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a coragem do nós

crítica de Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a Revolução, do Grupo Pano. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Talvez um dia o poeta tenha seus corações ardentes. Talvez o mundo tenha. Sim, o mundo precisará de corações ardentes, de estrelas luminosas e de jovens cheios de disposição e vigor, quando terminar a guerra e se restabelecer a paz. Corações jovens, mentes jovens e corpos jovens farão o mundo jovem novamente. (Stig Dagerman, A política do impossível)

Uma célula revolucionária desenha seus planos de convencer corações e conquistar nações. Conclamam pelo apoio popular, mas quando uma representante do povo se apresenta como voluntária, recusam-se a atender a porta, desconcertados. O segundo espetáculo do Grupo Pano, Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a Revolução, é tradução cênica da sensação de seu coletivo criador e de toda uma parcela da população brasileira.

Na formalização de suas próprias angústias, jovens artistas questionam-se enquanto indivíduos e coletividades na busca de estruturar suas questões estético-políticas no decantar possível do diálogo entre diversas pesquisas de linguagens teatrais contemporâneas. O trabalho de estreia do grupo, Pano. Fim., trazia um distópico ocaso do próprio fazer cênico enquanto homenageava o teatro como o maestro do invisível que é em sua organização em torno dos discursos que projeta, sintetiza e propõe.

Agora, Foi enquanto eu esperava amplia a distância focal entre sujeitos e objetos: se Pano. Fim. voltava seu olhar para as possibilidades e limitações da teatralidade em si, a nova obra do Grupo Pano parte das teatralidades do poder, mesmo enquanto resistência e dissidência, para refletir em torno das implicações de cada sujeito nas lutas e revoluções dos tempos que correm, compreendendo a necessidade de problematizar caminhos percorridos e convocar à imaginações radicais na direção de futuros mais prósperos e harmônicos.



Na encenação que inaugurou o Grupo Pano, já se questionava a função do artista diante do fracasso das sociedades capitalistas contemporâneas. Agora, com igual transparência e grandes doses de ironia, o coletivo encampado pelo diretor e dramaturgo Caio Silviano aborda a função social possível do jovem artista burguês diante das necessidades revolucionárias para a transformação do mundo ocidental contemporâneo.

(…) é preciso se rebelar, atacar o sistema mesmo sabendo que – e esse talvez seja o grande dilema dos socialistas de hoje –, tragicamente , qualquer defesa ou ataque não são nada mais que simbólicos, mas devem ser feitos assim mesmo, pelo menos para que ele não se envergonhe de não o haver feito. (Stig Dagerman, A política do impossível)

Foi enquanto eu esperava é uma demarcação incisiva do coletivo na percepção de que tudo é passível de questionamento – discursos ideológicos, bases teóricas e produções estéticas parecem todos balançar na dinâmica da encenação. O Grupo Pano compreende o locus social de sua instituição enquanto coletividade teatral na cidade de São Paulo e toda a reflexão proposta pela obra é indissociável dos marcadores sociais que atravessam sua composição – que não escapa, nem nega, de sua constituição majoritariamente branca e burguesa. Ao mesmo tempo, o cinismo comum a trabalhos de pretensa autocrítica aqui encontra uma estrutura onde pode navegar com certa tranquilidade.

Isso porque texto e cena, sob a batuta de Silviano, dialogam em seus fluxos de discurso e linguagem numa forma que resulta no trânsito entre expedientes reconhecíveis, com referências nítidas – intencionais ou não – a outros trabalhos e reflexões, e um encontro singular de proposições que friccionam diversos graus de representação e ficção em sua composição.

Entre narradores, personagens e personas, Foi enquanto eu esperava faz de seus intérpretes artífices de tentativas de transformação diante da inóspita realidade. Enquanto o horizonte se coloca cada vez mais estreito, buscam fazer de suas ações àquelas dignas de corações ardentes, cheias de disposição e vigor, ainda que tateando as possibilidades de efetivamente concretizá-las enquanto Ato. Na lida com suas agências enquanto seres políticos, deparam-se com as limitações que se impõem diante de suas utopias.

A política foi definida como a arte do possível. Parece ser uma definição adequada. O possível é, na verdade, o mínimo pensável. Crer nele significa ter feito uma censura preventiva sobre a possibilidade do risco, da esperança e do sonho. No mundo do possível , o ser humano é apenas um prisioneiro do medo e da indiferença. Diante do possível, ele é tão impotente quanto diante da morte. (Stig Dagerman, A política do impossível)

No teatro, não há – ou não deveria haver – espaço para a indiferença. O mínimo pensável é muito pouco, e assim acaba também por ser o próprio possível. Talvez seja esse o motivo para o Grupo Pano trazer à cena palhaços, bufões, bebês, poetas antigos e a ânsia do novo: para que se possa encarar cada triunfo e cada derrota com o mesmo invulnerável sorriso, como propõe Stig Dagerman e sua política do impossível, citado ao longo deste texto e também no assinado por Silviano no programa do espetáculo. Porque insensatez é aceitar o possível.

Há em Foi enquanto eu esperava a sensatez de ir além: a coragem de propor um nós.  Mesmo diante dos fracassos, há um alvorecer que se anuncia, ainda que oculto pelas nuvens que impedem o vislumbre de caminhos certos. Derrubam-se cânones artísticos e referências antigas, na compreensão de que muito ainda há por se inventar – na vida, na labuta, na luta. 

Sempre se demoliram casas e as pessoas sempre choraram pelos tijolos derramados. Sempre foi difícil entender isso, mas um dia também vão chorar quando o novo prédio ficar velho e for demolido. (Stig Dagerman, A política do impossível)

Na metateatralidade insistente do Grupo Pano, cuja pesquisa de linguagem parece verticalizar-se na direção das possibilidades de diferentes enquadramentos ficcionais em sua prática épico-narrativa, lançando mão inclusive de uma falsa performatividade para construir relações entre cena e público, debatem-se as distintas aproximações entre teatro e sociedade, entre indivíduo e coletivo, entre história e subjetividade. Não se trata de ignorar referências e circunstâncias, mas de compreender que a dialética se constitui no tempo presente; a prática é o critério da verdade.

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ficha técnica
Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a Revolução
Direção e Dramaturgia: Caio Silviano
Elenco: Alice Guêga, Amanda Quintero, Bernardo Bibancos, Cecília Barros, Henrique Reis, Juliano Veríssimo e Rafael Érnica
Direção de Arte e Design Gráfico: Cecília Barros
Adereços: Amanda Quintero e Bruno Britto Chiomento
Máscaras: Rafael Érnica
Iluminação: Lui Seixas
Operador de Luz: Bruno Camargo
Trilha Sonora e Música: Grupo Pano
Fotos de divulgação: Vinicius Aguiar
Assessoria de Imprensa: Nossa Senhora da Pauta
Produção: Grupo Pano e Anayan Moretto
Apoio: Turma do Bem, Grupo Redimunho de Teatro, Planeta's, Piolin e Luna di Capri
Realização: Grupo Pano