teatro

amplificar sussurros

crítica de Vienen por mí, dramaturgia de Claudia Rodriguez com atuação de Fabia Mirassos e direção de Janaina Leite.

Sobre o que se espera que fale a travesti? Vienen por mí, da dramaturga chilena Claudia Rodriguez, travesti, na interpretação de Fabia Mirassos, travesti, começa falando de culinária. Podem as travestis falar de sushi? Para as travestis, qualquer arroz serve, diz o texto; na encenação, com direção de Janaina Leite, a entonação de cada palavra dita por Mirassos, cada um de seus gestos, ações e danças – além de cada movimento de luz de Aline Santini – são ingredientes escolhidos com muita atenção e precisão.

A atriz define a obra, sucintamente, como uma peça escrita por uma travesti com atuação de outra travesti. A frase é quase como sentença. Sobre o que se espera que fale a travesti? O que tem a travesti para dizer? Mas trata-se de algo anterior: do que a travesti quer falar? Quando Mirassos empunha um microfone, é para falar baixo. Como que ao pé do ouvido de todas as pessoas ali, diante dela. Amplificando seus sussurros, pois nem sempre se quer que seja preciso gritar para ser ouvida.



O texto de Rodriguez encontra em Mirassos uma intérprete preciosa: Vienen por mí torna-se biografias, no plural, na compreensão de que não se trata de um trabalho de biodrama ou autoficção da atriz, mas que as narrativas da travesti chilena reverberam no corpo e nas vivências da travesti brasileira. 

Esse instável enquadramento da ficção no real (ou vice-versa) pode ser percebido como uma assinatura nas obras dirigidas por Leite. Alguém desavisado pode sair do teatro pensando serem de Mirassos as palavras ditas. Não são; mas também são. A atriz torna-se veículo de um discurso que também é dela. Que também é ela.

Casos reais de violência são narrados por Ultra Martini e Henrique Andrade na cabine da técnica, que também mostram as imagens que dão rostos a nomes de vítimas. Na escolha de convidar o espectador a prestar atenção ali, no que está fora da cena, Vienen por mí tensiona o lugar da realidade no teatro. Não por acaso, também está ali a contrarregragem de Mirassos, cuja naturalidade nas ações mantém em fricção o lugar do depoimento performativo e o trabalho de interpretação da atriz.

As escolhas da encenação parecem todas confluir, de forma minimalista, para que o foco esteja nas palavras e movimentos de Mirassos. Conduzindo o público do início ao fim do espetáculo, a intérprete desenha suas intenções com precisão: na modulação de uma  frase, é capaz de transformar totalmente a atmosfera do espaço – e a luz de Santini dança com cada cena. Trata-se de um trabalho sutil, onde leveza e assertividade encontram seus espaços como os temperos de uma receita agridoce. E pode a travesti cozinhar?

Sobre o que se espera que fale a travesti? Enquanto escutamos o texto-manifesto de Rodriguez sendo dito, vemos Mirassos preparando um delicioso aperitivo de beterraba – que será compartilhado com a plateia ao final de Vienen por mí. A travesti empunha uma faca afiada para descascar uma raiz cuja cor tinge suas mãos como sangue.

É interessante o jogo que se estabelece entre texto e cena. Mirassos passeia por entre intenções e tônus, escolhendo como saborear cada palavra e composição. Geografias, presentes e passados são atravessados nas imagens construídas em Vienen por mí. Na troca de figurino de Mirassos (com concepção da atriz junto de Salomé Abdala), o branco-inocência torna-se vermelho-mulher. Quando chega o momento das vozes em off (além da própria Rodriguez, também se escuta Ave Terrena, Morgana Olivia Manfrin e Maria Leo Araruna), os desejos das travestis se multiplicam: querem luxo, querem ser alienígenas, querem falar sobre a guerra na Ucrânia e aumentar suas expectativas de vida falando mal de gente cisgênera.

A partir deste caleidoscópio que se apresenta, é redutor pensar que se trata de uma obra identitária (ainda mais considerando a utilização do termo de forma pejorativa). Vienen por mí é uma peça escrita por uma travesti com atuação de outra travesti que deve ser vista por pessoas de todos os gêneros. Um retrato de poesia-denúncia do que é, do que deveria e do que poderia ser ser travesti em nossa sociedade cisheteronormativa. Um ponto de vista sobre o contemporâneo que deve ser observado em sua urgência e magnitude.

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serviço
VIENEN POR MÍ
De 5 a 14 de setembro, segunda a quarta-feira, às 20h.
Teatro de Contêiner Mungunzá.
Rua dos Gusmões, 43 – Luz (próximo à estação Luz do metrô). Capacidade – 99 lugares.
16 anos | 60 minutos | Ingresso consciente (o público, consciente do trabalho envolvido para realização do espetáculo, e do valor que ele dá para vivenciar esta experiência, escolhe quanto acha adequado pagar pelo seu ingresso, de acordo com sua condição financeira)

ficha técnica
VIENEN POR MÍ
Idealização e Performance – Fabia Mirassos. Texto – Claudia Rodriguez. Direção – Janaina Leite. Assistente de Direção – Emilene Gutierrez. Colaboração Artística – Carol Vidotti. Desenho de Luz – Aline Santini. Visagismo e  concepção de figurino – Fabia Mirassos. Concepção e confecção de figurino – Salomé Abdala. Direção de Arte e Designer Gráfico – Renan Marcondes. Fotos – Hugo Faz. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Direção de Produção – Carol Vidotti.