performance, teatro

cavalgadas-voos em tempestades do porvir

reflexão crítica de amilton de azevedo sobre o “Território Temporário — Mulheres em Trânsito” do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos

Há algo de feminino em tempestades. O vento que balança as estruturas; a água que lava e que faz brotar e renascer as vidas. Que pode matar ou alimentar colheitas futuras, arrebentando paradigmas e semeando possíveis. O dado do selvagem percebido nelas, no geral, é sempre vinculado à sua força frente aos feitos que ignoraram sua existência — e seu eterno retorno, sempre imprevisível e arrebatador.

Na ocupação “Território Temporário — Mulheres em Trânsito”, realizada pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos no Sesc Pompeia, parece ser este intempestivo feminino — que é visto como selvagem pois já foi domesticado demais — que está em cena. Com a apresentação de três espetáculos do repertório do grupo mais uma intervenção inédita, concebida para o evento, o Bartolomeu revisita marcos recentes de sua trajetória ao passo que vislumbra e lança futuros; talvez sem entender um ponto de chegada, mas com a utopia da caminhada — ou, para ser mais preciso, cavalgada.

O cortejo insurgente batizado de “Saia da Frente!”, realizado junto à convidadas, se anuncia como retorno desta mulher selvagem, livre a cavalgar. Nele, evoca-se o retorno de Lilith, a primeira mulher, que lidera sem amarras essa insurreição. Tal ação performativa encerrou a ocupação, no primeiro domingo de dezembro de 2018. O que se viu nas três obras do grupo apresentadas anteriormente foram outras evocações míticas-urbanas. Antígonas-pássaros buscando não serem abatidas em pleno voo; Cassandras-cavalos onde o dispositivo cênico atualiza e presentifica o descrédito à profetisa amaldiçoada; e elas-mulheres do nosso tempo se reinventando no jogo cênico. Nomeando as obras, na ordem apresentada: “Antígona Recortada — cantos que contam sobre pousospássaros” (2013), “Efeito Cassandra — na calada da voz” (2016) e “Memórias Impressas — Narrativas sobre corpo e violência” (2015).

Núcleo Bartolomeu de Depoimentos
Roberta Estrela D’Alva, Luaa Gabanini, Eugênio Lima e Claudia Schapira — o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos / foto: divulgação

Fundado em 1999, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos estabelece-se, há mais de uma década, como um dos grandes nomes dentro do movimento de teatro de grupo de São Paulo. Sua pesquisa de linguagem, pioneira no Brasil, une elementos do Teatro Épico brechtiano à cultura Hip-Hop. Formam o núcleo estável da companhia, desde sua fundação, a diretora e dramaturga Claudia Schapira, o diretor musical e DJ Eugênio Lima e as atrizes-MC Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva. Há alguns anos contam, também, com a presença de Mariza Dantas como produtora. A artista multimídia Bianca Turner é também parceira constante na direção de arte do grupo, sendo co-idealizadora do “Território Temporário” (ao lado de Schapira).

No tocante à linguagem do Teatro Hip-Hop, “Antígona Recortada” apresenta-se como síntese da pesquisa do Bartolomeu até então. É no poema de ação dramática — e na encenação — assinada por Schapira que o grupo parece encontrar uma forma potente e sintética de fazê-lo. A ênfase está na palavra falada — o “spoken word” — mas a obra apresenta diversas camadas.

Compreendendo a narratividade do teatro épico como o pouso que sustenta o vôo, Gabanini e Estrela D’Alva transitam entre diversos níveis de representação. Narradoras e diversas personagens, são verdadeiras MCs (Mestras de Cerimônia), hábeis com o microfone. Além da presença de Lima — DJ que por vezes personifica evocações por meio de ações simples, compondo imagens ao fundo da cena — na trilha sonora, repleta de samples não apenas de músicas mas também de discursos, as atrizes-MC lidam com alguma aparelhagem por si próprias. Estrela D’Alva, utilizando pedais, constrói belas paisagens sonoras sobrepondo camadas da própria voz, uma a uma, sem esconder do público seus procedimentos. E Gabanini, com um módulo de efeitos, distorce sua voz para representar outros personagens.

Antígona Recortada
Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva em “Antígona Recortada” / foto: Sérgio Silva

Na reconstrução feita por Schapira da tragédia de Sófocles, essas Antígonas sampleadas, remixadas, recortadas, habitam uma esquina de mundo qualquer; uma periferia identificável em quase todas as nossas grandes cidades. O que se efetiva em cena então é este dado essencialmente urbano e contemporâneo que reinventa uma história, carregando seus elementos humanos e universais até o nosso tempo.

Gabanini e Estrela D’Alva dão voz a duas jovens mulheres de uma comunidade que, cansadas de perder irmãos para o extermínio relacionado ao tráfico de drogas e não poderem nem enterrá-los, decidem agir. Aqui, o embate não é, como em Sófocles, contra a personificação do Estado e suas leis em um homem — Creonte — mas sim contra leis não-escritas consolidadas pelo abandono do Estado. Cadáveres seriam prova de delitos cometidos pelo tráfico, e por isso eles são desaparecidos.

Pelo direito não só de enterrar seus mortos, mas de não mais ter vítimas da violência à velar, essas Antígonas contemporâneas passam a agir rumo à utopias futuras. Na aproximação à pássaros — trazida em basicamente todas as camadas da encenação — a relação entre o voo possível e a necessidade do pouso para isso se consolida. Não se trata de uma metáfora ligada ao instinto selvagem dos animais, mas da liberdade do voo. E fazendo com que os antagonistas sejam gaviões, estabelece-se aí de maneira incisiva um recorte de gênero em relação às estruturas de poder. As figuras masculinas trazidas pelas atrizes-MC são, de modo geral, predadores.

O poema de ação dramática carrega de maneira acessível — embora complexa — muitas vozes que se entremeiam. O foco na palavra revela-se na verdade um jogo entre seu conteúdo e sua forma; é como se cada cena tivesse o seu BPM específico, carregando no desenho criado pela voz falada a sua atmosfera. Assim, ainda que por vezes seja difícil acompanhar com precisão a narrativa, as palavras compõem imagens que ultrapassam apenas as camadas semânticas. A dureza da situação narrada — e da realidade abordada — é tratada com um refinamento poético; não como forma de rebuscar ou embelezar o que é retratado, mas como possibilidade de, no confronto às dificuldades, emersão de novos imaginários.

Neste sentido, a apresentação de “Antígona Recortada” é enriquecida quando da presença da intérprete de LIBRAS Amanda Lioli. A integração dela à encenação, ainda que não em sua totalidade, traz essa segunda língua, tão imagética, como ampliadora do alcance das palavras sendo ditas/corporeificadas. A iniciativa, fundamental para a inclusão da comunidade surda nas plateias, é um bom exemplo de como compreender o quanto certas urgências éticas podem tornar-se potências estéticas.

Antígona Recortada
Luaa Gabanini, Eugênio Lima e Roberta Estrela D’Alva em “Antígona Recortada” / foto: Sérgio Silva

Nas tragédias gregas, as heroínas costumam estar ligadas à territorialidade e à maternidade. E esta “Antígona Recortada” dialoga com tal matriz de personagem. Cabe às mulheres a defesa das crianças; a luta pelo direito natural de existir em plenitude. Essas meninas-mulheres, ao longo da peça, confrontam o poder instituído — patriarcal e autoritário — em diversas instâncias.

Há certa dualidade no êxito — ainda que temporário — na debandada dela(s) junto às crianças da comunidade. A utopia futura, concretamente, se trata da construção de um cemitério; a vitória no tocante ao direito natural de enterrar os mortos é colorida pela ideia de fazer daquele pouso um local feliz, entre homenagens à memória dos que tiveram seus sonhos ceifados e a suspensão da dureza da realidade — por pouco tempo; mas lançando voos em fuga do mau tempo.

Depois de “Antígona Recortada”, há uma guinada interessante nos trabalhos do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Em 2014, Gabanini realiza seu solo “BadeRna”, no mesmo período em que a sede do grupo estava prestes a ser demolida para dar lugar à um prédio — o despejo e a subsequente falta de espaço próprio parece ter influenciado os trabalhos posteriores do grupo.

No mesmo ano, Schapira é contemplada por um edital do Centro Cultural São Paulo (CCSP) com a dramaturgia de “Memórias Impressas” — que estreia em 2015. Durante a ocupação do Teatro de Arena Eugênio Kusnet, feita no segundo semestre daquele ano, além de apresentações do repertório do grupo, são realizadas duas inéditas intervenções de rua pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. E, em 2016, estreia “Efeito Cassandra — na calada da voz”, último trabalho da companhia.

Os dois últimos trabalhos ainda trazem consigo forte marca da pesquisa anterior do grupo. Porém, a performatividade se torna um dado muito mais central na estética das obras. A ideia de depoimentos, presente no nome do grupo, já servia como aproximação a dados performativos dentro do processo criativo dos espetáculos. O que se vê em “Memórias” e “Cassandra” é uma radicalidade no sentido da obra enquanto acontecimento construída no tempo presente. Ambas carregam fortes traços em comum — e também diferenças fundamentais. Considerando que o presente texto visa analisar a ocupação “Território Temporário — Mulheres em Trânsito” em sua totalidade, parece pertinente seguir a sequência da apresentação ao invés da de concepção.

Assim, o caminho que parece se ver de “Antígona” para “Cassandra” é o da permanência da potência mítica enquanto fonte atemporal de formas de lidar com questões essencialmente humanas; mas assentando tais problemáticas dentro de recortes e óticas que dizem respeito à atualidade.

Efeito Cassandra
Luaa Gabanini em “Efeito Cassandra” / foto: Sérgio Silva

O que é tomado como central do mito de Cassandra na encenação do Núcleo Bartolomeu é o descrédito às profecias da profetisa, decorrentes de uma maldição conjurada sobre ela por Apolo. O “Efeito Cassandra” se coloca, então, como discursos feitos por mulheres ao longo da história; sistematicamente apagados por homens. Entre quadros ficcionais e o resgate de figuras reais cujas ideias e ações foram fortemente reprimidas e violentadas, o espetáculo cria a cada apresentação um mosaico presentificado das opressões de gênero e suas reverberações; do mito antigo aos tempos atuais.

Gabanini, sozinha em cena, segue carregando em sua presença marcas de uma atriz-MC do teatro épico. É narradora e lida com camadas diversas de representação. Porém, fundamental para a estética proposta é sua abertura para o acontecimento e o momento presente. Performer, se depara a cada dia com o desconhecido — o roteiro não é fixado; não se trata, no entanto, de improvisação. Para além de textos e partituras corporais já conhecidos da atriz-MC-performer, suas ações são conduzidas por orientações em papéis — são “contraprofecias” — e em faixas de áudio em um fone de ouvido.

Ainda que não hajam variações extremas de um dia para o outro, o simples fato de Gabanini não saber com o que irá se deparar altera a qualidade de sua presença cênica. Ela, com o rosto coberto no centro da cena durante a entrada do público, irá aos poucos perceber o espaço que a cerca, e, a cada “contraprofecia” lida e seguida, desvelará a próxima. Chamar as instruções anotadas nos papeis de “contraprofecia” e não de profecia marca uma diferenciação fundamental entre essas Cassandras evocadas no palco e a Cassandra mítica. Não são visões de futuro desacreditadas postas em cena, mas sim uma sobreposição de tempos e mulheres do passado e do presente. Gabanini é golpeada constantemente, como se o efeito Cassandra que nomeia o espetáculo reverberasse nela a cada quadro.

A narração no início do espetáculo introduz para o público o seu procedimento — “uma performance em construção” — e, ainda que por vezes não fique claro o que é instrução nova ou partitura/texto já conhecido, um acordo de descoberta é estabelecido entre o público e Gabanini. É também impossível de saber o que de fato mudou de um dia para o outro.

Efeito Cassandra
Luaa Gabanini em “Efeito Cassandra” / foto: Sérgio Silva

Mas há elementos estruturantes que transpassam os quadros apresentados e se mostram como basilares para a leitura da obra. Gabanini é uma Cassandra múltipla. Profeta, xamã e cavalo. A imagem do animal é recorrente, seja na voz em off de Georgette Fadel que apresenta já em si diversas camadas da metáfora, seja nos movimentos da performer, construindo uma vigorosa partitura selvagem — em diálogo com a projeção de sua própria imagem gravada, nos vídeos de Bianca Turner. Cavalo, é, então, o animal selvagem; mas traz consigo também a qualidade do médium — também, muitas vezes atribuída ao ator. “Eu monto no meu cavalo e meu cavalo me remonta / eu sou eu sou / o cavalo que conta”.

Assim como a língua de serpentes fez com que Cassandra ouvisse as vozes dos deuses e viesse a aprender os dons da profecia, o dispositivo cênico utilizado joga com o dado — que é performativo — da atriz como canal. Ainda que não se tratem de profecias sussurradas ao pé do ouvido, a presença do fone de ouvido como o transmissor da ação pode ser lido como esse contato mediúnico; como se fossem evocações e incorporações destas tantas Cassandras, daquelas que sobreviveram para contar e das tantas mortas e apagadas da história.

Por mais que se trate de um solo, são muitas vozes e imagens em cena. As projeções de Turner por vezes conversam — e interagem — com Gabanini diretamente; em outros momentos, agregam novas camadas, além de preencher todo o espaço. Com a presença constante das intervenções de Lima no som — sejam vozes em off ou canções, o DJ sampleia e mixa ao vivo, por vezes criando pontes entre tempos e narrativas — há pouco espaço para o vazio em “Efeito Cassandra”. Entre peça teatral e performance, é impressionante a energia que se movimenta no palco pelo diálogo entre as várias camadas. Mesmo em raras ocasiões onde o ritmo parece desenhar-se mais lento ou a ação mais íntima, não há dispersão.

Há muita dor nas temáticas abordadas. Escolher trazer para o tempo presente essas várias Cassandras, invocando-as sucessivamente para o instante presente, cria um caótico panorama de tempos que insistem em se repetir; tempos que se citam, se lembram e se esquecem. E o agora trazido na presença, trazido nas — poucas; às vezes tingidas de uma melancólica esperança — evocações de futuro, como se a performatividade da ação no tempo presente fosse única possibilidade de resposta. Ao final, o único momento onde Luaa Gabanini deixa de ser cavalo e se torna ela própria uma Luaa-Cassandra; depois de tantas outras e antes de muitas que infelizmente ainda virão, ela dança o seu existir.

Memórias Impressas
detalhe do cenário/instalação de Bianca Turner em “Memórias Impressas” / foto: Sérgio Silva

Em “Memórias Impressas — Narrativas sobre corpo e violência” se destaca precisamente esse existir da mulher no momento presente. O neon “este é o meu tempo” traz consigo uma afirmação que ao mesmo tempo traz força e tristeza. As atrizes-performers, como em “Efeito Cassandra”, entram vendadas no espaço cênico. Gabanini se junta à Fernanda D’Umbra, Lucienne Guedes e Nilceia Vicente — além de Sandra Lessa, uma MC que introduz e age como organizadora das ações quando necessário. Delas, apenas Lessa conhece o roteiro do dia. As quatro performers vão aos poucos tateando os novos territórios, imaginários conhecidos e desconhecidos. É bonita a cumplicidade entre elas — o estar junto neste jogo cênico traz algo de alegre, feliz. As narrativas apresentadas, porém, tem pouco de solar.

Dentro de uma cenografia que tem ares de instalação artística por si própria — de Bianca Turner — elas habitam distintos nichos de acordo com a necessidade dada pela orientação nos fones de ouvido. A plasticidade da encenação é grande; e assim como o texto de Schapira, de delicada beleza poética, serve de contraponto aos dolorosos relatos trazidos nas palavras e corpos das atrizes-performers.

Bianca Turner
cenário/instalação de Bianca Turner em “Memórias Impressas” / foto: Sérgio Silva

As fronteiras entre autorrepresentação e ficção são de certo modo borradas; não se sabe de quem são as memórias impressas a cada dia. Em momentos de transição de cena, gravações de mulheres contando suas histórias de abusos e violências também colaboram na construção deste lugar onde há uma subjetividade coletiva violada. O recorte principal da obra é indubitavelmente o de gênero, mas com a acertada inclusão de uma atriz negra no elenco emerge também a questão racial. Nas outras temporadas, o espetáculo era feito apenas por atrizes brancas (com exceção de algumas apresentações com participação de Roberta Estrela D’Alva). A mera presença de um corpo negro em cena redimensiona os relatos; a obra assim evita uma universalização falsa do “ser mulher”.

Nos momentos onde as quatro devem falar simultaneamente um texto dado pelos fones de ouvido, então, revela-se o múltiplo no feminino não só por serem mulheres diferentes, mas pela interpretação de cada uma. Atrizes hábeis, cada uma dá o seu próprio sentido àquelas palavras de outra mulher. Ao mesmo tempo, quando todas contam uma mesma história, entende-se que o que está em discussão não é algo do indivíduo, mas de uma sociedade.

Também na lida com o dispositivo cênico que exige a todo momento a descoberta do que se vai falar está o como falar. O como lidar, como agir, reagir; como ressignificar. Daí a importância do estar junto das atrizes, da presença atenta e, sim, por que não, alegre. Elas, ali, senhoras do seu tempo, imprimindo novas memórias a cada dia como cicatrizes invisíveis que assumem desenhos distintos de acordo com quando e como são lembradas.

Memórias Impressas
Nilceia Vicente em “Memórias Impressas” / foto: Sérgio Silva

Com a irrupção do real vindo por vezes em assombrosas ondas nas gravações, o jogo entre performatividade e as várias camadas de representação se articula dentro da necessidade e do querer delas. Por mais que Lessa esteja ali organizando a ação, sob o olhar atento de Schapira e sua assistente Maria Eugenia Portolano, tentando fazer com que o roteiro siga seu rumo, o fluxo do rio por vezes transborda e refaz suas margens.

Nessa ação no tempo presente, elas cantam, dançam, narram, contracenam, criando personagens distantes e falando de si próprias. Assim, o pacto estabelecido com a plateia transmite a cumplicidade das quatro atrizes-performers. Mesmo estruturada entre a epicidade e o performativo, há um certo potencial catártico na obra. “Memórias Impressas” transita por tempos de infância, juventude e idade adulta, mas falando sempre do agora. Das muitas dores e das possibilidades no horizonte.

Assim, nos três espetáculos apresentados durante a ocupação há muita dor e violência. Em todos, a busca pela criação de fissuras para ressignificar o passado e possibilitar futuros. “Antígona Recortada” e “Efeito Cassandra” operam como pontes entre o mítico ancestral e o presente. Na primeira, a narratividade que conta da eterna disputa entre o direito de existir e mandos e desmandos dos poderes (sempre patriarcais); enterrar os mortos para manter-se viva — pássaros que podem voar mas para isso precisam de pousos-ninhos, utopias futuras. Na segunda, a permeabilidade do performativo atualiza a ancestralidade do descrédito, da diminuição da mulher; as múltiplas vozes ao longo dos séculos, mutiladas, mortas, apagadas. Já “Memórias Impressas” ancora-se no momento presente para trazer a tona as marcas da vida de mulheres de hoje. Na ágora, o agora performado.

Lucienne Guedes
Lucienne Guedes em “Memórias Impressas” / foto: Sérgio Silva

Essas “Mulheres em Trânsito” revisitam a historicidade do ser mulher para lançar seu “Território Temporário” não apenas como a reafirmação da existência e insistência de opressões de gênero — e o grito urgente de basta. Mas como tentativa de compreensão — realizada no próprio fazer — de que caminhos são possíveis. Evoca-se, então, Lilith para tomar a frente de seu cortejo insurgente: “Saia da frente!”. Elas chegam, “AMADAS até os dentes”, como diz o texto de Schapira. Junto às mulheres do Núcleo Bartolomeu somam-se convidadas; o cortejo então abre caminho pela rua do Sesc Pompeia. As belas e poderosas máscaras de Sonia Costa (com assistência de Álvaro Franco) em diálogo com as composições corporais de cada atriz, parecem revelar as muitas facetas do feminino; suas forças místicas, míticas, ancestrais. Em seus passos e ações, profanam sagrados e sacralizam profanos.

Cortejo Saia da Frente
Núcleo Bartolomeu e convidadas no cortejo insurgente “Saia da Frente!” / foto: Sérgio Silva

Essas muitas cavalgam-voam em um bonito coro, desenhando o início de uma libertação. Diferente do visto nos três espetáculos, aqui não há mais dor. Ao evocar Lilith, essa primeira mulher de tantas interpretações e leituras, talvez a tentativa inicial seja compreender de onde se veio. Trazer essa mulher primordial de volta de seu exílio, trazendo consigo o ventre cheio de futuros para indicar — ou ajudar a lembrar — os caminhos a se seguir.

Quase tão efêmera quanto a chegada é a partida. Território temporário firmado e identidade afirmada — “eu sou a que sou” — essas tantas cavalgam para o porvir. Como a tempestade que pouco se anuncia; apenas subitamente derrama raios e enxurradas e logo acaba. Quando a chuva passa, ainda que tudo permaneça igual, suas marcas persistem em lembrar que na força da natureza há algo de único que insiste em alagar violentos concretos e alargar compreensões sobre si própria.

Território Temporário
cortejo insurgente “Saia da Frente!” / foto: Sérgio Silva