destaque, teatro

chocar o ovo da utopia

crítica de anonimATO, ato-espetáculo musical de rua da Cia. Mungunzá de Teatro, com direção de Rogério Tarifa.

“(…) um Ato está sempre situado num contexto concreto – mas isso não significa que ele seja inteiramente determinado pelo contexto.”

(Slavoj Žižek em Bem-vindo ao deserto do Real!)

Uma mulher dança ao som do hino nacional. Um homem que carrega seu coração na mochila faz de si “todo mundo”: um emaranhado daquelas e daqueles que acompanham o início de anonimATO, da Cia. Mungunzá de Teatro, no Parque da Luz. Espalhando seus fios por entre o público, questiona suas origens, idades, ofícios; até que pergunta à mulher que dançava qual o seu nome. Ninguém, ela diz. Ele, então, assumindo-se Ninguém neste ponto de partida odisseico, anuncia a própria morte.

Fabia Mirassos e Lucas Bêda são os artistas-criadores da companhia, fundada em 2008, que inauguram o cortejo-teatro-encontro-ato dirigido por Rogério Tarifa. Ninguém e “todo mundo” e o tanto que existe entre os dois polos. anonimATO inicia-se na morte para findar em vida; do ser-anônimo ao ter-um-nome. A Mungunzá declara o fim do teatro para então celebrá-lo em toda sua vivacidade e potência. Pois, olhando atento aos tempos e contextos que nos circundam e atropelam, como disse o professor Luiz Antonio Simas, diante da morte do Brasil só nos resta, paradoxalmente, a vida. Viver é a nossa mais subversiva tarefa.



Observando os últimos trabalhos da companhia – antes e durante a pandemia de Covid-19 – nota-se uma relação estreita entre angústias, paralisias e tempos suspensos: em 2020, a Mungunzá revisitou seu Poema suspenso para uma cidade em queda (2015) para a composição de uma nova obra, agora no ambiente virtual. POEMA EM QUEDA-LIVE, dividida em três episódios, busca inventar tempos, preencher espaços na lida com os vazios que nos acompanham. 

Presos naquela realidade-vórtice há trinta e três anos, as personagens parecem já não serem capazes de conceber o que seria o fim da queda. O que há depois da queda? Do chão? Do ar? Dentro de suas casas, é como se vivessem todos os tempos no agora – em um agora que não passa. (trecho da crítica de A Roteirista da sua vida e o Homem que morava dentro do sofá, primeiro episódio da narrativa digital)

Ainda que absolutamente conectada e em diálogo com os meses – que viriam a se tornar anos – pandêmicos, o argumento de POEMA EM QUEDA-LIVE não está tão distante da obra original: Poema suspenso para uma cidade em queda, em sua enorme estrutura de andaimes móveis (cuja materialidade foi repensada a partir de uma estética do glitch na edição ao vivo na narrativa digital), já falava da teimosia de um corpo em queda que nunca atinge o chão; das ausências que se amplificam diante da impossibilidade do fim. Do eterno breve voo do instante agora; do presente inescapável e de um diminuto horizonte adiante

Entre os dois Poemas, um movimento que alargou de forma definitiva os horizontes do teatro em São Paulo: a construção, em 2016, do Teatro de Contêiner Mungunzá, inaugurado no ano seguinte, nas proximidades da Estação da Luz e da região conhecida como Cracolândia – hoje, espalhada por diversas ruas e praças do centro da cidade. Após solicitar o uso de um terreno público ocioso à prefeitura por um período de dois meses, a Mungunzá construiu um teatro em uma madrugada. Conforme diz o filósofo esloveno Slavoj Žižek em Bem-vindo ao deserto do Real!, o Ato acontece numa emergência em que alguém tem de assumir o risco e agir sem legitimação, engajando-se numa espécie de aposta pascaliana de que o Ato em si há de criar as condições para sua própria legitimação “democrática” retroativa. 

Žižek aponta, ainda, que um Ato é sempre uma intervenção específica num contexto sociossimbólico: ao golpe de 2016 sucederam-se infindáveis ataques à cultura e aos artistas. Mais do que a construção de uma sede própria, o Ato da Mungunzá constituiu-se enquanto vislumbre de futuros, de pousos para a produção teatral independente e coletiva – além de tornar-se base para diversas ações sociais, políticas e formativas.

Na manutenção do Teatro de Contêiner enquanto território possível para a criação, a fruição e o encontro, verifica-se o constante movimento do Ato constitutivo daquele espaço em torno de sua própria legitimação perante a sociedade e, por consequência, o poder público. Evidentemente, nem tudo são flores; a convivência com a diversidade do local não foi sempre pacífica. Entre as tantas violências de Estado, do abandono à repressão, a Mungunzá viu-se num enclave, numa fronteira: há momentos em que a complexidade da realidade atropela qualquer discurso bem intencionado.

Quando o objeto de um debate torna-se sujeito e a miséria em pauta corporifica-se em carne, osso e urina, é o não saber lidar que ganha o centro da reflexão. O episódio em que uma pessoa em situação de rua adentrou o espaço do Contêiner durante um fórum internacional sobre temas relacionados à drogas, saúde pública e urbanismo e acabou expulsa dali após doações de comida e cigarro tornou-se um dos motes do quinto trabalho da Mungunzá: Epidemia Prata (2018).

A sensação de repulsa diante da presença de uma mulher naquelas condições é um dos exemplos dos tantos choques entre realidades tão distintas que passou a fazer parte do cotidiano dos artistas da companhia agora sediada no Teatro de Contêiner. A obra, entre o épico e o performativo, trazia as experiências vivenciadas pelos criadores da Mungunzá naquele território, friccionadas ao mito de Medusa e o embrutecimento diante da miséria. A prata evocava também os meninos prateados, comuns em vagões de metrô, pintados dessa cor enquanto pedem esmolas porque a prata dá mais prata.

Diante destas (não-)poesias que morrem sob cobertores ao luar, parece ter restado à Mungunzá formalizar a sensação de impotência, de fracasso; levar à cena a própria imobilidade diante da aterradora miséria que (n)os circunda. Honesta e esteticamente bem elaborada, Epidemia Prata encarava de frente o problema de representar o irrepresentável e trazia uma partilha da dificuldade. É mesmo difícil encontrar o lugar da poesia quando o entorno parece ser apenas massacre após massacre. O horizonte estreita-se ainda mais quando a subjetividade e a imaginação também estão sob ataque. O que fazer?

Vez por outra rola uma desânimo brabo com a vida. Mas aí eu lembro que esses fascistas querem mesmo é a morte e me ocorre que a grande transgressão é ficar vivo. Viver é a nossa grande vingança contra esses putos.

(professor Luiz Antonio Simas, em seu tuíter)

anonimATO é a materialização da impossibilidade de se manter em paralisia nestes tempos de morte. É o teatro feito Ato: um mover-se na angústia, por entre incertezas; o insistente passo adiante na direção do abismo. Buscar a utopia no horizonte, ainda que a cada passo dado ela também caminhe mais distante (como disse Fernando Birri em conversa com Eduardo Galeano, em citação presente no trabalho da Mungunzá).

Então, anonimATO faz-se um cortejo: para tentar encontrar um lugar comum, como diz o programa da obra, a Mungunzá convida o público a caminhar juntes neste ato-espetáculo-manifesto-tentativa ao longo de cem metros no Parque da Luz, numa travessia de atravessamentos entre morrer e nascer; e tudo que está entre um e outro e antes e depois de um e de outro. 

Sob a direção de Rogério Tarifa, anonimATO é festa e manifestação. A encenação faz uso de diversos expedientes do teatro popular brasileiro, desde a musicalidade épica (sob direção e com trilha original de Carlos Zimbher, executada ao vivo por Daniel Doc, Flávio Rubens e Nath Calan – além dos substitutos João Sampaio e Luana Oliveira) na voz do coro de narradores, com direção vocal e composição musical de Lucia Gayotto e Natália Nery, passando por elementos circenses, como a perna de pau sobre a qual Marcos Felipe equilibra a utopia, e a comunicação direta, de escuta aberta, na busca de um encontro genuíno com o público.

Antes do espetáculo começar, Léo Akio já faz as vezes de pipoqueiro e Paloma Dantas, vendedora de sonhos, distribui doces para os que aguardam e também para quem passeia pelo Parque da Luz. Ir para a rua é ampliar os horizontes também daquelas e daqueles que não esperavam se deparar com o teatro diante de si. Ao mesmo tempo em que já se percebem as estações do trajeto a partir da distribuição de cenários, adereços e figurinos, anonimATO surpreende nas composições grandiosas com bandeiras, figurinos infláveis e  cabeções, que resultam em uma certa exuberância nas imagens construídas diante dos olhos dos espectadores.

Se em Epidemia Prata as figuras cinzentas eram um signo poderoso de mazelas urbanas, em anonimATO o centro da cidade é evocado não só pelas figuras trabalhadoras – e pelo próprio local da ação – mas também na imagem de Marcos Felipe: vestindo a poesia gráfica de Átila Fragozo (Paulestinos), torna-se espécie de homem-placa, comum nas ruas de pedestres do centro histórico. Porém, o caráter estático e mercantil deste subemprego é subvertido: não mais um anúncio de compra e venda; o ouro aqui é a utopia, anunciada em poesias que se formulam em perguntas e provocações.

A dramaturgia de Verônica Gentilin, a partir do argumento de Pedro das Oliveiras (e com textos do elenco e de Tarifa), faz de todas essas personagens alegorias de uma multidão (in)visível que habita as ruas, escritórios e lares da cidade. Akio é o pipoqueiro, presença tão cara à nossa tradição cênica – não por acaso, a morte do teatro materializa-se em sua transformação em um bailarino de butô (Marilda Alface assina o corpo de trabalho nesta linguagem, presente também em movimentos do coro). Dantas produz sonhos com sua força de trabalho e os oferece em troca de… sonhos. 

Sandra Modesto e Virginia Iglesias são mulheres cujos vetores de força opostos dão conta de significar universos: uma sobe aos céus, a outra aterra-se como árvore. Das Oliveiras é um trabalhador, manifestante, black bloc, aquele que veste a cidade como figurino. Felipe, sobre pernas de pau (treinado por Fábio Siqueira), é espécie de porta-bandeiras, equilibrista da incerta utopia buscada. 

Mirassos é “ninguém” até que efetiva-se o seu encontro com Bêda, que é tudo isso junto. Protagonistas da primeira cena do espetáculo, são opostos que se emaranham. Ela dança o hino nacional – e isso pode significar muita coisa. Ele, mochila aberta diante de si, parece carregar no peito o Sagrado Coração de Jesus; símbolo do amor profundo do Deus cristão por todos os seres. Um sacrifício que antecede o renascimento é o que inicia o caminhar de anonimATO. 

Se a tragédia é o canto do bode, o desejo da Mungunzá em seu ato-espetáculo musical de rua é perseguir o cacarejar da galinha. Ela representará a utopia em anonimATO, cuja imagem instalada sobre um totem que acompanha o cortejo parece incutir um caráter de procissão ao trajeto. 

A escolha pelo signo é curiosa e pouco se explica; assume-se a convenção e joga-se com ela. Mas vale pensar em torno do alimento dado ao animal: o milho. Lá está ele, sendo oferecido ao boneco-utopia-galinha. Lá está ele, enquanto pipoca, oferecido ao público. Lá está ele, sacralizado, em um banho de Obaluaiê (Atotô!). Lá está ele, a base para o mungunzá. Não é nem necessário recorrer à cosmovisões ameríndias (como bem nos lembra Galeano, os deuses maias nos fizeram de milho) para que todo um campo de leituras se abra em torno da escolha da Mungunzá: alimentamos a utopia nos alimentando, literal, simbólica e espiritualmente.

A convocação de anonimATO ao movimento arregimenta-se enquanto busca de formular objetivos, motivações e desejos comuns à multidões. Ao mesmo tempo em que a Mungunzá compreende e compartilha assertivamente seu posicionamento diante do contexto trágico de nosso país, o espetáculo não deixa de manter-se aberto para que cada pessoa ali assistindo formule seus próprios entendimentos. 

anonimATO não aponta para respostas fáceis, mas insiste na necessidade de conseguir lançar o olhar adiante. Lembrar, imaginar, ressignificar: há muitos Brasis espalhados pelo Brasil. Em cem metros de caminhada, cabem infinitos territórios possíveis de sonho, suor e vida. Ao final, reconhecer em meio à multidão a própria identidade. Fazer-se inteiro em uma existência em Ato. Ver no teatro vislumbres de futuro. É preciso chocar o ovo da utopia.

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[amilton de azevedo escreveu este texto à convite da Companhia Mungunzá de Teatro]

ficha técnica
anonimATO
Espetáculo de rua da Cia. Mungunzá de Teatro.

Direção – Rogério Tarifa. Argumento – Pedro das Oliveiras. Dramaturgia – Verônica Gentilin. Textos (base para dramaturgia) – Elenco, Rogério Tarifa e Verônica Gentilin. Elenco – Fabia Mirassos, Léo Akio, Lucas Bêda, Marcos Felipe, Paloma Dantas, Pedro das Oliveiras, Sandra Modesto e Virginia Iglesias. Direção Musical e Trilha Sonora Original – Carlos Zimbher. Direção Vocal Interpretativa e Composição Musical do Coro – Lucia Gayotto e Natália Nery. Corpo de trabalho (butô) – Marilda Alface. Colaboração Cênica – Luiz André Cherubini. Banda – Daniel Doc (guitarra e sintetizador), Flávio Rubens (clarinete, sax e rabeca), Nath Calan (percussão e bateria), João Sampaio (substituto - guitarra) e Luana Oliveira (substituta - bateria). Pré-produção Musical – Daniel Doc. Figurinos – Juliana Bertolini. Assistente de Figurino – Vi Silva. Costureiras – Francisca Lima e Lucita. Construção Figurino Inflável – Juan Cusicanki. Cenografia – Fábio Lima, Lucas Bêda, Luiz André Cherubini e Zé Valdir. Adereços e Bonecos (cabeção) – Zé Valdir. Operadores de Som – Junão Ferreira e Guilherme Christiano. Contrarregras – Fábio Lima e Mariana Beda. Poesia Gráfica (placas, carrinhos e bandeiras) – Átila Fragozo [Paulestinos]. Treinamento de Perna de Pau – Fábio Siqueira. Fotos – Letícia Godoy, Mariana Beda e Pedro Garcia de Moura. Assessoria de Imprensa – Frederico Paula [Nossa Senhora da Pauta]. Produção Executiva – Gustavo Sanna [Complementar Produções]. Produção Geral – Cia. Mungunzá de Teatro.

Projeto realizado com apoio do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo - Secretaria Municipal de Cultura