destaque, reflexões, teatro

a insistência da continuidade

reflexões em torno dos Núcleos de Pesquisa do grupo XIX de teatro, realizados desde 2006 e que agora ganham papel central no trabalho do coletivo. este texto faz parte do projeto “5 x XIX“, contemplado pela 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.

No início de 2014, recém-formado no bacharelado em teatro do Célia Helena, cheguei à Vila Maria Zélia para integrar o Núcleo de Pesquisa América Vizinha do grupo XIX de teatro, conduzido por Juliana Sanches. Éramos, salvo engano, quinze artistas, cada um em seu momento da própria trajetória. Oriundos de grupos profissionais e amadores, faculdades, cursos técnicos e livres, nos unimos em um coletivo espontâneo e temporário de criação onde pude conhecer pessoas formadas em basicamente todos os espaços de formação da grande São Paulo, da SP Escola à ELT de Santo André, passando por Fundação das Artes de São Caetano, Macunaíma e também instituições de fora do estado e até mesmo do país.

Dez anos depois, olho para esse momento (que agora até parece que foi em outra vida) com muito carinho: fiz amizades e parcerias artísticas, reencontrei ao longo dessa década artistas em salas de aula, plateias e palcos. Começo este texto que versa sobre os Núcleos de Pesquisa do grupo XIX de teatro falando de minha própria experiência por entender que ela é uma em comum com tantas, cada qual com suas especificidades, ao longo destes 18 anos desta realização do XIX, por onde já passaram mais de mil artistas. 

A continuidade dos Núcleos de Pesquisa – que só não foram gratuitos em momentos pontuais, quando o grupo não se encontrava subvencionado por nenhuma política pública – e sua transformação ao longo dessas quase duas décadas tornou-se uma marca singular do XIX. Enquanto é evidente que outros coletivos também promovem atividades “de extensão”, por assim dizer, no caso dos Núcleos há uma característica que organicamente foi se estabelecendo até ser oficializada no projeto 5 x XIX, contemplado pela 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo: agora, as criações resultantes são obras do grupo XIX de teatro.



Os Núcleos de Pesquisa deixam de ser ações realizadas em paralelo ao trabalho do grupo e tornam-se, de algum modo, central. É uma mudança de certo modo radical, no sentido em que reorganiza a raiz dos modos de produção do XIX, evidenciando uma série de características distintas, desde um destaque para a autonomia de cada integrante do grupo até uma espécie de dissolvimento do coletivo nuclear na direção do estabelecimento de redes diversas e distintas.

Estruturalmente, os Núcleos de Pesquisa passam a ser divididos em dois módulos. O primeiro mantém a característica formativa, extensiva, ampla; mais de vinte artistas (e interessades em geral) integram esta fase. Integrantes do XIX podem começar com uma maior ou menor ideia em torno do ponto “de chegada” da criação, fazendo usos diversos deste momento de pesquisa – Janaina Leite, por exemplo, fez seu Núcleo Fundo totalmente online, considerando a relação de seu processo com a internet em si.

Aos poucos, as pesquisas se afunilam na direção da criação da obra; no segundo módulo, o trabalho do Núcleo está diretamente à serviço dela, contando com um número menor de participantes – em média, cinco pessoas – que agora recebem ajuda de custo para os meses de trabalho em sala de ensaio. Na reta final do projeto 5 x XIX, a Vila Maria Zélia recebeu, então, quarenta apresentações de 5 novos espetáculos do grupo XIX de teatro.

Já era evidente, observando em retrospectiva, a possibilidade dos Núcleos de Pesquisa serem, para cada integrante do XIX, formas de manutenção de pesquisas continuadas individuais, nem sempre alinhadas ao interesse coletivo do grupo – ao mesmo tempo em que eles serviram, também, como formas de “convencimento”: em 2014, Janaina Leite desenvolveu seu Núcleo Aquele Que Vem de Fora tendo como objeto a obra Teorema, de Pasolini; no ano seguinte, o XIX debruçou-se na criação de Teorema 21 (2016). 

Também, é nítida a relação entre os trabalhos desenvolvidos a cada ano por cada integrante, marcando o chão dos interesses ético-estéticos de Janaina, Juliana, Lubi, Rodolfo e Ronaldo. Lá estão temáticas que se desdobram e insistências em caminhos de pesquisas e intersecções de linguagens.

Pode-se citar, como exemplo, a sequência de Núcleos de Juliana Sanches voltados para pesquisar a mulher na arte, contando com grandes elencos femininos – Legítima Defesa (2012, 16 atrizes), InCômodos (2017, 24 atrizes), A Corda, Alice (2019, 23 atrizes), A Crise do Discurso como Substantivo Masculino (2020/21; dois módulos, com 30 e 14 atrizes), O Tempo me Atravessando Dentro de Casa (2021, 21 atrizes) – que agora, a partir do Núcleo Corpo Urgente, cria o espetáculo Quando Um Dia, com três atrizes em cena, mas com uma grande coletividade presente para a pesquisa do primeiro módulo.

Recorrências, reverberações, repercussões: Núcleos de Pesquisa como Feminino Abjeto (2017) e Feminino Abjeto 2: o vórtice do masculino (2018), conduzidos por Janaina Leite, não apenas resultaram em obras que seguiram em temporadas e circulações, mas também foram plataformas para pesquisas individuais das pessoas artistas, como que um disparador de outros processos independentes, transbordando de algum modo para além deles mesmos e contaminando uma série de criações na cena paulistana. Mais recentemente, o Núcleo do Olho (2020/21) foi uma das incubadoras da artista na direção da criação de seu espetáculo História do Olho: um conto de fadas pornô-noir (2022).

Ronaldo Serruya vem fazendo dos Núcleos espaço para a pesquisa em torno da diversidade sexual e de gênero, criando obras a partir da relação com materiais textuais, geralmente friccionados às experiências particulares das pessoas integrantes dos processos; foi assim com Plantar Cavalos para Colher Sementes (2017), onde o manifesto Falo por minha diferença, do chileno Pedro Lemebel se encontra com corpos e vivências e mais recentemente com o Núcleo A Arte Queer do Fracasso (2020/21), que a partir do livro homônimo de Jack Halberstam apresentou o Fracasso Festival: cenas para celebrar a recusa (2021) e, dentro do 5 x XIX, fez da Ética Bixa de Paco Vidarte a base para Interruptor: dispositivos para desligar a corrente (2024).

Já Luiz Fernando Marques Lubi vem transitando em pesquisas que dialogam com a realidade e a história da Vila Maria Zélia e na direção de seu trabalho na direção de atores na interface entre o teatro e o audiovisual. No primeiro caso, vale observar o Núcleo de Pesquisa O Ator Criador, de 2009, quando foi realizada uma montagem de Destinos, peça de Paulo Emílio Salles Gomes escrita e realizada no local em 1936, quando a fábrica de juta foi tornada prisão especial pela ditadura Vargas e o autor encenou seu texto com seus companheiros de cárcere. Em 2017, Lubi retorna a Salles Gomes para o Núcleo A Palavra e o Abismo. Nos anos seguintes, as aproximações entre teatro e cinema se intensificam tanto em trabalhos realizados paralelamente ao XIX quanto nos Núcleos de Pesquisa – O Cinema Como Presença teve sua edição online entre 2020/21 e no último ano foi novamente realizado, agora presencialmente, no processo que resultou na obra Um Clássico: Matou a Família e foi ao Cinema (2023).

Rodolfo Amorim continuamente investiga o trabalho do ator a partir da memória, da intimidade e da transparência, em diálogo com os processos criativos do próprio artista – como pode ser visto em Galo Índio (2018), criação de Amorim ao lado de Janô. Obras como Memórias de Cabeceira (2014) puderam circular pelo estado, contando as histórias de artistas participantes com seus avôs e avós e sendo apresentadas nas cidades onde estes vivem ou viveram.

O que se pode perceber nessa insistência da continuidade é que os Núcleos de Pesquisa sempre foram espaços de liberdade e inerentes riscos. Seus desdobramentos podem ser obras que se encerraram em si mesmas, na apresentação das mostras de final de ano e outras que seguem anos e anos ganhando palcos e espaços por várias cidades. Nunca se tratou de construir produtos de sucesso; e a transformação deste último ano é mais um passo na direção da afirmação de uma visão de teatro – de arte, de mundo – que o(s) vê como passível de constantes invenções e tentativas, sempre coletivamente, mesmo que isso signifique enfrentar o que se pensava ser o próprio coletivo. Reconstituí-lo a partir da compreensão de seus integrantes como pontos focais, espécie de rede de faróis a indicar rumos a dezenas de navegantes que desenharão juntes as novas rotas a serem trilhadas.

Não se trata de escolha pacífica ou apaziguadora – se antes o grupo XIX de teatro poderia entrar em conflitos dentro de seu núcleo artístico, agora os conflitos também espalham-se de forma rizomática, ampliando e aprofundando crises na criação. Lá estão parcerias frequentes e recentes aliando-se nas conduções dos Núcleos de Pesquisa, e lá então se espraiam as vontades do que-dizer e do como-dizer. Como já dizia um título de espetáculo do XIX, nada aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo: se a dimensão que os Núcleos tomariam era impensável no início, ao olhar para trás fica nítida a influência destes processos cuja lateralidade era quase ilusória e sua presença, mesmo quando tida como marginal, mesmo em seus fracassos, sempre esteve no centro.