teatro

a história de uma escolha e a escolha de uma história

crítica de Sete cortes até você, de Soraia Costa, apresentado na 7ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP.

Pele, gordura, fáscia muscular, músculo, peritônio parietal, peritônio visceral e, por fim, o útero. Em Sete cortes até você, Soraia Costa lista as camadas abertas pelo bisturi durante uma cesárea. Rubricas em sua dramaturgia também apontam para os momentos onde cada um dos cortes acontece. Há um espelhamento narrativo do parto enquanto metáfora que se dá na encenação. Menos o do útero: é a materialidade de um telão rasgado e a performatividade de Valentino Manolo ganhando a cena na reinvenção de como chegou ao mundo que cumpre a função do tecido mais íntimo a ser atravessado. Na autoficção de Costa, a intérprete opera o bisturi de sua história.

No prefácio da brochura impressa pelo Centro Cultural São Paulo (CCSP) – instituição realizadora do edital da 7ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, que contemplou Sete cortes até você – a artista Janaina Leite aponta que não sabe dizer ao certo sobre o quê é essa peça. E segue: costumo gostar de quando isso me acontece diante de uma criação. 

A dificuldade em contornar a temática da obra é apontada pela própria autora: essa era a hora da peça que se projeta um vídeo de criança nascendo ou essa não é uma peça sobre maternidade. Ou essa não é uma peça sobre maternidade? Componente de uma trilogia autoficcional de Costa, Sete cortes até você inscreve-se, de certo modo, em um formato cada vez mais consolidado como tradição contemporânea: a peça-palestra.

No mesmo Espaço Ademar Guerra, o porão do CCSP, recentemente esteve em cartaz A Doença do Outro, de Ronaldo Serruya, contemplada na mesma edição de Sete cortes. Três anos atrás, também na Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, estreava a premiada Stabat Mater, da já citada Janaina Leite – que, não por acaso, é uma das provocadoras da obra de Soraia Costa. São exemplos marcantes, inclusive, da diversidade e singularidade que existem enquanto potência na escolha de tal linguagem. Não se trata efetivamente de uma forma nova, mas é notável sua presença cada vez mais marcante nos espaços culturais e palcos de São Paulo.

Cabe observar tal fenômeno a partir de diversas óticas. Desde uma visão desencantada e enfraquecida do drama e da representação, alinhada, talvez, à pautas identitárias – que encontram grande reverberação no teatro performativo contemporâneo – até a possibilidade de realizar espetáculos mais enxutos do ponto de vista da produção, tornando-as alternativas menos custosas em tempos de tantas dificuldades e ataques à cultura.

Fato é que há um grande interesse de artistas, curadores e comissões julgadoras em torno das experimentações amparadas por tal estrutura cênico-narrativa – longe, no entanto, desta ser ponto pacífico em discussões que se desdobram por ética e estética, política, teatralidade e teatralidades políticas. De todo modo, artistas e coletividades podem (e parecem) buscar tensionar os limites de tal forma a cada novo espetáculo que ganha a cena – com diferenças radicais no que diz respeito a pontos de partida, pensamentos e propósitos.

Em Sete cortes até você, talvez a maior chave para a compreensão do que intenciona Costa em sua criação esteja nas primeiras falas da artista: eu adoro histórias. E o papel do teatro nisto? Dar forma a essa autoficção é sua possibilidade de contar a história de uma escolha e a escolha de uma história. Sobre acontecimentos da própria vida, Costa afirma: eu não escolhi essa narrativa. Aquele não podia ser meu filme. Ela, agora, protagonista do que lhe atravessou, ultrapassou, derrubou, levantou, moveu e foi movido, é quem comanda o bisturi e conduz o público a cada um dos cortes literais e simbólicos que vivenciou em seu tornar-se mãe.

Costa descobriu estar grávida no sexto mês de gestação logo após sofrer um aborto espontâneo de um dos dois fetos que carregava no útero. Na Áustria, onde vivia, a interrupção da gravidez é permitida até a 12ª semana; no caso de malformações fetais, o prazo se amplia para 24 semanas: ela poderia tomar essa decisão – mas não poderia demorar-se na escolha. Corte a corte, a artista apresenta suas circunstâncias; aquilo que estava dentro de seu controle e também o que está absolutamente fora. Caso decidisse ter o bebê, haveriam grandes chances dele nascer com deficiências.

Uma voz em off, com sotaque estrangeiro, fala sobre o belo: Para Aristóteles a beleza só existe se for capaz de promover catarse em seu admirador. Por excelência, a catarse se dá na tragédia! Na tela, imagens de bocas com fendas lábio-palatinas. Mais adiante, uma projeção informará ao público que mediadores da plataforma TikTok foram instruídos a esconder vídeos de pessoas com deficiência, pessoas consideradas “feias” para atrair mais público e criar um ambiente “perfeito”.

Sete cortes até você não busca o belo; tampouco se interessa pela perfeição. Costa dinamiza o seu contar desta narrativa com tremenda consciência: não se trata de uma tragédia – nem enquanto gênero teatral, nem em seu sentido figurado de uso corrente – e também não há nenhum interesse em transformar sua vida e a de seu filho em uma mera história de superação. Ela é isso; mas é também muito mais.

Para tanto, a direção de Costa conduz as emoções do espectador e constantemente quebra suas expectativas. Humor, amor, crueldade; cenas vorazes, piadas toscas e momentos repletos de lirismo: a dramaturgia costura as narrativas em torno desta uma história a cada novo corte entre pele e útero. Entre o mundo aqui de fora e o mundo de dentro; Sete cortes até você é a cada cena mais íntimo, profundo, real.

Diferentemente de uma cirurgia, as camadas na criação artística não se apresentam necessariamente organizadas: há sobreposições, fissuras, reentrâncias, ausências, acúmulos; repetições e variações. Costa é hábil nesta semeadura de signos e imaginários desde o início. A recorrência da onça e a relação brutal-instintiva entre maternidade e natureza; da água como sonho, pesadelo, presságio e espaço de nascimento; de Guns N’ Roses na cultura que se compartilha; no stand-in e em como nos narramos. Nesta encenação pop, os elementos e referências vão simultaneamente se encaixando e mantendo a leitura aberta sobre a obra.

Lá está Valentino Manolo, vivo, dançando, cantando, interpretando, se divertindo e brincando com sua mãe em cena após suas dezessete cirurgias em seus catorze anos de idade. Lá está Soraia Costa, abrindo diante do espectador parte de sua pasta cheia de memórias guardadas para quando ela morrer; comendo sua cria mas também lambendo suas feridas. Sete cortes sobre você é fundamentalmente um espetáculo sobre a morte e sobre o que a antecede: o nascimento.

A obra é visivelmente fruto de uma longa gestação. Escrevo mentalmente este texto desde que Valentino nasceu em 2008, escreve Costa no material que antecede a dramaturgia. Antes, ela já contara que a última cena que escrevi desta peça foi na noite do dia 29 de abril de 2020 quando meu filho fez sua 17a cirurgia. Os tempos se sobrepõem nas conversas entre mãe e filho.

Em vídeo, três documentos: no registro de 2008, em baixa qualidade, Manolo está no colo de sua mãe. É um bebê e respira com dificuldade. No mini-documentário de 2020, quando da internação para a cirurgia supracitada, é um adolescente pedindo a senha do wifi do hospital. Também compõe, consciente, com a câmera, quadros melancólicos e outros mais leves. Respira com dificuldade depois da operação. E na última filmagem, os sonhos da mãe se refazem em um encontro primordial, nas águas que transbordam poesia: lá está, pleno, o filho real, que insistia em roubar o lugar do filho idealizado.

É sobre essa história: a história de Soraia e Valentino. E tudo que a atravessa, de forma deliberada ou incidental. É sobre um ser mãe amplo e singular; sobre a coragem da verdade como um legado passado de mãe para filho. Há algo na criação e organização formal desta autoficção que perturba, questiona e movimenta. Costa faz de sua trajetória a força motriz destes Sete cortes até você. Quando este você torna-se também o público, outras implicações emergem.

No post scriptum de sua introdução, a autora informa: esta história é totalmente pessoal e conta unicamente como esta experiência me atravessou. Em nenhum momento julgo qualquer decisão diferente da minha, pelo contrário, respeito e luto também para que mulheres tenham direito à escolha. O posicionamento de Costa é importante, ainda que talvez um dos grandes méritos de Sete cortes até você esteja precisamente em sua capacidade de manter o debate em aberto.

Questões em torno dos direitos reprodutivos, de pessoas com deficiência e de problemáticas vinculadas à bioética permeiam toda a encenação. Por vezes, tais temáticas são abordadas frontalmente com a apresentação de informações e dados. Em outros momentos, a discussão se dá no subtexto do que relata Costa. Talvez aqui esteja a parresia anunciada por ela a seu filho: em sua exposição, confronta-se com os próprios pensamentos e os compartilha de forma aparentemente crua, estando aberta para os tantos julgamentos que ali se podem lançar.

Nesta operação há algo de lacunar entre o risco do real e o enquadramento (auto)ficcional da representação, onde Costa impede que se consolide uma visão única sobre a narrativa que decide apresentar. Não há heróis pois não há tragédia. Não existem respostas fáceis – o que existe é a possibilidade de ampliação do direito à escolha. Escolher a própria história, sempre que isso estiver ao alcance de cada uma, de cada um. Não há fascínio: há assombro.

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ficha técnica
Sete cortes até você
Concepção, Direção e Dramaturgia – Soraia Costa. Elenco – Soraia Costa e Valentino Manolo. Desenho de Luz – Aline Santini. Assistentes de Iluminação e Operação Técnica – Giorgia Tolaini e Letícia Trovijo. Figurino e Adereços – Daniela Gimenez. Cenário – Carmela Rocha, Sofia Gava e Paula Thyse. Produção Cenográfica e Cenotécnica – Yuri Godoy e Gabriel Salvador. Trilha Sonora – Soraia Costa. Coreografia – Fernando Delabio. Provocadores – Janaina Leite, Maria Amélia Farah, Érica Montanheiro e Eric Lenate. Participação Especial – Renato Santana. Animação – Amanda Trindade. Videomapping – Ivan Soares. Vídeos e Edição – Soraia Costa. Engenharia de Som e Operação Técnica – Rodrigo Florentino. Cinematografia/Direção de Fotografia Subaquática – Lucas Pupo. Assistente de Fotografia Subaquática – Richard Reis. Iluminação Filmagem Subaquática – Octa Produções Ltda. Colorista – Lupércio Bogéa. Mergulhador de Segurança – Felipe Bataline. Operador de Câmera para Making Of – Alef Paz. Designer Gráfico – Henrique Mello. Preparador Vocal Musical – Eric D´Ávila. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Produção – Costa & Manolo. Consultoria de Produção – Henrique Mariano. Assistência de Produção – Carô Calsone. Colaboração em Produção – Cris Maluli. Advogado – Marcos Porto. Apoio Filmagem – Liquidophoto e Octa Produções Ltda. Apoio Locação – Evidive - Escola de Mergulho.