destaque, teatro

profanar a devassidão

crítica de História do Olho, de Janaina Leite, inspirada no livro homônimo de Georges Bataille.

Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o grito do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os “prazeres da carne”, na condição de que sejam insossos. Mas, desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama “os prazeres da carne”, justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que era tido por “sujo”. (…) A devassidão que eu conheço não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado… (Georges Bataille – História do Olho)

Qual a sua relação com a pornografia? A pergunta é nevrálgica na orquestração de todos os elementos que compõem a cena de História do Olho, com direção de Janaina Leite. É tão fundamental quanto indesviável. Ela é repetida algumas vezes ao longo do espetáculo, pelo Núcleo do Olho, elenco de performers que acompanhou Leite por meses no processo criativo. A cada novo relato, o público é convidado mais uma vez a se perguntar. E a pergunta pode ser incômoda por uma miríade de motivos.

História do Olho não é uma peça sobre pornografia. Trata-se de uma adaptação fiel, na medida do possível, ao livro de Georges Bataille. Conforme o autor, que publicou sua obra sob o pseudônimo de Lord Auch em 1928, mantendo o anonimato e não reivindicando sua autoria até a morte, a literatura é inorgânica; e sendo inorgânica, a literatura é irresponsável. Nada pesa sobre ela. Pode dizer tudo. O teatro, ao contrário, é absolutamente orgânico; muito pesa sobre ele e não é possível – no sentido literal – dizer tudo na forma da presença cênica.

Assim, a pornografia não é tema (ainda que o erotismo de Bataille seja muitas vezes pornográfico), mas sim forma. A linguagem – pois, sim, trata-se de uma linguagem – é a que possibilita talvez a mais adequada aproximação ao obsceno, pensando no sentido de fora da cena, na (contestada) etimologia latina da palavra; ob-scaenum.



Em Stabat Mater (2019), trabalho anterior de Leite – cuja trajetória de pesquisa na última década revela-se cada vez mais vertical e, de certo modo, linear ao ser observada em perspectiva – a pornografia tornava-se um fim, não um meio: literalmente, o filme pornô da atriz com um profissional da indústria, dirigido por Amália Fontes Leite, mãe da artista, era a cena final do trabalho. Stabat Mater tangenciava – e já era atravessada – pelo universo da pornografia; pela fricção entre ela e o teatro em suas organizações de desenvolvimento de linguagens cênicas e de proposições estéticas.

História do Olho carrega muito das encenações de Leite. Há ali reminiscências (e esta palavra é importante para a leitura da presente obra) tanto de Stabat Mater quanto de Conversas com meu pai (2014), criações mais “individuais” (ainda que com pessoas colaboradoras) da artista. Também não se pode ignorar as contribuições à pesquisa – e à cena de História do Olho – de Feminino Abjeto 1 e Feminino Abjeto 2 – o vórtice do masculino.

Aqui, há uma virada radical não apenas nas intenções de Leite, mas em suas escolhas formais. Olhando em retrospectiva, faz sentido que a perseguição quase obsessiva, aqui como elogio, da artista pelo real à lançasse na direção da pornografia e do obsceno. Se em Camming 101 noites Leite estava absolutamente exposta, em História do Olho, simultânea e paradoxalmente, ela é uma anônima Lord Auch e uma autora com nome próprio. Quando surge em cena, é quase como um fantasma de Bataille. E Bataille é também seu fantasma. Se cada capítulo é apropriado por ume performer, não poderia ser diferente com as Reminiscências que encerram o livro: Leite implica-se no seu tabuleiro ao falar as palavras de Bataille como se fossem dela. Quase em primeira pessoa, sua ação lembra ao público que ela também faz parte de tudo aquilo que se viu na cena. Uma narradora não-confiável, entre ficção e real. 

No pósfacio Um olho sem rosto, Eliane Robert Moraes aponta que o pseudônimo da História do Olho pode ser considerado uma máscara. E a máscara utilizada por Leite em Stabat Mater retorna, sendo agora a sua presença fantasmagoria; uma presença ausente, quase reflexo do que acontecia com sua mãe na encenação anterior.

Esses ecos de uma presença – que é também aqui maternal, quando o performer vestido de Janaina acolhe Tadzio Veiga em seu colo, por exemplo – também parecem reverberar Feminino Abjeto 2, quando o rosto da artista surgia em um tablet e seu corpo-objeto-cênico era desmembrado, profanado por aqueles tantos intérpretes-filhos-vorazes.

Essas reminiscências são confrontadas diretamente pela encenação. Ao Núcleo do Olho não cabem máscaras nem tampouco o anonimato. Suas identidades se friccionam com seus relatos e suas ações explícitas no espaço cênico. Mesmo quando a linguagem joga com a representação, há uma performatividade inescapável naquilo que se apresenta. A autobiografia sem rosto de Bataille é aqui vivificada por corpos de gêneros e sexualidades não-normativas, dissidentes.

A História do Olho, reitera-se, não é sobre pornografia. É sobre pulsões de vida e morte, sobre uma juventude que entende a devassidão em si como campo a ser profanado. Na primeira cena da peça, Lucas Scudellari está com uma caixa em seu colo. Ele compartilha as suas experiências como garoto de programa e ator pornô. Seu depoimento por vezes gera a expectativa de que haja uma virada narrativa, um dado crítico à indústria. Mas quando ele abre a caixa, conta com orgulho dos prêmios recebidos; do reconhecimento de seus pares. Em Conversas com meu pai, Leite começa o espetáculo com uma caixa em mãos, onde estariam todas as cartas trocadas com o pai. A caixa nunca será aberta. Em História do Olho não restam caixas fechadas.

Quando Vinithekid fala de sua relação com o gore, conta que, para Leite, a descrição de um vídeo explícito foi recebida de forma mais violenta do que o próprio vídeo. No cenário-totem de Conversas, descobre-se em Stabat Mater, havia um facão escondido, jamais visto pelo público. Quando a artista revela não apenas isso, mas a história por trás do facão, ressignifica-se o que se vê da relação da artista com a mãe, diante do público naquele momento – e, além disso, há um horror movimentado em retrospecto trazendo novas camadas às reminiscências da obra feita sobre a relação com o pai.

Em História do Olho, por mais explícitas que certas cenas sejam, muitas vezes está nas palavras de Bataille o maior impacto para o espectador. E é fundamental compreender uma proposição talvez implícita na encenação: há de se abrir para rupturas no pensamento binário tradicional de que a utilização de certos recursos em obras artísticas serve meramente à naturalização ou ao choque. Existem muitos mundos de produções de sentidos entre estes dois polos.

Não por acaso, enquanto Scudellari é penetrado por Dadu Figlioulo, o trecho sendo dito pelo ator é a epígrafe deste texto. Profanar a devassidão. Em outro momento, o capítulo O olho de Granero, onde Bataille narra o que viu em uma tourada em Madrid, é apresentado ao público enquanto a equipe de Pombo Morcego realiza uma performance de suspensão. Imagem e texto estão sempre alinhados em suas potências, mesmo quando um acaba por engolir o outro.

Quando a História do Olho de Leite abre-se para a participação do público, no jogo de verdade ou consequência conduzido por Figlioulo, um instável equilíbrio entre vaidades, exibicionismo e abertura para a experiência se desenha. O que significa pessoas da plateia sentirem-se tão à vontade para mostrar seu corpo ou realizar ações sexuais com performers?

O que significa uma pessoa desconhecida voluntariar-se para fistar Isabel Soares enquanto André Medeiros Martins canta Mete mete a mão / Quero o polegar primeiro / O anelar, o indicador / O mindinho e o cotovelo com a Banda do Olho? Há algo extremamente mobilizador na lida do Núcleo do Olho com essa intersecção entre adaptação literária e depoimentos biográficos. 

As reminiscências, aqui, são memórias recentes, práticas cotidianas, não apenas materializadas na cena mas sua matéria prima. Na relação entre o princípio do desejo e a pornografia, História do Olho pode soar inconsequente. Mas está tudo ali, no subtítulo: um conto de fadas pornô-noir. A pornografia é encarada como matriz de teatralidade, e assim a obra ganha fôlego e consistência no que se propõe.

Narrativa, representação, intenção, performatividade, efeito: História do Olho é uma grande celebração profana do teatro e das infindáveis possibilidades de propor teatralidades quase como quem brinca de inventar mundos. Certos momentos estabelecem-se como paródias de si mesmos na formalização através dos jogos cênicos. A dramaturgia de Leite, em dado momento, insere essa questão na dramaturgia. Diz a personagem MÃE: 

Todo mundo sabe que a vida é paródica e carece de uma interpretação. Cada coisa que se vê é a paródia de uma outra ou ainda a mesma coisa sob uma forma enganadora. (…) Conforme nossos jovens perdem em interioridade psicológica, ganham em interioridade orgânica: seu “funcionamento” é cada vez mais comandado pelo corpo. Libertos de todas as restrições, se abandonam ao regime intensivo da matéria.

Assim o chumbo é a paródia do Ouro. O ar é a paródia da água. O cérebro é a paródia do Equador. O coito é a paródia do crime.

O narrador de Bataille e suas companheiras, Marcela e Simone, vale lembrar, são praticamente crianças. O que talvez torne tudo mais terrível – no melhor sentido que a arte pode proporcionar. Curioso notar que o único signo que insiste em permanecer por toda a encenação de Leite são as meias brancas, altas. Há algo ali de jovem, colegial, mas também é impossível não pensar em fetiches. 

Naquela pulsante juventude em descobertas eróticas e mórbidas, as cenas parecem apontar para a representação inerente ao sexo vanilla – aliás, o único momento que remete à performance sexual heteronormativa é violento e hilário, com Veiga transando com manequins como quem pratica luta-livre. Em sua estrutura, História do Olho aponta para a proposição de que é apenas nas sexualidades kinks que sobrevive a reminiscência performativa (real?) das relações (sexuais?). Ainda que soe quase paradoxal, compreendendo as tantas práticas que envolvem representações dentro deste amplo universo em permanente expansão, faz sentido pensar deste modo. A única constante na construção de identidades que inevitavelmente lidam com expressões das sexualidades é a descoberta.

Não esqueça nada do que você sabe sobre pornografia: lembre-se de tudo que experienciou com – ou contra – ela. História do Olho traz mais dúvidas que respostas em sua adaptação cênica do obsceno, formalizando o erotismo de Bataille enquanto parte integrante da experiência humana. Há muito o que se pensar e problematizar em torno de diversos aspectos, inclusive sobre a dissolução das bordas entre público e privado, talvez comum à pós-modernidade. E pode ser o teatro o campo mais fértil para a semeadura de contemplações e reflexões neste e em tantos outros sentidos. Compreender tudo; estranhar tudo. A experiência orgânica do que vive em nós. É sobre o que já existe e nos circunda e sobre o que habita imaginários – e, assim, passa a existir.

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ficha técnica
História do Olho

Idealização, Direção, Dramaturgia e Performance – Janaina Leite. Dramaturgismo e Assistência de Direção – Lara Duarte e André Medeiros Martins. Performers Criadores e Depoimentos – André Medeiros Martins, Anita Saltiel, Armr’Ore Erormray, Carô Calsone, Cusko, Dadu Figlioulo, Georgia Vitrilis, Isabel Soares, Lucas Scudellari, Ultra Martini, Vinithekid e Tadzio Veiga. Composições Originais e Performance – André Medeiros Martins, Ultra Martini e Vinithekid. Luz – Wagner Antônio. Figurino – Melina Schleder. Preparação Corporal – Lara Duarte. Arranjos e Desenho de Som – Renato Navarro. Produção Musical – Mateus Capelo. Suspensão – Pombo Morcego, Blue Mermaid e performers convidades. Concepção de Manequins Articulados e Coreografia – Tadzio Veiga. Pesquisa Tourada – Carô Calsone e Isabel Soares. Cenotécnicos – Edson Luna e Wanderley Wagner da Silva. Direção de Produção – Carla Estefan. Assistentes de Produção – Samuel Rodrigues e Letícia Karen. Coordenação de Palco – Cusko. Operação de Som ao Vivo – Vinithekid. Técnico de Som – Renato Navarro. Operação de Luz – Felipe Tchaça e Aline Sayuri. Colaboradores – Eliane Robert Moraes, Christine Greiner, Biaggio Pecorelli, Bruna Kury, Ediyporn, Beto Propheta, Artur Kon e Rodolfo Valente. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Fotos – Cacá Bernardes. Design Gráfico – Sato do Brasil. Ilustração da Arte – Flopes. Foto para Ilustração – Dadu Figlioulo. Mídias Sociais – André Medeiros Martins. Gestão de Projeto, Produção e Difusão – Metro Gestão Cultural. Apoio – Teatro Mars e Centro Cultural da Diversidade. Coprodução – MITsp-Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Realização – Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 13° Prêmio Zé Renato de Teatro, TUSP, e Metro Gestão Cultural.