teatro

a estúpida revolução de um imaginário destroçado

crítica de “Argumento contra a existência de inteligência no cone sul”, do Coletivo Labirinto

foto de Roberto Setton


“Uno es más inteligente
Cuando piensa como idiota
Simplificas las respuestas
De éste mundo complicado
Mientras el sabio se preocupa
El idiota es relajado”
(Calle 13 – Los Idiotas)


No enxuto cenário que representa uma casa – onde, oportunamente, uma privada ocupa o lugar central – a projeção exibe imagens em preto e branco que podem ser de ditaduras várias, das tantas que houveram em latinoamerica no último século. À vista, um balão do Mickey e, em um flipchart, um mapa da América do Sul destacando, além de São Paulo, Uruguai e Chile.

Sentado de costas, um homem balança um carrinho de bebê com uma perna. Ele coça a cabeça com a pistola que segura em sua mão direita – em sua outra mão, um urso de pelúcia. A direção de Marina Vieira – junto à cenografia que assina com Wallyson Mota e as projeções de Laíza Dantas – consegue já na primeira imagem sintetizar a complexidade caótica que dá o tom de “Argumento contra a existência de vida inteligente no cone sul”.

Trata-se de texto do jovem uruguaio Santiago Sanguinetti, escrito em 2012 e que principia sua “Trilogia da Revolução”. A dramaturgia foi traduzida e adaptada por Vieira e pelo Coletivo Labirinto, tendo as referências contextualizadas à luz da realidade (e história) do Brasil de maneira não só funcional mas apresentando verdadeiras pérolas.

A escolha do Coletivo Labirinto de encenar “Argumento…” dentro de nosso contexto político atual é, indiscutivelmente, corajosa. A trama, que acompanha quatro jovens em um apartamento preparando um atentado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP), pode revirar os olhos de setores da esquerda, visto que essa é a inclinação política dos (estúpidos) terroristas que protagonizam o espetáculo.

Sanguinetti escreve (e dirige a primeira montagem) dentro do contexto da Frente Amplia, coalizão de esquerda uruguaia, já em seu segundo mandato no poder. Ou seja, um momento mais abertamente propício à autocrítica, ao questionamento dos ideais e das ferramentas de análise do mundo utilizados não apenas por teóricos, mas principalmente por militantes; um momento de reflexão acerca das ações políticas a serem tomadas, de caminhos a serem seguidos.

O Brasil de 2019 não poderia estar mais diametralmente afastado daquela realidade. Se em “Argumento…” os quatro resolvem, em certa ocasião, invocar o fantasma de Che Guevara por meio de um jogo do copo (utilizando uma “vermelha” lata de Coca-Cola), por aqui o fantasma do comunismo tornou-se um enorme espantalho cujo enfrentamento se assemelha à um Quixote lutando contra moinhos de vento – mas sem o dado eminentemente poético da narrativa de Cervantes.

Ainda assim, é um alento – um preocupado e desconfortável alento, visto o tamanho da carapuça que pode ser vestida – verificar a possibilidade de colocar certos temas em discussão de maneira tão aberta no palco.

Pois ainda que na cena teatral paulistana costuma-se ver lampejos de autocrítica, é raro vê-la sendo feita de maneira tão sem subterfúgios, visto que o dinâmico texto de Sanguinetti transita entre elaboradas metáforas e um discurso direto, sem meias-palavras – esteja o sujeito com o dedo apontado para o outro ou para si próprio.

O espetáculo acompanha, ao longo de uma manhã, dois casais nos últimos preparativos para o ataque à FFLCH. Na casa de Manuel (Abel Xavier) e Sofia (Emilene Gutierrez), Mateo (Mota) acorda depois de uma noite de bebedeira. Pouco depois, chega Érica (Carol Vidotti), sua namorada. Além dos quatro, também estão presentes Lis, filha de Manuel e Sofia e Gus, filho de Mateo. Os bebês são representados por carrinhos vazios.

Na caixa de som, Mateo insiste em tocar Calle 13. O grupo portorriquenho, da bela canção “Latinoamerica” (ausente no espetáculo), parece ser o que restou de um imaginário comum, de uma Pátria Grande – tal qual o também citado meme da URSAL. A interpretação do elenco é estranha ao público nos primeiros minutos – uma relação que se aponta de certo modo realista aos poucos é compreendida em um registro próprio; mais exacerbada.

A escolha de Vieira por esta construção de personagens abre uma interessante possibilidade de leitura para a obra como um todo: o texto de Sanguinetti por vezes insiste em uma relação imatura dos personagens com o sexo e a sexualidade (além de uma mistura desconfortável de paixão e violência no casal Mateo e Érica), e a interpretação do elenco reforça positivamente uma ideia da imaturidade de tais figuras. Ainda que pais e visivelmente adultos, seus comportamentos por vezes se assemelham a certa ingenuidade e irracionalismo típico infantil.

O jogo com a questão da (ir)responsabilidade destes estúpidos revolucionários também estabelece uma ponte com reflexões da filósofa Hannah Arendt. Além da referenciação possível ao conceito da banalidade do mal, a crítica imanente à relação destes adultos com os bebês dialoga com o pensamento de Arendt acerca da educação. Para ela, cabia aos pais uma dupla proteção: a criança deve ser protegida do mundo; e o mundo, da criança. Para ser pai, ainda segundo a filósofa, seria necessário assumir a responsabilidade não apenas pela criança, mas pela manutenção do mundo tal qual ele se estrutura. Dessa maneira, não se extirparia das mãos da nova geração a possibilidade do novo.

E precisamente este surgimento do “novo homem” é um dos objetivos centrais – se é que seja possível afirmar que há este nível de organização racional entre a intencionalidade do ato e suas consequências – do grupo. Neste sentido, o final da obra é devastador quanto ao fracasso desta ideia.

A iconografia pop presente – do balão de Mickey Mouse ao símbolo do Batman na privada (!) – é contrastada pelo teor dos discursos construídos pelos personagens. Durante o já citado jogo do copo, Mateo, irritado com uma resposta do espírito do Che Guevara, lista uma série de acontecimentos e atitudes que por pouco não lhe servem como uma luva. Desde o sonho que ele compartilha com os demais, repleto de metáforas quase delirantes e ainda assim de possível leitura, se desvela uma problemática que não desenha as personagens simplesmente de maneira hipócrita ou contraditória, mas sim com uma profunda complexidade.

Sofia é muitas vezes contraponto, ainda que seja também contaminada pelo espírito juvenil e estúpido dos demais. É de sua boca – entre a seriedade e a voz afinada pelo gás hélio – que sai o que talvez seja o mais contundente posicionamento do espetáculo. Ao declamar seu próprio “Ato Institucional número 1”, as ditaduras são responsabilizadas não só pelos feitos horrendos de seu próprio tempo, mas, “como em Hiroshima”, pelo apodrecimento do pensamento pelos próximos cem anos.

Os horrores do século XX seguem vivos – e, considerando a anistia ocorrida no Brasil, talvez aqui ainda mais do que em outros países – e refletindo-se no pensamento não só daqueles que (inacreditavelmente) se colocam a favor dos tempos passados, mas também nas gerações que buscaram, buscam e buscarão sempre lutar à esquerda, pelo que acreditam e seguem acreditando.

O imaginário destroçado da nossa atualidade reflete-se em um distanciamento grande entre teoria e prática, entre discurso e ação efetiva; entre eu e o outro. A mediocridade e a estupidez não estão apenas no ato pretendido por aqueles jovens. Ela contamina o pensamento, o argumento e até mesmo suas utopias. Na consciente escolha pelo abandono da razão e da reflexão, o espetáculo desenha um panorama delicado – talvez até perigoso pelas leituras passíveis de serem feitas – acerca de nossos tempos.

Há um terrível exemplo de como ciclos de violência não se quebram ao término de “Argumento contra a existência de vida inteligente no cone sul”, mas a obra fala – de seu modo específico – de mais do que isso. Trata-se da necessidade de revisitar ícones, imaginários e ferramentas de análise para enfrentar concretamente o que se descortina ao nosso redor. A luta contra a barbárie é a luta contra a perpetuação de uma sociedade onde a mediocridade e a estupidez são exaltadas; onde a existência de vida inteligente no cone sul não encontra argumentos contrários, mas sim inimigos reais e poderosos.