teatro

angústias de papeis escritos e de folhas em branco

relato crítico a partir de águas que rolam e quenturas, de Carolina Lira (BA).

É uma tarde chuvosa em São Paulo. Deito na cama enquanto vejo as gotas batendo no vidro da janela. Entre os trovões, ouço a voz de Carolina Lira nos fones de ouvido durante uma ligação via WhatsApp. Uma semana atrás, ela entrou em contato comigo pelo Instagram: eu sou atriz, de Salvador e cheguei em SP tem pouquinho tempo / eu tenho um trabalho que é um “teatro de ouvido”. Um teatro de ouvido. Que nome bonito. é uma peça pelo whatsapp / se chama “águas que rolam e quenturas”.

águas que rolam e quenturas. Marcamos um horário. Primeiro, para segunda-feira (27) – levou alguns dias para ambos percebermos que agendamos a apresentação para o mesmo momento em que a seleção brasileira entraria em campo na copa. Remarcamos para terça (28), então. A tempestade do dia anterior veio neste também. Para além da breve troca de mensagens, não pesquisei sobre o trabalho de Lira, nem recebi muitas orientações além de uma muito singela e importante: só precisaremos da sua escuta atenta 🌸🍃.

Esse é muita coisa. Duas da tarde, então, começam as águas que rolam e quenturas. Lira envia um texto em PDF. A primeira parte. É o relato de uma mãe e avó, preocupada com as escolhas e caminhos sendo trilhados pela filha e os futuros que se desenham para a neta, Serena, mas nada serena. Aviso quando termino. Lira me liga. Avisa que agora escutarei outra visão sobre essa história. Desliga. Liga novamente; agora quem fala é Maria. Maria Giulia, na carta de sua mãe; Maria Júlia nas mensagens da atriz e em suas redes sociais. A diferença sutil pode não ser nada, mas também pode significar muita coisa.



Estabelece-se então o que Lira nomeou teatro de ouvido. A personagem fala comigo, amilton, me chama pelo nome, por vezes lança perguntas que pedem respostas ou apenas suspensões e retomadas de fôlego. águas que rolam e quenturas formaliza-se, em certo aspecto, como obra interativa, imersiva e realista. É um diálogo, mas não se trata de uma dramaturgia aberta (ou, ao menos, não se tornou no nosso mergulho; me mantive muito em silêncio, mesmo quando sentia que talvez coubesse um comentário); a utilização pontual de trilhas incidentais constrói sutilmente uma atmosfera que me faz lembrar da ficção, do pacto, das convenções de bases teatrais.

Durante a pandemia, comecei a denominar os trabalhos produzidos e apresentados de forma remota, muitas vezes, de obras de base teatral. Respeitei os enquadramentos dados pelas pessoas criadoras (peça-filme, teatro online, experimentos sensoriais em confinamento…) mas adotei este, compreendendo a singularidade das circunstâncias em torno de tais realizações. 

Pensei muito nisso enquanto ouvia o teatro de ouvido. De quando uma emergência de linguagens deixa de ser feita e experimentada por necessidades externas à criação, mas passa a ser uma escolha possível entre tantas. E o trânsito é também uma possibilidade: assim como trabalhos estreados antes de março de 2020 produziram adaptações para o virtual, obras lançadas inicialmente em vídeo também podem – e têm – ganhado os palcos para apresentações presenciais.

águas que rolam e quenturas pode ser teatro de ver além de teatro de ouvido. Um monólogo, uma peça com duas atrizes, dois ambientes, dois tempos, enfim; meu foco aqui não é imaginar o que uma obra artística poderia (ou pode vir a) ser, mas refletir em torno do que ela é. Na narrativa escutada, o ponto de vista de Maria Júlia é o da artista. Enquanto ela fala sobre a angústia diante da folha em branco, revelam-se também as angústias de seguir os papeis escritos – o que se lê nas entrelinhas do relato de sua mãe.

Neste teatro de ouvido, a voz é feminina. A que diz, escreve; a que escreve, não fala. É interessante a escolha do ofício da personagem: ainda que ela fale sobre teatro, trabalha com o texto. Sendo Lira a própria dramaturga, é difícil não considerar que hajam tons biográficos (ou autoficcionais) de águas que rolam e quenturas – ainda que isso possa ser uma (boa) armadilha, amparada pelo caráter íntimo que se estabelece em uma ligação telefônica e pelo jogo entre atriz e personagem no pós-peça, onde as fotos enviadas na sequência fazem pensar sobre aquela adulta e aquela criança (que segue bem viva).

O convite, desde o início, é para um mergulho. Há um movimento fundamental do espectador de se deixar levar pela ficção, de fazer daquela voz a de uma velha-nova amiga compartilhando um tanto de sua vida para um confidente. Deixar-se perceber os fios que se trançam por entre as gerações, as aproximações e distâncias entre as realidades e as possibilidades destas mãe e filha que são muito mais do que as expectativas lançadas sobre funções e relações de parentesco.

Pois, me parece, ser sobre isso: os caminhos que escolhemos e aqueles que nos chegam como predefinidos. Papeis escritos e folhas em branco. Como seguimos continuamente produzindo a nós mesmos e as formas de dar sentido a quem somos. Desde a seleção de que histórias contar até decidir entre inúmeros como contar possíveis. O fazer artístico, do mesmo modo que a vida, é construção instável entre o que está assentado e os tantos porvires.

Enquanto ainda chovia e seguia ouvindo a história de Maria Júlia, me via refletindo sobre o momento presente; durante a pandemia, escrevi que não é só o agora o lugar de onde se vê, um ensaio sobre teatro, espaço e tempo. Sobre presença, sobre encontro, sobre o ir ao teatro. Há algo de insubstituível na experiência teatral tradicional (que escolha curiosa de termo para utilizar, aqui!), mas há sempre muitos modos de se começar a preencher uma folha em branco.

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