio Simas, em O corpo encantado das ruas)

UM COMEÇO

Deitado no chão em um entardecer vejo marte despontando no céu. Penso que pra mim ele é inatingível, para além de qualquer mensurabilidade. Aquele ponto está lá, existe, distante de nós uma enormidade, e pra essa reflexão pouco me importam dados e possibilidades que me digam que em breve estaremos lá.

E então me lembro que mais cedo vi meu irmão no mesmo gramado fazendo subir um pipa e o céu era então dele ao mesmo passo que não, seu esforço era fazer do vento um aliado enquanto era também inimigo e aquele papel com aquela linha de fios de sacos plásticos combatia e irmanava-se com aquela infinitude de azul e nuvens.

Isso tudo era tão simples quanto complexo, um homem e um carretel de linha, e um céu e um infinito e marte à distância. São esses movimentos que me fazem começar essa reflexão, tendo como (única das) certeza(s) que para falar de teatro preciso me colocar enquanto ser no mundo, botar pra jogo como vejo tudo que me circunda; a vida, os vivos, os ventos. 

ANTES DE MAIS NADA

Mais do que necessário, é honesto dizer que a construção deste texto parte de dois pontos focais. Duas publicações no Instagram. Além delas, de uma infinidade de conversas – principalmente com minha mãe, com quem tanto compartilho sobre o que vejo e penso e vice-versa. Também da provocação do querido Kil Abreu (um dos que primeiro me ensinou e tanto ensina e faz refletir sobre a crítica teatral) em um post no Facebook quando do lançamento do Projeto Arquipélago: é preciso que críticos perguntem a si mesmos, a si mesmas, sobre a relevância social do seu trabalho. Em outras palavras: o que teríamos a oferecer à sociedade, se esta se coloca publicamente no apoio à nossa atividade? a crítica tem interesse público? Se sim, em que termos? Talvez cheguemos à conclusão que não, não tem interesse algum. É uma possibilidade. E é algo que talvez nos chame a avaliar o que se tem feito.

Não acho que uma retrospectiva como essa irá responder nada disso, mas é um bom registro em torno do que me mobiliza a escrever; a seguir escrevendo, seguir insistindo. Gosto de acreditar que no meu trabalho essa avaliação vai se construindo. Mas, sigamos: para essa incandescência – nome que criei no segundo ano do ruína acesa para apontar destaques (seja lá o que isso signifique) da cena teatral que seguem reverberando (e você pode acessar elas aqui: 2018, 2019, 2020, 2021) – penso que me movimento por dois caminhos que podem soar contraditórios, e que bom que seja assim.

(PR)A QUE SERVE UMA LISTA?

A primeira inspiração-provocação é uma publicação no formato de carrossel escrita por Ronaldo Serruya, legendado por uma pergunta: a quem interessa a superlativização das coisas? Na reflexão desenvolvida ao longo de dez cards, Ronaldo aponta para como superlativar é simplificar. E como essa tendência acaba por alinhar-se com a lógica neoliberal, meritocrática, individualista da sociedade contemporânea.

a gente precisa querer apenas estar atento ao tempo, com olhos de ouvir e ouvidos de ver o que os antigos sopraram e sopram e o que os que ainda virão sopram de lá do futuro. e sobretudo, o que nós estamos fazendo com todos esses sopros. (Ronaldo Serruya)

Citando o ativista espanhol Paco Vidarte e sua escrita-faísca, Ronaldo nos lembra que melhor do que termos dissidências no topo é a própria destruição da ideia de topo. Em Ética Bixa, livro que o próprio autor chama de panfleto radical e fanzine libertário, Paco aponta que toda ética universal, no fundo, é absolutamente particular, é uma ética de classe, de povo escolhido, de héteros, de masculinos, de uma maioria que pretende impor uma ética particular – por muito majoritária que seja – a todos em seu próprio benefício e em prejuízo das minorias que não pertençam ao seu círculo de poder: a fundação ou a proclamação de uma ética sempre é uma operação de poder, de opressão, de controle social. Mais adiante, dirá que a única coisa que o poder quer é que nós pisemos no pescoço uns dos outros por diferentes motivos.

Insistentemente reafirmo a crítica como lugar de poder, ainda que muitas pessoas possam pensar que não, que nunca, ou que já não mais. Paco também diz que toda a força que sustenta o poder que governa o sistema social procede apenas das agressões cotidianas, pequenas, microscópicas, imperceptíveis que cada um comete quase sem se dar conta. E, ainda, mais próximo deste meu fazer, cada palavra, cada vocábulo, cada significante, cada termo é revolucionário, é portador de conflito social, é portador de valores de uma classe, de um grupo, de determinados interesses. Cada palavra é um projétil, uma bomba, munição.

Voltando à publicação-projétil de Ronaldo: em qualquer análise, da política à cultural, a superlativização das coisas vai apequenando o quadro geral, invisibilizando toda a profunda cadeia diversa e rica de produção de discursos, de obras, de estratégias, de lutas. esse país é complexo demais. toda política feita aqui, toda arte feita aqui é complexa demais.

Não acredito que neste projeto de crítica, no ruína acesa, se incorra muito na superlativização; mas isso não me impede de refletir muito em torno dos apontamentos feitos por Ronaldo – não apenas lembrar da complexidade, mas encará-la. Por isso, ainda que por um momento tenha pensado em simplesmente não fazer uma lista, talvez apenas escrever algo semelhante à (anti)retrospectiva do ano passado, é fundamental frisar aqui: o intuito deste texto não é apontar as melhores nada. É a tentativa de estar atento ao tempo e construir registros daquilo que o rasga, considerando o que nós estamos fazendo com todos esses sopros. 

Então, chegamos no segundo ponto focal que me move nesta (longa) introdução: a publicação de Juliano Gomes em torno da construção de uma lista de filmes para a revista inglesa Sight&Sound. Antes de divulgar os dez filmes apontados por ele para o ranking The Greatest Films of All Time, Juliano compartilhou algumas reflexões em torno da própria ideia de lista, apontando que gera muito ruído em relação ao seu significado social como gesto (…) os parâmetros ficam confusos e ninguém parece saber bem do que se está falando, o que está em disputa ali.

A questão é entender como um gesto pode tentar produzir algum movimento. Olhar o contexto, imaginar os padrões, observar as peças em jogo, buscando imaginar uma aposta que promova ideias potencialmente férteis.

Vale a pena ler o texto do Juliano na íntegra, para além dos trechos que recorto e colo aqui. Ele insiste no resgate da exposição pública dessas apostas; sustentadas por ideias, argumentos e critérios, inclusive na direção de promover e discutir os motivos pelos quais arte e cultura importam. E defende que isso precisa ser um exercício público constante.

(…) me parece útil expor publicamente nossas apostas em termos de ideias, visões de mundo, valores que achamos importantes: escolher e assumir. Escolher e assumir, com argumentos para sustentar o valor – ou, talvez, a fertilidade – de obras que queremos inscrever nos tempos que nos cabe viver. Com a consciência de que nenhuma intervenção será perfeita e de que o trabalho nunca termina. Mais do que apenas apontar nomes, compreender, lançar luz, defender algumas das ideias em disputa do campo no processo cultural brasileiro. Porque as ideias a gente pode contestar, discordar, incorporar, melhorar: é material público. 

Assim, construo meu pensamento em diálogo com faíscas, projéteis, bombas e munições de Kil, Ronaldo e Juliano. Acredito que mais importante do que os nomes que serão apontados nos próximos parágrafos seja apresentar estes pontos de partida que antecedem a própria feitura desse texto. Essa incandescência de 2022 concorda com – e, espero, faça jus ao – final da reflexão de Juliano: eleger algo é dizer: dentre o que ainda existe, desejo que isso dure, pra fertilizar outras coisas no futuro. essa coisa de lista, especialmente se há ideias expressas junto, tem algo a ver com isso.

INCANDESCÊNCIAS OUTRAS

Olhar para o que já disse, e penso já ter dito muito ao mesmo passo em que há sempre muito a se dizer, me parece também relevante. Gabriel García Márquez dizia que todo escritor está sempre escrevendo o mesmo livro; talvez eu sempre escreva a mesma retrospectiva, as mesmas críticas – e não sei se isso é um mérito ou um fracasso. Sigo em movimento, tateando, compreendendo as possibilidades de se manter coerente mesmo na contradição; escolhendo as concessões dentro da consciência do sistema que nos contorna, circula, conduz, engole e ao mesmo tempo acreditando na força de fissuras e rupturas, mesmo que ínfimas. Assim, insisto. Então, compartilho alguns fragmentos:

Há um caráter inevitavelmente subjetivo na confecção de uma lista dos destaques do ano. Anterior mesmo à elencar os espetáculos, há a seleção feita ao longo do ano sobre quais assistir – levando em conta a dimensão da cena teatral de São Paulo, é impossível considerar que todas as obras postulantes à tal distinção tenham sido vistas. (2018)


Essa é uma lista que não dá conta da produção teatral feita fora do centro expandido da cidade de São Paulo. É uma lista que também fala das ausências — e do que elas significam.

São muitos os grupos que, já há muito tempo, trazem a resistência em seu fazer diário. Ignorados pela crítica, por prêmios e por políticas públicas, seguem fazendo sua arte. Este é um lembrete para mim mesmo sobre a necessidade do deslocamento — literal e metafórico. (2019)


A incandescência deste 2020 olha para o que foi como quem tateia uma chama invisível na busca de compreender seu calor. (…) A incandescência é uma lista que não cansa de se afirmar insuficiente, subjetiva, relativa e sujeita a infinitas variáveis. Em premiações e retrospectivas, muitas vezes as ausências são o que há de mais significativo. (2020)


Seria um absurdo listar aqui destaques, considerando a dimensão da cena paulistana e brasileira e até mesmo internacional, no que diz respeito ao virtual. Esta incandescência é difícil, pois o que emerge na retrospectiva de 2021 é a ausência. O que pode, parafraseando o título de um texto de Kil Abreu, a crítica em tempos de morte? O que pude eu diante do que se apresentou?

(…) A crítica teatral ainda é um lugar de poder, e deve se assumir enquanto tal. Não enquanto exercício autoritário de juízos particulares, mas como espaço de reflexão e valoração. Seria irresponsável, neste contexto [de pandemia], destacar uma ou outra obra. Listas sempre revelam mais sobre seus autores do que sobre o que é listado. (2021)


No fundo, é isso: um constante dizer e dizer e desdizer e dizer. Me repetir dentro do que permanece, caminhar para além do que não mais. Talvez toda essa espécie de apresentação só faça sentido para a minha organização interna, mas cito mais uma vez Paco Vidarte:

Eu sou otimista e confio enormemente no poder do pequeno, das micropolíticas, dos efeitos imprevisíveis de tudo que faço, de cada linha que escrevo. Sei que noventa e cinco por cento de todos meus esforços acabam no lixo, se viram contra mim mesmo, não ofendem ninguém, não incomodam ninguém, não contribuem com ninguém, não geram nem uma pontinha das esperanças que eu tinha depositado neles, nunca correspondem às minhas expectativas. Mas, às vezes, quando há sorte, um paragrafozinho feito ao acaso, descuidadamente, um paragrafozinho de transição, nada importante, de recheio, desenha um sorriso em quem lê, desperta uma ideia maravilhosa em alguém, ganha vida própria e, suponho, acaba tendo algum efeito que não mudará o mundo, mas pelo menos, por alguns segundos, terá provocado um sorriso, terá suscitado indignação, terá gerado cumplicidade ou obtido solidariedades. (em Ética Bixa)

ENTÃO

Tudo isso posto, para que a lista aqui apresentada possa minimamente estabelecer-se como um gesto que almeja produzir um movimento, parece-me fundamental apresentar minimamente quais os parâmetros e critérios que amparam este meu olhar. Antes de pensar em quem se destaca, vale colocar de onde se vê e do que se destacam.

Uma mirada simples no acervo do ruína acesa permite perceber que o foco desta plataforma está lançado principalmente sobre 1) o sujeito teatro de grupo; e 2) artistas interessades no desenvolvimento de pesquisas de forma continuada. A cena observada por mim é majoritariamente a produzida de forma independente, por ímpetos pessoais ou coletivos, geralmente fomentada por editais públicos e/ou pelo Sesc São Paulo. Em parte, é um problema; em outra, é circunstancial. Aliás, como escrevi em 2021, o problema é sempre a que serve aquilo que se produz dentro do mundo do capital, onde inevitavelmente existimos.

Dentro disso, quais são minhas expectativas e projeções em torno de uma produção cada vez mais plural, incerta, sem norte – no melhor dos sentidos – e, auspiciosamente, caótica? Hoje, recuso terminantemente pensar em melhor peça (como bem disse Juliano, acreditar em nomes fantasia é besteira) ou em qualquer afirmação superlativa e categórica.

Então, o que significa ser um destaque? Um post no instagram? Louros em um cartaz? 

Qual a distância entre reconhecimento e legitimidade?

Tudo isso escrevi antes de efetivamente racionalizar os aspectos que estruturam essa retrospectiva. Novamente, disse muito quando muito já havia sido dito. Mas vamos lá. Dentro do recorte acima apresentado, acredito que as obras aqui apontadas de algum modo desdobram questões de formas específicas – não necessariamente novas, mas cujas singularidades podem reverberar, criar ressonâncias e fertilizar campos de possíveis.

DA LISTA

Na lista que sucede (em breve, prometo) esses escritos, é possível notar alguns aspectos dignos de nota: não há encenações das dramaturgias consideradas clássicas, atemporais, universais; confesso que cada vez mais desconfio destas nomenclaturas, especialmente da última. Ecos de Shakespeare e Brecht, assim como colagens de textos e documentos, inspirações e adaptações estão entre as obras aqui destacadas; o que sobressai-se, porém, é a presença de construções dramatúrgicas que caminham junto das elaborações cênicas.

Trata-se de uma consequência das muitas circunstâncias e escolhas por trás destes olhares. Em 1987, versando sobre a função da crítica teatral, Sábato Magaldi aponta – em plano menos modesto – que a crítica tem o poder de influir na afirmação de determinado gênero de teatro, em detrimento de outro. A historiografia (ou uma historiografia) sustenta a afirmação de Sábato; tenho dúvidas da dimensão de tal influência ainda hoje. Mas há, com certeza, uma relação entre essa função e o reconhecimento e a promoção de ideias potencialmente férteis, relembrando o texto de Juliano Gomes.

Assim, concentro a minha presença nas obras da cena teatral contemporânea caminhando lado a lado de Giorgio Agamben e Susan Sontag, talvez contraditoriamente: compreendendo, com o primeiro, que contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro (O que é contemporâneo) e concordando com a segunda em relação ao valor da transparência para a arte (e consequentemente para a crítica), no sentido de sentir a luminosidade da coisa em si, das coisas sendo o que são (Contra a interpretação).

Perceber o escuro, sentir a luminosidade. Tatear o que nos circunda, compreendendo a complexidade do fazer teatral, buscando fazer destes escritos tentativas de gestos que produzam movimentos.

DOS NÃO DITOS

Tomei nota de todas as obras que assisti neste 2022 (foram 156, número que – levando em consideração a rotina intensiva de alguns festivais que acompanhei – é relativamente baixo). Em meados do ano, criei um perfil exclusivo para apoiadores da campanha para manter a ruína acesa no instagram onde publiquei pequenos textos, chamados de #curtinhas, sobre todos os espetáculos que vi (excetuando-se em festivais).

Foram dois recursos que se mostraram bem úteis, tanto para meu registro pessoal e minha memória, mas também para notar que, por diversas circunstâncias, acabei não escrevendo sobre trabalhos que gostaria de ter me demorado em um processo de escrita crítica. Então, este é o momento de escrever o que não foi dito sobre cinco encenações. A ordem é cronológica (em relação à quando assisti aos trabalhos).


Sem Palavras (companhia brasileira de teatro/PR)

Corpos que narram seus próprios códigos, códigos que narram corpos inventados. Composições corpo-palavra; diálogos construídos em fricções e repetições, textos (e partituras e gestos) que ressurgem reverberam ecoam. O que corpos têm a dizer pelo que são, pelo que representam, pelo que se espera deles? 


Sarah e Hagar decidem matar Abraão (Rainha Kong)

Desmembrar o patriarca até que nada sobre e então ir em busca do paraíso. Espelhamentos bíblicos possíveis em futuros distópicos. Minha senhor: um dispositivo simples que fissura o gênero. Nas roupas o desfile de tempos dos pesos leituras levezas; um upcycling de Gênesis. Em sete dias o que se cria e o que se conta? Altares, figuras totêmicas, radiografias, distorções, Cid Moreira.


Nzinga (idealizado, concebido e dirigido por Aysha Nascimento, Bruno Garcia e Flávio Rodrigues)

Reivindicar imaginários ao refundar realezas. “Nzinga” parte da história da rainha de mesmo nome, Ngola da Matamba – reino pré-colonial africano, na região onde hoje é a nação de Angola – para trazer a tona não apenas a memória (entre o mítico e o documental) desta mulher, mas para pensar comunidade. Nos códigos dançados, desenhados pela iluminação e presentes no cenário, cosmogonias bantu dialogam com a narrativa plural que parte da relação de Nzinga com seu irmão, Mbandi, no processo de sucessão ao trono do então reino de Ndongo após a morte de seu pai, Kiluanji, e sua ascensão ao trono após o falecimento de Mbandi. Colonialismo, escravidão e a racialização de um povo se entremeiam na bela dramaturgia de Dione Carlos. Se algo pode parecer estranho a um espectador branco diante dos signos historicizados e vivificados pela população da diáspora africana, o momento da narração daqueles entes-personagens diante de uma missa católica devolve o desconforto: diferentes raízes trazem diversas cosmogonias e oferecem infindáveis mistérios aos “outros”.


Améfrica em 3 atos (Coletivo Legítima Defesa)

Lisergia diaspórica. O Legítima Defesa, em seu terceiro espetáculo, vai consolidando seus procedimentos, operações, dispositivos e linguagens cênicas. Sobre Améfrica, sinto não ter escrito, considerando que o ruína acesa conta com críticas de A Missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em Legítima Defesa (2017) e Black Brecht — E se Brecht fosse negro? (2019), além de ter também testemunhado a performance que deu nome ao grupo, no Theatro Municipal, na MITsp de 2016 (falei um pouco sobre a experiência em uma publicação no facebook em 2020) A imaginação radical é evocada e aplicada na cena. Três atos distintos mas em torno do mesmo tema: a amefricanidade ladina. Viva Lélia Gonzalez e as tantas vozes presentificadas como cinzas descendo o rio amarelo do céu para a cena. O colonialismo é antigo e se repete insistente e há muito já se fala disso. Mas as tecnologias para o seu enfrentamento também não vem só de hoje. a retomada entende o tempo espiralar, o afrofuturismo finca seus pés na ancestralidade que é a de antes mas é a de hoje. Os coros do Legítima são tanto são rios são outros são muito. E a palavra ainda é centro, mas são muitos os centros. Atores ensaiam, exus narram, yamis dançam. Línguas giram no vórtice que reaproxima os continentes. Aldeia-quilombo-favela. Confluências na retomada.


E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis (Cia. de Teatro Acidental)

Sobre ela, ainda pretendo escrever mais demoradamente. Quando a Acidental ecoa Koltès no momento do “ensinamento dos clássicos”, seguindo a estrutura de A Decisão, de Brecht, inspiração para E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, é como se a solidão dos campos de algodão fosse hoje uma antinegociação; um fracasso da ação, um fracasso do desejo. O confronto com as bases brechtianas faz do palco tabuleiro e do elenco peças corais, que mesmo quando falam em primeira pessoa formam um nós um tanto disforme – ainda que enunciando seus marcadores e tomando nítida posição em torno de onde partem seus discursos. Nesta espécie de peça didática, o aprendizado está neste movimento de não-saber, onde a Acidental é coro de controle, jovem camarada, camponês e cinco agitadores mobilizados não mais pelo partidão, mas por uma polifonia dissonante. O tabuleiro exibe provas de um crime; do insucesso da missão? No autodiagnóstico sobre a esquerda brasileira (mundial?) contemporânea, a percepção de que faltam combatentes e sobram culpas. São tentativas de nós emaranhadas numa feitura e desenlace de nós, onde a racionalidade é apenas parte do debate e das práticas necessárias. Panfletos são desenhos de colorir e a decisão paira no ar: juízes carrascos e vítimas coletivamente preferindo não existir diante do desmontar do tabuleiro.

DO JÁ DITO

Catorze nomes sobre os quais já escrevi. Acredito que as próprias críticas dos trabalhos apontem para os motivos delas estarem aqui elencadas; seguem então trechos e os links para os textos. A ordem é cronológica (em relação à quando assisti aos trabalhos).


Língua Brasileira (Ultralíricos e Tom Zé): paisagens linguagens.

A dramaturgia da encenação, assinada por Coletivo Ultralíricos, Felipe Hirsch, Juuar (também diretora assistente) e Vinícius Calderoni, segue de certo modo a estrutura já presente nas obras que antecedem Língua Brasileira dentro da chamada Tetralogia involuntária dos Ultralíricos (Puzzle, A Tragédia e Comédia Latino-Americana e Selvageria).

Aqui, porém, parece haver uma dimensão outra; talvez pelo entremear das canções de Tom Zé, talvez pela materialidade da linguagem estar amparada quase exclusivamente na relação entre intérpretes, com seus corpos, gestos e vozes, e as palavras, nas sonoridades mais ou menos compreensíveis, legendadas ou não, que dançam e ocupam palco, plateia e imaginário.


Estudo nº 1: Morte e Vida (Magiluth/PE): mas isso ainda diz pouco

Mas isso ainda diz pouco. A insistência de trazer esta afirmação à cena, remetendo ao primeiro movimento do poema, quando o retirante explica ao leitor quem é e a que vai, opera simultaneamente no jogo estrutural da encenação e também na lida, atenta, com seu discurso. Estudo nº 1 é essencialmente espiralar, apresentando uma sucessão de quadros e tentativas de inícios, fins e reinícios – vida, morte, vida, na inconstância e na fragilidade, na busca incessante por aquilo tão belo como um sim / numa sala negativa


7PISOS (Grupo Folias): a perversa arquitetura da branquitude

Há uma diferença fundamental entre Sete Andares, conto de Dino Buzzati, e 7PISOS, de Amorim e Folias: o sujeito. Enquanto pouco importa, no conto italiano, quem é – e como é – Giuseppe, no Galpão do Folias José P. tem sua existência atravessada pela raça. Alex Rocha, ator negro, interpreta Giuseppe/José P. Corte, um escritor negro. A construção desta personagem funciona como dispositivo para o jogo metalinguístico na encenação épica de Feliz: Rocha, com seu corpo inscrito em cena, é Corte, que escreve sua história na cena.

Ao redor do protagonista, dois atores (Lui Seixas e Marcellus Beghelle) e duas atrizes (Clarissa Moser e Marcella Vicentini), todos brancos, são enfermeiros, médicos, seguranças, professores; todos, entre a condescendência, o cinismo e a violência naturalizada, são algozes. São eles que conduzem Corte por este labirinto kafkiano, onde a burocracia dá lugar à patologia, adicionando camadas de perversidade à estrutura arquitetônica. 7PISOS é o edifício construído sobre inúmeros esqueletos que se sustenta em racismos científicos, estruturais e recreativos; uma arquitetura da branquitude que escancara a miséria patológica da ficção do normal.


Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos (Companhia de Teatro Heliópolis): mulher, assentamento do vento

Iansã, entre o búfalo e a borboleta: em Cárcere, as irmãs Maria dos Prazeres (Dalma Régia) e Maria das Dores (Jucimara Canteiro) não trazem exatamente essas duas representações, mas elas podem servir de ponto de partida para a reflexão. Régia é quem torna-se búfalo nas cenas de caráter ritual, de evocações e culto à orixá. E é também a sua Maria que parece carregar na trajetória a liberdade da floresta, o encarceramento da casa (e do casamento, talvez) e a necessidade da fúria animal como revide. Ainda assim, sua vingança é também a festa.


Sete cortes até você (Soraia Costa): a história de uma escolha e a escolha de uma história

Em Sete cortes até você, talvez a maior chave para a compreensão do que intenciona Costa em sua criação esteja nas primeiras falas da artista: eu adoro histórias. E o papel do teatro nisto? Dar forma a essa autoficção é sua possibilidade de contar a história de uma escolha e a escolha de uma história. Sobre acontecimentos da própria vida, Costa afirma: eu não escolhi essa narrativa. Aquele não podia ser meu filme. Ela, agora, protagonista do que lhe atravessou, ultrapassou, derrubou, levantou, moveu e foi movido, é quem comanda o bisturi e conduz o público a cada um dos cortes literais e simbólicos que vivenciou em seu tornar-se mãe.


anonimATO (Cia. Mungunzá de Teatro): chocar o ovo da utopia

anonimATO é a materialização da impossibilidade de se manter em paralisia nestes tempos de morte. É o teatro feito Ato: um mover-se na angústia, por entre incertezas; o insistente passo adiante na direção do abismo. Buscar a utopia no horizonte, ainda que a cada passo dado ela também caminhe mais distante (como disse Fernando Birri em conversa com Eduardo Galeano, em citação presente no trabalho da Mungunzá).


Verdade (Tablado SP): da invisível presença

(…) há na encenação algo de instável, algo de desagradável; ações e falas que podem simultaneamente gerar repulsa e riso na plateia. Entre os arroubos de militares tornados públicos e as tantas lacunas de segredos preenchidas por Dal Farra, o Tablado compartilha a sua leitura de uma sucessão de fatos dos últimos vinte anos que resulta assustadora. Distante das terríveis provocações à identificação do público presente nos trabalhos anteriores, com apenas momentos pontuais de convite a essa autoimplicação no discurso da obra, paira uma sensação de absoluta fragilidade diante deste teatro de operações militar, cuja posta em marcha há décadas pode ter nos trazido até onde estamos – e quem sabe aonde ainda nos levará?


Macacos (Cia. do Sal): Ícaro preto em pleno voo

Uma das linhas de força do espetáculo é a relação épica construída com a cena em si: além de narrar sua própria trajetória, apontando para o contato ainda muito jovem com aulas de teatro como sua salvação, Clayton Nascimento faz do palco um campo de possíveis; um espaço de criação infinita de encontros. Um sol que não derrete as asas deste Ícaro preto, mas lança luz em seu caminho.

Mas não há romantização a partir desta perspectiva individual: MACACOS é sucessão ágil, ora bruta ora didática, de quadros de denúncia da violência de Estado e do genocídio da população preta e pobre do Brasil. Sozinho no palco, sem cenários ou adereços, Nascimento faz de seu corpo – e de sua voz! – veículo de comunicação, memória, sonho e luta, entre a ordenação do professor diante da turma de estudantes e uma selvageria que manifesta a brutal realidade.


História do Olho (Janaina Leite): profanar a devassidão

Não esqueça nada do que você sabe sobre pornografia: lembre-se de tudo que experienciou com – ou contra – ela. História do Olho traz mais dúvidas que respostas em sua adaptação cênica do obsceno, formalizando o erotismo de Georges Bataille enquanto parte integrante da experiência humana. Há muito o que se pensar e problematizar em torno de diversos aspectos, inclusive sobre a dissolução das bordas entre público e privado, talvez comum à pós-modernidade. E pode ser o teatro o campo mais fértil para a semeadura de contemplações e reflexões neste e em tantos outros sentidos. Compreender tudo; estranhar tudo. A experiência orgânica do que vive em nós. É sobre o que já existe e nos circunda e sobre o que habita imaginários – e, assim, passa a existir.


AGAMENON 12H (idealizado e dirigido por Carlos Canhameiro): crítica dentro

(Realizei, na estreia da obra, o experimento da Crítica Dentro, formato originalmente proposto por Ruy Filho, na Antro Positivo). (…) nas doze horas, não apenas o texto continuamente se abre em entendimentos a partir das diferentes postas em cena, mas também é aberto pelo elenco nas proposições que ampliam debates talvez laterais ou pequenos no andamento da dramaturgia de Rodrigo Garcia. Cada escolha oferece camadas distintas de compreensão, reflexão e provocação; funcionando de modo independente, mas consolidando uma experiência única em sua sequência de singularidades.


Vienen por mí (atuação de Fabia Mirassos, dramaturgia de Claudia Rodriguez e direção de Janaina Leite): amplificar sussurros

As escolhas da encenação parecem todas confluir, de forma minimalista, para que o foco esteja nas palavras e movimentos de Fabia Mirassos. Conduzindo o público do início ao fim do espetáculo, a intérprete desenha suas intenções com precisão: na modulação de uma  frase, é capaz de transformar totalmente a atmosfera do espaço – e a luz de Santini dança com cada cena. Trata-se de um trabalho sutil, onde leveza e assertividade encontram seus espaços como os temperos de uma receita agridoce. E pode a travesti cozinhar?


Quimera (Grupo de Teatro La Trinchera/EQU): imaginar fronteiras como encruzilhadas

Uma linha imaginária, mas de efeitos profundos na realidade contornada, separa dois soldados de lados opostos. Certo dia, em meio à suas rotinas de vigília, se dão conta que ela desapareceu. Territórios e identidades ficam em suspenso no encontro que dá início à Quimera, do Grupo de Teatro La Trinchera. De nítida inspiração na realidade do Equador, que nomeia a linha que divide o mundo em dois, Quimera traz na complexidade do simples uma história que merece ser contada.


Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a Revolução (Grupo Pano): a coragem do nós

Foi enquanto eu esperava é uma demarcação incisiva do coletivo na percepção de que tudo é passível de questionamento – discursos ideológicos, bases teóricas e produções estéticas parecem todos balançar na dinâmica da encenação. O Grupo Pano compreende o locus social de sua instituição enquanto coletividade teatral na cidade de São Paulo e toda a reflexão proposta pela obra é indissociável dos marcadores sociais que atravessam sua composição – que não escapa, nem nega, de sua constituição majoritariamente branca e burguesa. Ao mesmo tempo, o cinismo comum a trabalhos de pretensa autocrítica aqui encontra uma estrutura onde pode navegar com certa tranquilidade.


Erupção: o Levante ainda não terminou (coletivA ocupação): evocar em corpo-cruzo uma cartografia tectônica

Nesta lida com uma miríade de cosmogonias e narrativas, Erupção estrutura-se enquanto uma ambiciosa empreitada da coletivA. Ao encenar tempos e ventos, performers-criadores são corpos-encantades, corpos-magmas, corpos-mares, corpas-ancestrais. Assim, ainda que partindo de acontecimentos históricos, este Levante que ainda não terminou parece se desdobrar em eras geológicas, movimentando profundezas de um mundo em contínua (trans)formação.

Se por vezes a apreensão do todo do discurso corre o risco de escapar pelos dedos, a todo momento é possível sentir as mudanças climáticas do espaço cênico. Corpos, corpas, música, palavra e iluminação são terremotos e tempestades nesta Erupção constante. Festa e guerra, alegria e angústia, prazer e dor, polos aparentemente binários, são como placas tectônicas em seus movimentos convergentes, divergentes e transformantes.

SER UMA ILHA, PERCEBER ARQUIPÉLAGO

Já escrevi demais. Essa é uma lista, acompanhada da tentativa de fazer com que ela faça sentido. Espero que faça, ao menos para alguém. O ruína acesa é uma entre diversas casas críticas deste Brasil. Há muita gente fazendo um trabalho sério, mesmo tantas vezes sem as melhores condições para isso. Felizmente, ao lado de outras plataformas e com o apoio da Corpo Rastreado, caminhos vêm se mostrando possíveis: este texto foi produzido no contexto do Projeto Arquipélago.

Para finalizar, um pouco mais de Paco Vidarte: Outra palavra de ordem: se você teve uma ideia, ponha-a em prática! Bata as asas antes de saber que treco é esse que você desenvolveu nas costas, antes de saber o que é voar e se há uma relação direta entre ter asa e voar. (…) Uma leve turbulência acaba se convertendo num redemoinho, um leve tremor se expande até provocar um maremoto, uma rachadura minúscula derruba um prédio de preconceitos, uma suave inclinação gera uma catástrofe ideológica, a mais inócua heterodoxia arruína um dogma, um cartaz feito às pressas com caneta hidrográfica, colado numa ripa com fita crepe, acaba sendo visto por milhares de pessoas, gera simpatias, solidariedades. (em Ética Bixa)


[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]