teatro, esse maestro do invisível
crítica de “Pano. Fim.” do Grupo Pano
“GODOT (choramingando): Eu não poderia viver sem o teatro… Não duraria muito… Toda noite, eu estava na plateia, estava entre as pessoas, vivia… Sofria como um animal, mas vivia… Vivia em tudo, em cada palavra… Como eles podem fechar tudo? como podem jogar as pessoas pra fora? O que será de mim agora?” (O Último Godot — Matéi Visniec)
Acabou-se o teatro. Em uma hora, eles vão chegar e demolir tudo. No último teatro do mundo, três atores encaram o iminente fim. A premissa de Pano. Fim. pode flertar com um lugar-comum do imaginário de artistas, o seu “maior medo — o fim absoluto da fonte que nos alimenta”, como escreve o diretor e dramaturgo Caio Silviano no programa do espetáculo.
O que resulta, a partir das pesquisas do Grupo Pano sobre recepção, teatro do absurdo e teatro épico, é uma encenação peculiar que sobrepõe referências conhecidas à criação de uma dramaturgia extremamente bem costurada por Silviano e Lucas Sanchez e repleta de beleza. O fim do teatro compreendido como a tragédia do pipoqueiro, por exemplo, traz reflexões interessantes deste jovem grupo.
Com direção musical de George Lucas, canções tipicamente brechtianas comentam a ação, fazendo uso equilibrado de metáforas e discursos diretos. Como o desespero necessário para erguer uma parede; ou a percepção do terceiro sinal como prelúdio do fim. Afinal, o que diferencia o abrir do pano de seu cair?
Ao adentrar o espaço cênico, o público se depara com estes três atores — Henrique Reis, Ian Noppeney e Sanchez, em trabalhos vigorosos e equilibrados — se aquecendo para algo. Algo incerto, ainda. Aos poucos, o que se evidencia é uma intenção de trabalhar dentro de diversas camadas ficcionais. Excetuando-se um breve momento semi-anárquico de um brinde quase ao final, o grupo parece optar por não trabalhar a partir da performatividade.
Os atores são personagens que representam personagens. Falam com personagens da plateia dentro da ficção; ou derrubam epicamente a quarta parede para explicitar certos elementos da encenação. Ainda que a encenação friccione linguagens, as matrizes de criação propostas parecem vir mesmo do chamado teatro do absurdo; a cena onde cabeças surgem sobre o piano ecoa Beckett, entre Dias Felizes e Fim de Partida.
A inspiração beckettiana permeia Pano. Fim., talvez até em oposição. Como se eles, este inimigo indeterminado, fossem um anti-Godot que as três personagens têm consciência de que certamente chegará em um momento exato, mas seguem em ações pouco efetivas, aceitando a inevitável destruição.
Há um quê derrotista em Pano. Fim., ainda que a obra se construa de modo muitas vezes divertido, mas há de algum modo também a esperança presente na própria ação de conceber tal espetáculo — o primeiro do Grupo Pano. Aqui, o fim do teatro versa sobre o fim do edifício teatral e dos atores; mas há uma contundente afirmação de que algo permanece e reverbera após o cair do pano: como se a efemeridade da cena fosse a garantia da eternidade da personagem representada.
Na poética presença de Cecília Barros, em um preciso trabalho com a máscara, é como se o espetáculo colocasse em cena a morte da ilusão. Se em um primeiro momento é um ato trágico, quando a figura se levanta novamente e permanece em pé mesmo após a última fagulha se apagar emerge um dado de resistência, ainda que possa soar fútil.
É curiosa a escolha por compor esta figura mascarada com vestes masculinas. Barros é a única mulher em cena, e acaba representando mais um homem. Ao mesmo tempo, nas evocações de personagens e espetáculos a serem apresentados nesta hora derradeira, os três insistem em figuras femininas da história da dramaturgia, como Lady Macbeth e a recorrência do solilóquio de Nina, d’A Gaivota. De certo modo, é possível pensar sobre qual é este teatro que finda e o que significam certos fins.
A encenação dirigida por Silviano encontra no diálogo com a dramaturgia imagens valiosas. Fazendo uso de diversas referências — como a presença de inserções textuais de Tchekov e Sófocles — acaba sendo quase inevitável encontrar outras mais sutis. Intencionais ou não, ampliam o campo de leitura do espectador. Uma frase do poema A Infanticida Marie Farrar, de Bertolt Brecht, utilizada fora de seu contexto gera um certo ruído aos que a reconhecem; opera-se, de certo modo, uma dessacralização de clássicos.
Em outro momento, quando Noppeney diz a simples expressão “ai de mim”, ecoa o solilóquio de Segismundo em A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca. Dito próximo do final do espetáculo, é difícil não pensar em certos paralelos entre as obras. Como se a saída do espaço cênico, subindo as escadas do Pequeno Ato na direção da rua, ao encontro deles, fosse o acordar novamente aprisionado, incerto do que ocorreu de verdade no tempo da ação cênica, quando ainda havia o teatro.
O cenário da Balcão Arquitetura (Carolina Metzger, Gabriela Sumares e Joyce Iensen) tem elementos que poderiam ser mais explorados — não apenas os blocos de construção, mas também o carrinho de mão que fica pouco à vista da plateia. Chamam a atenção o enorme case trazido para a cena e a presença do piano, tornado também elemento cenográfico.
É entre estes dois elementos que flana a figura que talvez sintetize o espetáculo. George Lucas não é apenas um músico em cena, mas torna-se uma metáfora central para o discurso de Pano. Fim.. Surgindo quase que das catacumbas, Lucas mantém-se em um estado interessante de presença, com um tranquilo — e talvez angustiante — olhar vazio.
Uma alma melancólica, dialoga com as ações silenciosamente e por meio do piano. Sua certa serenidade é contraposta ao desespero e à urgência das demais personagens. A figura pode ser lida como uma fantasmagoria que representa o próprio Teatro. Presente desde antes, mesmo que por vezes abandonada, está sempre ali, suspensa no tempo. Sempre certo de que algo ainda segue sendo orquestrado, é um maestro do invisível.