teatro

viver e dizer, dizer é viver

crítica de A Doença do Outro, de Ronaldo Serruya, com direção de Fabiano Dadado de Freitas, apresentado na 7ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP.

Em determinado momento de A Doença do Outro, Ronaldo Serruya lança ao ar dezenas de panfletos com uma mensagem simples e direta: SILÊNCIO = MORTE. A ação e a frase funcionam como imagem-síntese da peça-palestra idealizada, escrita e protagonizada pelo artista, com direção de Fabiano Dadado de Freitas. 

Serruya estrutura sua dramaturgia a partir de conceitos produzidos por corpos com marcadores considerados dissidentes e/ou subalternizados, como localiza em rubrica ao final de seu prólogo. O faz alinhavando a eles suas vivências enquanto bixa soropositiva e à pesquisa desenvolvida ao lado de Dadado no projeto Como eliminar monstros.

A Doença do Outro é uma das obras contempladas no edital da 7ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP, ação que vem dando vazão à potentes criações dramatúrgicas, levando anualmente três textos inéditos aos palcos paulistanos (devido à pandemia, as três estreias de 2021 aconteceram apenas em dezembro – e trouxe textos premiados tanto na edição de 2019 quanto em 2020).

Há uma grande diversidade nas encenações, e a Mostra se tornou um interessante catalisador das formas mais recorrentes na cena contemporânea da cidade de São Paulo. Estruturas cênicas organizadas em torno da proposição da peça-palestra talvez tenham sido das mais vistas dentro da produção do teatro experimental (na falta de termos mais precisos, e buscando evitar a ideia de vanguarda).

Monólogos também fervilharam, e se pode pensar nas questões de produção e logística, visto que, mesmo estando em um dos maiores pólos brasileiros (no que diz respeito à dimensão dos aportes financeiros públicos, seja por meio de editais das diversas esferas estatais ou de renúncia fiscal), segue sendo um desafio colocar em pé um espetáculo. Ao mesmo tempo, é importante pensar sobre as escolhas estéticas e criativas que vão muito além do pragmatismo da lógica do capital.

Pois não se tratam, em sua vasta maioria, de monólogos dramáticos tradicionais, mas sim de obras eminentemente performativas, mesmo quando encontram na narrativa épica a sua estruturação formal. Por muitas décadas do século passado, víamos no palco a figura proeminente do primeiro ator de uma companhia; um sol em torno do qual o sistema da cena girava, em relação e em reverência a seu talento, à sua técnica.

Hoje, o que se vê na presença solitária do intérprete, ou performer, na ágora teatral, é uma constelação que se movimenta em torno dos discursos articulados em suas palavras, gestos, ações e tantas outras paisagens que são acumuladas, tensionadas, postas, expostas e opostas nas camadas constituintes da cena. São corpos e corpas que compreendem suas autoescrituras performativas, fazendo referência à pesquisa de Janaina Leite, nas relações entre biografia e documento; entre singular e coletividade, entre o eu e o Outro.

Neste contexto, ao eleger a forma-palestra como sustentação para seu discurso artístico, Serruya faz uma escolha consciente e atenta aos atravessamentos possíveis destes conceitos diversos em seu corpo, em suas vivências; e também consciente dos atravessamentos que seu corpo bixa, positivo, pode gerar nesta relação entre quem mostra e diz e quem vê e ouve neste ato formativo. Neste pequeno formato cênico, desenha-se simultaneamente um espaço de fruição, aprendizado e celebração.

No caminho trilhado por A Doença do Outro, o público acompanha um corpo e sua voz evocando outros corpos, corpas, e suas vozes, para falar continuamente a partir destes tantos sis e as tantas outridades que emergem nesta relação. No prólogo, Serruya cita Susan Sontag e sua doença como metáfora, entregando ali uma chave importante para a compreensão do que virá. 

Mais um passo é dado na direção do enfrentamento do estigma quando se entende, didaticamente, o que configura uma imagem de controle, segundo Patricia Hill Collins, exemplificada pelo artista no diálogo com a cena projetada de Filadélfia (1993); na direção da resistência à essas imagens culturalmente pulverizadas ao longo de décadas, da possibilidade de construir outras representações do que significa viver com o vírus.

O vírus, aliás, é inocente, afirma Serruya na segunda parte da peça-palestra. Pois é evidente – e fica mais a cada cena-tema – que A Doença do Outro não é sobre o vírus da imunodeficiência humana. Também não é sobre a Aids. É sobre viver-com. Parece ser, fundamentalmente, sobre o que fazer com a vida a partir da percepção de sua precariedade e sua fragilidade; sobre o que fazer com nossos corpos políticos e as políticas do corpo.

É um manifesto e um convite à festa. Na materialidade cênica produzida pelo encontro da videoarte com a cenografia, assinadas por Evee Avila e Mauricio Bispo, uma certa psicodelia das imagens sobrepõe o que corre dentro com o que circunda fora. Os limites do contágio e as fronteiras. O corpo, o território; as veias e as ruas. 

Paul B. Preciado, evocado na dramaturgia de A Doença do Outro para falar de imunidade, escreveu sobre esse movimento de deslocamento vinculado à pandemia do Covid-19: a nova fronteira é a máscara. O ar que você respira deve ser apenas seu. A nova fronteira é a sua epiderme. Enquanto no texto Aprendendo do vírus o filósofo trans localiza essa aproximação à própria pele, Serruya efetiva uma operação inversa na expansão não das fronteiras, mas talvez das trincheiras da pandemia que é o estigma – e não a doença em si.

É inevitável não associar os dois momentos históricos, como João Silvério Trevisan faz em texto de apresentação de A Doença do Outro e a própria obra tece não equivalências, mas paralelos entre tempos. O contágio e a lida com o vírus faz pensar; principalmente nas diferenças e nos esforços empreendidos em escala global. 

Voltando à imagem-síntese citada no início deste texto, SILÊNCIO = MORTE. Talvez os últimos anos tenham escancarado a impossibilidade de fingir que não existe nada diante deste momento único na história de todos que estamos vivos. Novamente, não se trata de comparação – até porque parece descabido fazê-lo, considerando os recortes envolvidos na epidemia de Aids dos anos 1980 e a (ou uma suposta) universalidade da Covid-19. Mas quando Serruya entra no espaço com uma pesada máscara de gás, a sobreposição dos contágios, dos tempos e das fronteiras é indesviável. Todo o público no porão do CCSP estava também com o rosto coberto.

Talvez esteja aí a questão. Estamos vivos. SILÊNCIO = MORTE. Então, coletivamente, dizer é viver. Aids. Aids. Serruya convida a plateia a repetir. Aids. Serruya convida a plateia a dançar. Celebrar, se abraçar. Com máscaras. Viver e dizer. Existe um vírus. Existe uma síndrome. Existe a história, existe o presente. Existem imagens de controle. O estigma não precisa existir. É sempre possível criar novas ficções coletivas. Dizer. Viver.

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ficha técnica
A Doença do Outro
Idealização, Texto e Atuação – Ronaldo Serruya. Direção – Fabiano Dadado de Freitas. Videoarte e Cenografia – Evee Avila e Mauricio Bispo. Edição e Filmagem – Caio Casagrande. Figurino – Luiza Fardin. Iluminação – Dimitri Luppi Slavov. Trilha Sonora Original – Camilla Couto. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Designer Gráfico – Rafael Fortes. Fotos e Assessoria de mídias sociais – Jonatas Marques. Produção – Cristiani Zonzini.