as bixisapatrans e seus corpos-que-algo
crítica de “Interruptor: dispositivos para desligar a corrente”, do Núcleo de Pesquisa Bixas Cadelas, Políticas Cínicas: Uma Convocação aos Mal Nascidos, do grupo XIX de teatro, com direção de Ronaldo Serruya. este texto faz parte do projeto “5 x XIX“, contemplado pela 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.
“Isto não é um livro. É um interruptor. Um dispositivo que desliga a corrente. E que, por sua vez, permite que algo comece a andar, que algo se acenda. Eu gostaria que a leitura deste livro provocasse um ‘clique’, uma faísca que interrompesse uma sequência de merda, uma queda de tensão no movimento LGBTQ que deve terminar o quanto antes. E que incendiasse uma outra forma de fazer as coisas e da gente se comportar como bixas, lésbicas e trans frente à sociedade e às próprias tendências involucionistas que se instalaram entre nós. Se isso não acontecer, este livro não terá funcionado” (Paco Vidarte em Ética Bixa).
É o início do livro da bixa filósofa Paco Vidarte que nomeia Interruptor: dispositivos para desligar a corrente, do Núcleo Bixas Cadelas, Políticas Cínicas: Uma Convocação aos Mal Nascidos, do grupo XIX de teatro, coordenado pela bixa artista Ronaldo Serruya. Em cena, sete bixisapatrans – Andrezza Czech, Alv Lara, Diego Lima, Igor Mo, Pedro Ribeiro, Rudá e Rodolpho Côrrea – contam (d)o livro e de si. Interruptor é uma tentativa de compreender, então, como constituir essa ética bixa que, como aponta Vidarte, “sempre será particular, pois nossa particularidade de ser bixa vem antes de qualquer outra coisa.”
Uma particularidade que rejeita qualquer possibilidade universalista ou mesmo igualitária nos termos em que se costuma pensar essa palavra – “o que tenho mais claro, isso sim , é que a lorota da ‘unidade de todos e todas’ eu não compro. A DESUNIÃO FAZ A FORÇA”. Costurar um olhar lançado sobre Interruptor com trechos do livro de Paco é uma grande tentação; não apenas pela voracidade das palavras da bixa autora mas pelas maneiras através das quais esse coletivo bixisapatrans fez deste manifesto encenação.
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Logo no começo de Interruptor, um dos dispositivos para desligar a corrente é o próprio questionamento em torno deste fazer cênico: enunciar que isto não é uma peça, mas também se contradizer e afirmar que sim, é uma peça. Mais uma da bixa espanhola: “Tenho uma péssima relação com este livro, que é mais um panfleto radical, um fanzine libertário, porque penso que ele é um chilique, um piti, a necessidade de vomitar merda diante da constatação da ausência de um projeto esperançoso alheio e próprio. Se o escrevi, foi talvez para pedir ajuda. Não tenho nada para oferecer, não tenho nada a propor, estou vazio” – mas aí alguém lê e encontra muito mais do que um “paragrafozinho feito ao acaso” que desperta uma ideia e essa ideia torna-se pesquisa e essa pesquisa torna-se cena.
Interruptor talvez também não tenha nada a oferecer, ao menos não nos termos em que se espera que um produto entregue algo a seu consumidor. O público pode rir, se emocionar, se envolver, se engajar, esperançar ou o que quer que seja, mas nas cenas-quadros-tomadas da encenação de Serruya (com assistência de Matilde Menezes) as tentativas dobram-se sobre si próprias, mergulhando profundamente nas contradições de um não saber e buscando corpos-que-algo, de uma cadelinha num petplay aos frangos sem cabeça e tudo que está aí no meio, da lei da gravidade à “paz da bixa” para as crentes.
Insistir na descrição da materialidade da cena pode servir enquanto registro – e de fato, muitas delas dão a ver o discurso da obra, com significados lógicos e diretos mas também abrindo-se às leituras (uma torre de Jenga a cada instante menos estável é o falo e o falocentrismo e o que mais? Um banho de hormônios em seringas é celebração é travessia é solução?) – mas parece que interessa mais analisar Interruptor nesta relação de construção e destruição (desconstrução?) de convenções e contradições. Assim, Serruya e essa coletividade bixisapatrans fazem da busca por essa ética bixa um exercício de implicar-se, compondo coralidades numa peça onde não há diálogos e sim um sucessivo acúmulo narrativo em depoimentos e apropriações do livro de Vidarte, simultaneamente fragmentárias e fragmentadas.
Pelo espaço cênico do armazém da Vila Operária Maria Zélia onde o XIX reside desde 2004 estão penduradas cabeças-Paco, uma espécie de razão bixa que paira sobre todes ali e é rapidamente cortada, ejetada, execrada. Pois para fazer das palavras-projéteis de Vidarte corpo-presente é também necessário matar o autor, enfrentar Apolo e convocar uma bixa dionisíaco-performativa para alguma desorganização poder emergir fora de linearidades e lógicas estruturadas em heranças heterocisocidentais e tantos prefixos sufixos aí possíveis.
Ao mesmo tempo, lá está a proposta do buraco-negro e de uma reversão da polaridade do cu, talvez único ponto em comum a todes, não mais expelindo mas sim absorvendo, absorvendo tudo, uma boca pantagruélica que não devolve nada; não a antropofagia que une mas uma anusfagia ou algo assim, uma ética anal possível e passível de criação aplicação. Interruptor é tradução-invenção de um manifesto próprio, composto de incertezas, adesões e rechaços, onde contradição é a palavra de ordem e se pode narrar as próprias origens para então afirmar e bradar que elas não importam ou talvez nem existam, “uma bixa, por definição só tem futuro. E presente. Sempre houve bixas, sempre haverá bixas. (…) A origem está adiante, é o futuro, está nos esperando”, nos diz Vidarte, e também não há nem nunca haverão mapas. O futuro espera quem se move em sua direção e não é paralisado pela diferença, a compreende como potência.
Potência que não é pacífica. Talvez por isso as bixisapatrans deste Núcleo Mal Nascido – a coletiva é: uma travesti, um gay, um boyceta, uma bixa preta, uma lésbica, ume não-binárie e uma bixa, como a projeção identifica a todes no início de Interruptor – carreguem em seu figurino (de Ailton Barros) algo que traz uma roupa de combate, além das balaclavas anarco-chiques de Felipe Cruz que fazem delus anonimes punks ao enunciarem as palavras de Vidarte – balaclavas que fazem as vezes de suas cabeças arrancadas quando só o que pode restar são corpos-que-algo para além do racional.
As estratégias e dispositivos da encenação como que acompanham a escrita-bomba, as palavras-munições da Ética Bixa, transitando entre os tons de manifesto, de chilique, de panfleto, de pedir-ajuda, de vômito, afirmação, recusa e demanda, entre primeiras-pessoas, delírios, fetiches, feitiços, abstrações, descrições, corpos dizendo e vozes dançando. Assim, “ser bixa ou lésbica ou trans tem sentido precisamente porque não tem sentido nenhum” e Interruptor encadeia suas tentativas de causar um apagão na corrente pra que outras conexões se acendam.
Nos tantos curtos-circuitos que podem se dar na sucessão de depoimentos, interações, manifestos e manifestas, uma faísca se percebe em uma das primeiras cenas: um corpo nu, padrão, cisgênero, masculino, estático e estática, dá a ver a impossibilidade e a violência de qualquer ética que se pretende universalizante. Em Interruptor, é a performatividade normativa e suas ridículas ficções que causam estranheza ao olhar.
ficha técnica Interruptor: dispositivos para desligar a corrente foto de capa: Jonatas Marques Concepção e Direção: Ronaldo Serruya. Dramaturgia: Ronaldo Serruya, em colaboração com os intérpretes. Intérpretes: Andrezza Czech, Alv Lara, Diego Lima, Igor Mo, Pedro Ribeiro, Rudá e Rodolpho Côrrea. Assistente de direção: Matilde Menezes. Balaclavas e adereços: Felipe Cruz. Figurinos: Ailton Barros. Audiovisual: Givva. Desenho de Luz: Hart Bergman e Felipe Tchaça. Trilha sonora original: Camila Couto. Fotos: Jonatas Marques. Produção: Andreia Marques e grupo XIX de teatro. Realização: grupo XIX de teatro e Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo.