destaque, teatro

um relicário de reposts de um repost de um repost

crítica de “O Sol Desapareceu“, do Núcleo de Pesquisa Fundo, do grupo XIX de teatro, com direção de Janaina Leite. este texto faz parte do projeto “5 x XIX“, contemplado pela 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.

No mesmo mês que O Sol Desapareceu estreou partindo de cinco estações de metrô até a Vila Operária Maria Zélia, um levantamento sobre o uso de internet no Brasil foi divulgado. Entre as muitas reportagens sobre a pesquisa, uma me chamou bastante a atenção: 8 milhões de brasileiros usam internet mas não sabem. É isso: 4,3% da população do nosso país “não se dizem usuários, mas admitem fazer uso de aplicativos que só funcionam com internet”. Fico pensando na distância não apenas geracional, mas também cultural (indissociável de, ainda que não totalmente definida por, fatores socioeconômicos) no que diz respeito à relação e ao conhecimento em torno do que é – e do que pode ser, nos sentidos mais maravilhosos e terríveis – a internet.

Logo no início do trabalho capitaneado por Janaina Leite – que assina concepção e direção, com codireção e dramaturgia de André Medeiros Martins – dentro do Núcleo Fundo de pesquisa do grupo XIX de teatro, estranhei um ponto da dramaturgia: na voz distorcida que anunciava as regras da internet, a numeração da (possivelmente) mais clássica estava alterada. Regra 34. Talvez quem me lê não faça ideia do que se trata isso tudo que digo, muito menos sabe qual seria essa tal regra. Bem, ela diz, em diferentes apresentações, que “se algo existe, há pornografia disso na internet”. 



Os espetáculos de Leite parecem carregar consigo perguntas feitas de forma contundente ao público, ora enunciadas ora subterrâneas. Se História do Olho trazia o elenco em várias respostas em torno de “qual a sua relação com a pornografia?”, em O Sol Desapareceu é difícil não voltar a si próprio e refletir em torno de nossa relação com a internet. Notem: não são obras que trabalham com a identificação do público diante do apresentado/representado/performado; o verbo que mobiliza a estética das autoescrituras performativas da artista não é identificar, mas provocar. E qual é a minha relação com a internet?

Na época da conexão dial-up, discada, que deixava o telefone ocupado, eu frequentava o Bate-Papo UOL na sala Até 10 anos. Conheci – virtualmente – muitas pessoas assim, e só anos depois me dei conta que provavelmente muitas eram adultas. Esperava dias para baixar músicas no Morpheus, depois no KaZaA, também no eMule; talvez, aliás, meu primeiro contato com a pornografia, involuntário, tenha sido nesse momento: quando tentei fazer o download de um videoclipe e, muito tempo depois, me deparei com um filme pornô.

Conversava no ICQ e em canais do mIRC, via piadas no Humortadela, acompanhava o Charges, o Porteiro Zé, os Combo Rangers; também me assombrava no Assustador, onde devo ter visto cadáveres pela primeira vez. Postava fotos de cybershots no Fotolog, mandava depoimentos no Orkut e por aí vai. Ah, as tais regras da internet? Começaram no 4chan, um desses fóruns que hoje em dia é sempre lembrado quando se fala de misoginia nas redes, e eu também acessava o /b/, parte dele de “aleatoriedades” nada inocentes.

Tem muito mais aí no meio, considerando que devo frequentar a internet há uns vinte e cinco anos. Pessoas mais novas talvez não conheçam muito do que disse, pessoas mais velhas também não; pessoas da minha idade também. A internet sempre foi de nichos diferentes e mesmo hoje em dia onde parece que todos estamos no Instagram já tem quem só está no TikTok e quem ainda está no Facebook.

O que vale destacar é que eu faço parte da última (ou, sei lá, de uma das últimas?) geração que entrava e saia da internet. Faz uma década, ou algo por aí, que estamos cronicamente onlines. A gente acorda e vai dormir estando na internet. Enquanto a gente dorme a gente está na internet. Na pesquisa que citei no começo dá pra ter noção disso: só 41% dos domicílios brasileiros tem um computador – de onde, em teoria, a gente entra e sai conforme quer e precisa; 100 milhões de brasileiros estão conectados por smartphones – que enquanto tem crédito tem rede.

Não sei se algo disso importa para pensar em torno de O Sol Desapareceu, mas me parece que de algum modo faz sentido de apontar. O chamamento inicial do Núcleo Fundo era direcionado à “pessoas interessadas na internet” e isso fez com que o primeiro módulo da pesquisa fosse diverso e lidasse com temas bem distintos, de inteligência artificial à deep web, passando pelas creepypastas – “lendas urbanas” espalhadas por aí (lembra da Samara, que teria 14 anos se não tivesse morrido? É por aí. Não sabe do que estou falando? Talvez o Slenderman? Também não? Baleia Azul? Momo? Enfim…) – e sabe-se lá mais o que. 

Conversando com a Janaina fiquei sabendo da existência de Sarah Gulic e essa ideia Neoísta (movimento que eu também nunca tinha ouvido falar) de identidades múltiplas; ela também me falou de um app chamado Randonautica que promete te apontar destinos aleatórios calculados quanticamente e associados às intenções de quem usa. Tudo de novo, nada de novo: uma das regras da internet é que tudo é um repost de um repost de um repost. Ah, sim, as regras da internet já começam parafraseando Clube da Luta (1999), do David Fincher; as duas primeiras são “Nós não falamos sobre o /b/“; e essa do repost de um repost é uma “atualização” de outra fala do filme baseado no livro de Chuck Palahniuk: “Tudo é uma cópia de uma cópia de uma cópia“. Ali o personagem falava da insônia mas cai como uma luva dentro da perspectiva de uma fragmentação pós-moderna onde agora tudo parece ter que ser formatado em 30 segundos para um vídeo no TikTok.

Sobre O Sol Desapareceu: o nome é emprestado de um jogo de realidade alternativa, ARG, criado no então chamado Twitter, hoje X. É como um RPG, mas sem a parte efetiva da representação; um bom ARG é aquele que nem chega a ser percebido efetivamente como jogo e a relação entre ficção e realidade é esgarçada na lida de participantes com as propostas dos criadores. O espetáculo do Núcleo Fundo do grupo XIX de teatro é chamado pela tradução direta de The Sun Vanished, uma narrativa construída em uma rede social onde, para alguns usuários, o sol havia simplesmente desaparecido e, a partir das interações naquela rede, os personagens tomavam decisões em torno do que fazer.

A história de TSV, o personagem-criador do jogo (a conta segue ativa em X.com/TheSunVanished), que foi acompanhada em tempo real por milhares de pessoas em 2018, é contada pelo elenco de O Sol Desapareceu – espécie de fio-condutor do espetáculo como um todo, na verdade é como mais uma aba aberta no navegador, entre os e-mails de trabalho, as notícias do seu time, da sua cidade e de alguma subcelebridade que você nem sabia quem é, duas redes sociais, três páginas da WikiPedia – e alguma delas está com um vídeo abrindo automaticamente e tocando música de propaganda e você não consegue achar qual é.

O Núcleo Fundo faz deste espetáculo espécie de deriva multitela, onde ao chegar naquele texto sobre um misterioso acidente aéreo ocorrido há cinquenta anos cujo link foi aberto há cinquenta minutos você já não faz ideia do que te levou até aquilo. Há uma imagem clássica da internet como iceberg e O Sol Desapareceu brinca com isso – talvez inclusive o abismo, o frio e outras formas de vida e existência sejam mais fio-condutor do que a narrativa do ARG – mas aqui é como se fossem ilhotas aparentes e ilhotas submersas, desgarradas e se movendo conforme correntes incertas.

Desde o prólogo, no trajeto dos metrôs até a sede do grupo XIX do teatro, há essa impressão de incerteza. No realizado por mim, partindo da estação Trianon-MASP, conduzido por Lívia Machado, uma estátua era motivo pra se pensar sobre perspectivas, planetas e cosmovisões e então extraterrestres poderiam estar entre nós e aí fazíamos testes para saber que tipo de alienígenas eramos nós e tudo meio que se conectava mas era também uma introdução ao sem-sentido que, no fundo, é a internet – e digo isso sem nenhuma inocência pois é óbvio que existem interesses e algoritmos e muito dinheiro, mas ainda há muito por onde se desbravar circular existir naquilo que se vê se toca e também naquilo que não se sabe que é esse não-lugar que parece agora querer ser lugar único.

(Falo isso não como um entusiasta até porque nas partes que alcanço tudo que pareço ver é de fato esse copiar e colar que aniquila cada pedacinho de criatividade – otimistas dirão o oposto, que a horizontalidade e as oportunidades fazem nascer coisas que antes não poderiam mas aqui, fazendo uma pequena digressão, ando apavorado com a ideia de que tudo agora se trata de produzir conteúdo.)

E então chegamos, o sol desapareceu e resta lutar para sobreviver. Cadáveres e sobreviventes, amigos e figuras desconhecidas, um não-saber. Ery Gabixi Caozito Baesse, Lívia Machado, Lucas Guilherme Sollar, Lucas Miyazaki, Thais Della Costa estão em cena, assinando performance, pesquisa e textos autorais. O Núcleo Fundo do grupo XIX de teatro não faz uma peça sobre a internet. O Sol Desapareceu é a internet e talvez isso seja o que há de nevrálgico no trabalho. Construído absolutamente dentro da lógica das redes, é simultaneamente analógico por inteiro. Em cena há, no máximo, um tablet onde Sollar lê informações que poderiam estar num pedaço de papel. Não há projeções, QR Codes, vídeos. Ah, tem um vídeo no final que damos play no nosso celular e ele serve também de iluminação para última imagem da obra. Mas são detalhes.

A peça é o que sai da internet e o que não sai da internet; imagens terríveis seguidas de danças bonitinhas. Violências que são piadas, piadas que são violências. Costa traz um acervo de cartas Pokémon que carregam em si gatilhos para sua memória e lá estão descrições de materiais explícitos e horrendos. Baesse incorpora creepypastas enquanto a luz de Felipe Tchaça colabora para a construção de uma atmosfera de terror-sci-fi. Machado fala do infinito e do ínfimo. Miyazaki é comida e decomposição. Sollar é vigilância e memes. Na performatividade de uma sequência fugaz, frágil e veloz na direção da escuridão de um TikTok cujo algoritmo não está treinado para nós, O Sol Desapareceu é um relicário de reposts de um repost de um repost.

ficha técnica
O Sol Desapareceu

foto de capa: Jonatas Marques

Direção e concepção: Janaina Leite. Codireção e dramaturgia: André Medeiros Martins. Performance, pesquisa e textos autorais: Ery Gabixi Caozito Baesse, Lívia Machado,  Lucas Guilherme Sollar, Lucas Miyazaki, Thais Della Costa. Preparação corporal e sonoplastia: Robs Wagner. Assistência de sonoplastia: Caíque Andreotti. Iluminação: Felipe Tchaça. Confecção de adereço: José Valdir Albuquerque. Textos utilizados: @rentune, @canalkleberiano, @cienciatododia, Radio Novelo Apresenta e Anonymous. Técnico geral: Luis Roberto de Oliveira. Direção de produção: Andréa Marques. Design gráfico: Jonatas Marques. Arte generativa: Lucas Guilherme Sollar. Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli. Realização: Grupo XIX de Teatro, Núcleo Fundo e Lei de Fomento para a cidade de São Paulo. Primeira fase do Núcleo: Pesquisa e assistência de direção: Ultra Martini. Convidadas: Lyara Oliveira e Zaika dos Santos. Performers: Beatriz Tomilhero-Rosa, Bel 6 Six, Careaux, Daniela Carmona, Danielle Lima, Georgia Vitrilis, Giovanna Paiva, henrique.exe, Julha Franz, Mah Vieira, Noá Araújo Prado, Vicente Antunes Ramos e Vini The Kid.