arquipélago, teatro

cada vida pequeno universo

crítica de Desmonte, do Grupo Girino (Minas Gerais). este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Na tarde de 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), controlada pela Samarco (um empreendimento conjunto da Vale S.A. e da BHP), vitimou dezoito pessoas – e uma segue desaparecida. O desastre industrial é, ainda, considerado o causador do maior impacto ambiental na história do país. Menos de duzentos quilômetros e quatro anos separam esta tragédia de outra: em 25 de janeiro de 2019, a barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), controlada pela Vale S.A., também se rompeu, causando a morte de 270 pessoas no que se tornou o maior acidente de trabalho do Brasil. No início do espetáculo Desmonte, do Grupo Girino (MG), um letreiro traz alguns destes dados para dimensionar tais acontecimentos. Serão as únicas palavras apresentadas na obra; tudo o mais será dito em imagens através de movimentos, sons, objetos e projeções.

Os dois desastres foram amplamente cobertos pela mídia, e dificilmente algum espectador de Desmonte não se lembre da comoção nacional nos períodos. Mais do que denunciar os crimes da Vale S.A. (cujo nome não é citado diretamente), o Girino parece intencionar a evocação da memória, compreendendo o assombro como afeto possível a partir da tessitura de uma fricção entre dramaturgia visual e sonora. Desmonte constrói retratos por trás dos números; resgata as tantas dimensões das tragédias contando da imensidão das miudezas. No palco, pequenos nichos são amplificados pela mediação de câmeras, no encontro entre teatro de objetos, teatro visual e live cinema.

A narrativa da encenação caminha do cotidiano à fantasmagoria; das vidas e rotinas comezinhas ao pós-lama. O Girino faz do vídeo o ponto focal, criando composições imagéticas na lida com a relação entre performer visual (utilizando o termo do professor Wagner Cintra), bonecos, máscaras, cenários, objetos, documentos e materiais brutos. Ao mesmo tempo, a iluminação, ainda que conduzindo o olhar para os pontos de atenção, permite ao espectador acompanhar a construção no palco não só daquilo que se vê projetado, mas a preparação para os próximos enquadramentos e a lida com os vestígios antes vistos. Nesse sentido, impressiona a organização múltipla e a precisão na manipulação das materialidades cênicas.



É curioso notar que o encontro entre a pesquisa de linguagem desenvolvida pelo Grupo Girino – fundado em 2006, com trajetória consolidada dentro da cena do teatro de animação brasileiro – e a temática do presente trabalho gera uma série de implicações na maneira que o conteúdo se apresenta na estrutura (e vice-versa): a forma resultante carrega, no trânsito entre as dimensões macroambientais e a singularidade de cada vida então perdida, entre o tamanho dos performers visuais (Iasmim Marques, Kely Daiana e Marco Aurélio Bari) e a miudeza dos bonecos e objetos, uma certa tensão que vai além da relação palco-tela.

A presença de recursos audiovisuais é cada vez mais comum nas teatralidades contemporâneas. Porém, parece inevitável refletir em torno de seus usos e significados. Fica evidente o posicionamento do Girino e é nítido que a escolha da utilização de tais recursos está inteiramente conectada às suas pesquisas cênicas; ao mesmo tempo, o que é uma câmera que registra de perto a dor de uma tragédia? Para além da delicadeza dos modos encontrados pelo grupo para levar ao palco belezas (ainda que tristes) e assombros, as manchetes que se pode ler em um dos catitos cenários pode lançar, de algum modo, o espectador a refletir em torno da cobertura de catástrofes – tão comuns em todos os noticiários brasileiros – em uma sociedade hipermidiatizada.

Nesse sentido, a técnica apurada percebida em Desmonte – não apenas ligada às formas animadas mas também nos enquadramentos e edição ao vivo dos movimentos da cena no vídeo projetado – poderia trazer consigo uma espécie de fetichização de tais recursos de linguagem. Porém, ainda que em certos momentos possa haver um interesse maior da atenção do espectador no como o que está sendo apresentado está sendo construído, correndo o risco de gerar uma certa alienação, a direção e a dramaturgia de Tiago Almeida parece ciente de tais questões.

Na trajetória de Desmonte, enquanto acompanhamos o silêncio da imensidão das miudezas onde figuras sem nome vêem suas rotinas sendo subitamente atravessadas pelo volumoso caos de rejeitos, há um movimento na direção do terror – atmosfera construída e sustentada também pela trilha sonora de Daniel Nunes. O espetáculo traz momentos de um delicado realismo – dentro das convenções estabelecidas pela linguagem – nas ações dos bonecos dentro das bonitas maquetes. Aos poucos, tudo que era vida vai encontrando morte. A lama invade as casas e as pessoas. As materialidades cênicas dão lugar à fantasmagoria de máscaras e gestos dos performers visuais movendo suas dores, efetivando-se como duplos dos objetos inanimados; são eles, também, corpos sem vida, ausências presentificadas, silêncios soterrados.

Em Diante da dor dos outros, Susan Sontag nos lembra “que mostrar o inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno, como amainar as chamas do inferno”. No trabalho do Grupo Girino, a denúncia é formalizada em angústia, desconforto e incômodo de forma efetiva dentro do que se propõe. Mas Desmonte também nos lembra do que significam os números de tragédias: cada vida pequeno universo.

logo do projeto arquipélago

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

ficha técnica
Desmonte
Realização: Grupo Girino
Direção e dramaturgia: Tiago Almeida
Elenco: Iasmim Marques, Kely Daiana e Marco Aurélio Bari
Trilha sonora: Daniel Nunes
Iluminação: Pedro Paulino e Richard Zaira - Cia Tecno
Direção de arte: Taísa Campos
Construção de bonecos: Gustavo Campos (Ed)
Construção de maquetes e miniaturas: Gustavo Campos (Ed), Iasmim Marques, Igor Salgado, Kely de Oliveira, Marco Aurélio Bari, Taisa Campos e Tiago Almeida
Pintura e acabamentos: Igor Salgado
Assistência de ateliê: Amanda Porto e Yuri Victory
Figurino e Maquiagem: Iasmim Marques
Consultoria técnica audiovisual: Guilherme Pedreiro e Daniel S. Ferreira
Produção executiva: Iasmim Marques
Produção: Marcela Rodrigues
Filmagem: Limonada Audiovisual
Fotos: Hugo Honorato