teatro

inventar tempos, preencher espaços

crítica de A Roteirista da sua vida e o Homem que morava dentro do sofá, primeiro episódio da narrativa digital em três partes POEMA EM QUEDA-LIVE, da Cia. Mungunzá de Teatro.

Do alto de um prédio, alguém cai. O corpo nunca chega ao chão. Enquanto a queda não se consumar, a vida de seis pessoas seguirá suspensa. Em Poema suspenso para uma cidade em queda, espetáculo de 2015 da Companhia Mungunzá de Teatro com direção de Luiz Fernando Marques Lubi, os moradores do edifício parecem isolados dentro de memórias, ausências, traumas e lutos não elaborados. A obra materializa a instabilidade da situação por meio de seu dispositivo cênico: enormes andaimes com pequenos nichos habitados pelas personagens. Ali, cabia todo um universo inerte.

2020. A pandemia materializa o isolamento e a paralisia. O tempo do mundo segue correndo fora; mas como anda o tempo dentro? O lar de cada um torna-se vastidão e claustro. É nesse contexto que a Mungunzá recria seu Poema para as plataformas digitais. No momento em que muitos carregam consigo a sensação deste corpo em queda, suspenso pela angústia, a situação atual confere novas camadas de significação ao argumento original.

O primeiro acerto de POEMA EM QUEDA-LIVE é a escolha de dividir sua narrativa digital em três partes (a estreia da primeira parte acontece dentro do projeto Teatro #EmCasaComSesc). Cada episódio verticaliza o olhar sobre duas personagens, ainda que as seis estejam sempre presentes. Desse modo, é possível acompanhar o desenvolvimento de suas trajetórias com uma maior tranquilidade, ao mesmo tempo que parece permitir uma maior experimentação da linguagem visual da obra.

A dramaturgia, assinada por Verônica Gentilin, parte do mesmo argumento da Mungunzá para Poema suspenso e habita os mesmos corpos. Porém, ganha outras camadas no formato de live, seja por adaptações e recriações, seja pelo diálogo com nossos tempos e com o caráter de encenação digital, assinada pela companhia ao lado de Lubi e Flavio Barollo. 

Barollo é também o videoartista da obra e realiza a edição ao vivo do material. Se em Poema suspenso era possível acompanhar os passos de Pedro Augusto, técnico performer, na lida com a materialidade cênica, desde a iluminação até a movimentação do andaime, em POEMA EM QUEDA-LIVE uma das janelas que passeiam pela tela é precisamente a da ilha de edição de Barollo.

No episódio 1 – A Roteirista da sua vida e o Homem que morava dentro do sofá – tornam-se visíveis o que parecem ser as diretrizes desta recriação artística. Poema suspenso para uma cidade em queda trazia consigo momentos impactantes, e é sem dúvida a obra do repertório da Mungunzá que estabelece o diálogo mais direto com nossos tempos.

POEMA EM QUEDA-LIVE formaliza-se como uma obra independente, que prescinde das referências do espetáculo presencial para ser compreendido, mas é interessante analisá-los em paralelo. Cabe pensar em momentos-chave de Poema suspenso. Como, por exemplo, o seu final: sentados em cadeiras diante do público, desmontada a espetacular teatralidade da encenação, o elenco improvisa – ou dá a entender que o faz – uma série de afirmações a respeito de sensações deles e sobre acontecimentos do mundo.

O primeiro episódio da narrativa digital começa com um semelhante desprendimento. Além do elenco e da equipe, também estão na tela convidados em uma conferência via Zoom. É um prólogo que traz, organicamente, reflexões sobre a atualidade enquanto pactua com aqueles espectadores essa nova convenção proposta pelas apresentações online: uma obra de bases teatrais que entra na casa das pessoas; um pedacinho de vida que é compartilhado. Assim já se percebe um dos grandes saltos desta recriação: em POEMA EM QUEDA-LIVE, nos incluímos todos entre aqueles cuja vida se suspendeu nesta queda sem fim de um corpo que não se vê. Vizinhos, semelhantes em angústias e paralisias.

No entanto, assim que A Roteirista da sua vida e o Homem que morava dentro do sofá efetivamente começa, emergem as pesquisas de linguagem concebidas dentro da proposta de uma encenação digital. Dentro dos trabalhos da Mungunzá, há sempre uma aproximação às artes visuais, considerando a plasticidade das cenas desenhadas em fricção com a narrativa, geralmente épica. 

POEMA EM QUEDA-LIVE de certo modo radicaliza essa interface já presente na trajetória do grupo ao propor, em seu primeiro episódio, o que talvez se possa chamar de uma estética do glitch. As interferências da plataforma ao vivo operada por Barollo – além da fotografia e produção audiovisual de Bruno Rico e Pedro Augusto – são simultaneamente ruído e elemento condutor da narrativa.

É como se a operação visual, na sobreposição e estilização de imagens, alinhada à presença de múltiplas câmeras em uma mesma cena e somada à própria revelação de procedimentos se tornassem o equivalente ao movimento do andaime de Poema suspenso. Não enquanto emulação do risco, mas como potência motriz dessa materialidade virtual.

No argumento de POEMA, a lida com todos esses corpos que nunca caem. Com as quedas sem fim em cada um de nós. A matéria da narrativa são os vazios que não mais se preenchem. Ausências, traumas, lutos: da memória dos atores-performers e da invenção do enquadramento ficcional – há algo de onírico nesta narrativa digital – surgem estes acontecimentos que suspendem a vida em suas irresoluções.

Presos naquela realidade-vórtice há trinta e três anos, as personagens parecem já não serem capazes de conceber o que seria o fim da queda. O que há depois da queda? Do chão? Do ar? Dentro de suas casas, é como se vivessem todos os tempos no agora – em um agora que não passa.

O primeiro episódio traz duas histórias que envolvem a figura paterna. A Roteirista da sua vida, Verônica Gentilin, cria filmes com temporais sob céus azuis; o Homem que morava dentro do sofá, Lucas Bêda, se veste da ausência não-confrontada. Gentilin e Bêda falam de pais que se vão, mesmo quando talvez desejassem ficar. Entre confinar-se na composição de ficções e dentro de um móvel, a ideia de estar preso no pior frame da própria vida carrega a impossibilidade de superação e elaboração do(s) luto(s).

As personagens fazem da casa espaço de invenção de tempos, numa busca de produção de sentidos que coloque em movimento a vida em si. É preciso reconhecer o vazio para preenchê-lo. A queda traz consigo a força do impacto, enquanto a suspensão é um campo imensurável de possibilidades igualmente assustadoras. A angústia nos faz correr pelas ruas e também nos faz conviver com nada além de plantas. Ser o corpo suspenso que some e a vida que segue. Tudo isso pode ser um poema.

[amilton de azevedo foi convidado pela Cia. Mungunzá de Teatro para assistir a um ensaio aberto e escrever sobre a obra]