fantasmas e convívios
crítica de “Um Clássico: Matou a Família e Foi ao Cinema“, do Núcleo de Pesquisa O Cinema Como Presença, do grupo XIX de teatro, com direção de Luiz Fernando Marques Lubi. este texto faz parte do projeto “5 x XIX“, contemplado pela 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.
Uma das portas do armazém da Vila Operária Maria Zélia, onde reside o grupo XIX de teatro desde 2004, é tornada enquadramento; como que tela de um protocinema onde tempos não se sobrepõem, mas coexistem. Um Clássico: Matou a Família e foi ao Cinema, com direção e dramaturgia de Luiz Fernando Marques Lubi, é o espetáculo resultante do Núcleo de Pesquisa O Cinema Como Presença que carrega no nome duas de suas inspirações temáticas e, de algum modo, estético-formais.
Matou a Família e foi ao Cinema (1969), de Júlio Bressane, cumpre o prometido por seu título já em seus primeiros cinco minutos, que são projetados ao público do espetáculo do grupo XIX. O que se sucede, então, é Perdidas de Amor, um filme dentro do filme que, segundo análise de Ismail Xavier, “se intromete para além das fronteiras indicadas pela própria ação diegética, de modo a evidenciar o quanto a consistência e homogeneidade dos mundos ficcionais é aqui ilusória”. Xavier aponta que Bressane “emoldura” seu Matou a Família (…) com as personagens do filme dentro do filme, iniciando e encerrando a obra com Márcia Rodrigues e Renata Sorrah – rostos sorridentes para a câmera no começo, seus corpos sem vida ao som de Roberto Carlos no final.
O curta-metragem Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora (1968) é talvez menos conhecido do grande público. A primeira obra audiovisual de Djalma Limongi Batista “é o primeiro curta feito no curso de cinema da ECA-USP, e o primeiro a ter uma representação frontal da homossexualidade masculina, em plena ditadura, pouco antes do AI-5”, aponta Sérgio Alpendre em análise escrita para a Folha de S. Paulo no dia do falecimento do artista, em 14 de fevereiro de 2023. “Eu sou de ti e tu é de mim, Antônio”, diz um personagem a outro na obra que venceu todas as categorias em que concorreu na sua estreia, no Festival de Curtas do Jornal do Brasil do ano de sua produção. Na sequência, teve sua exibição censurada na própria ECA e foi posteriormente banido pela reitoria da USP junto a outros dois curtas de Limongi por serem filmes “pornográficos e subversivos”, ressurgindo apenas na década de 1980, conforme aponta matéria do Jornal do Campus.
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Lubi, acompanhado da diretora assistente Juliana Mesquita e dos artistas colaboradores e atuantes Aguida Aguiar, Bruna Mascarenhas, Carlos Jordão, Lucas Rocha e Walmick de Holanda, recorta destas duas realizações do cinema de vanguarda feito no país no final dos anos 60 a temática da representação da homoafetividade e da homossexualidade, jogando com a própria ideia de representação e também de montagem. O cinema é trazido como memória e a teatralidade de Um Clássico: Matou a Família e foi ao Cinema é um embaralhamento das possibilidades de convívio entre a cena e a tela, o palco e a plateia, o público e a obra. Holanda é um narrador-personagem que brinca com essa própria construção, ao passo que é também um fã de cinema que acompanha os espectadores da obra – como, de certo modo, o ator de Matou a Família que simultaneamente está na poltrona do cinema e interpreta personagens de Perdidas de Amor; este narrador-personagem emoldura o espetáculo, criando peças dentro da peça e, em sua própria narrativa, tematizando sob outro viés a perspectiva da representação da homossexualidade.
Sobre as personagens dos filmes evocados pouco ou quase nada se sabe – Antônio e Isaias do curta de Limongi se encontram em meio ao fluxo da cidade na Galeria Metrópole, em um breve diálogo falam de suas origens, declaram-se e se dão conta da fatalidade que é serem quem são naquela sociedade – “Essas perguntas que eu não gostaria mais de responder. Essas perguntas que eu não gostaria mais de perguntar”, diz um deles. O crítico Jairo Ferreira, em texto publicado na coletânea de suas críticas (publicada pela Coleção Aplauso – Cinema Brasil), cita o diretor: “Meu objetivo foi mostrar todo um sistema que torna trágica a realidade”.
De Márcia e Regina, no filme de Bressane, se sabe um pouco mais; e a partir da relação com os inserts de cenas de violências dos “crimes em lugares pobres e sujos que não tinham nada a ver”, como diz Márcia à Regina sobre um filme que havia visto (que seria, inclusive, o próprio Perdidas de Amor!) segundo Xavier, “há a tentação da ruptura” e elas passam ao “acting out de suas fantasias”.
O material que serve de base para o espetáculo é, como se pode perceber, farto e complexo. A presença de Holanda como espécie de cinéfilo organiza, se não todas as camadas destes filmes, aquelas que interessam de forma central ao trabalho. O espelhamento das personagens das telas e diante do público (Aguiar e Mascarenhas são Márcia e Regina, Jordão e Rocha são Antônio e Isaías) toma algo da fragmentação como organização da violência presente em Matou a Família/Perdidas de Amor, ao mesmo tempo em que a ambientação da ação deste mundo ficcional, toda da porta para fora, faz do público voyeur e flâneur, como a câmera de Um Clássico, que transita do ambiente privado ao passeio público, entre quadros íntimos e planos abertos – Ferreira diz que “Djalma filma São Paulo, cidade agitada e monstruosa, com uma câmara [sic] nervosa e lírica.”
A composição do teatro com o cinema, aqui, não se dá por uma busca de confluência estética das linguagens – ainda que interpretações e enquadramentos possam criar momentos de harmonia entre vídeo e cena. As representações da homoafetividade presentes nas obras de Bressane e Limongi também não são evocadas como documento histórico, mas como memória. E memória, talvez, no sentido proposto por Paola Barreto Leblanc em Cine Fantasma: o cinema morreu? Viva o cinema!:
“Podemos pensar também a memória como uma promessa de futuro, um germe, prenhe das possibilidades vindouras carregando consigo as condições de possibilidade para desdobramentos múltiplos, o vir a ser, o por vir, o devir… Assim, a memória diria mais do futuro que do passado, visto que o que passou, já foi, e só existe na memória, a cada vez que se atualiza em novas redes e conexões. (…) A memória pode ser um traço, uma marca, um vestígio, um rastro. Ou uma invenção. Ou uma lacuna. Ou um fantasma.”
Na tela de projeção que enquadra a cena teatral no armazém do grupo XIX, para além de cenas dos filmes que dão o nome da obra (inclusive a refilmagem de Matou a Família – e uma inserção pontual de Thelma & Louise), o mais interessante talvez sejam as filmagens realizadas pelo coletivo de artistas (Lubi assina a edição de vídeo; ele, Mesquita e todo o elenco assinam direção de arte). É a presença delas que desestabiliza o tempo presente das ações e dá a ver a distância entre os filmes e o agora – ao mesmo tempo em que verticaliza essa proximidade – brincando ainda com a precariedade da ilusão da imagem, criando ruídos na magia das obras cinematográficas: no vídeo, representações fixas; no teatro, a maleabilidade do instante.
ficha técnica Um Clássico: Matou a Família e foi ao Cinema foto de capa: Jonatas Marques Direção e Dramaturgia: Luiz Fernando Marques Lubi. Artistas Colaboradores e Atuantes: Aguida Aguiar, Bruna Mascarenhas, Carlos Jordão, Lucas Rocha e Walmick de Holanda. Diretora assistente: Juliana Mesquita. Cenografia e Edição de vídeo: Luiz Fernando Marques Lubi. Figurino, visagismo e direção de arte: Aguida Aguiar, Bruna Mascarenhas, Carlos Jordão, Juliana Mesquita, Lucas Rocha, Luiz Fernando Marques Lubi e Walmick de Holanda. Produção: Grupo XIX de teatro e Andréa Marques. Técnico de Luz, som e vídeo: Luís Roberto Oliveira. Realização: grupo XIX de teatro e Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. Filmes referências por ordem de aparição: Matou a família e foi ao cinema (1969) de Júlio Bressane, Matou a família e foi ao cinema (1991) de Neville de Almeida, Um Clássico: Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora (1968) de Djalma Limongi Batista, Thelma & Louise (1991) de Ridley Scott e Callie Khouri. Artistas que participaram do núcleo de pesquisa do grupo XIX de teatro - O Cinema como presença - de abril a julho de 2023: Aguida Aguiar, Alessandro Hernandez, Ana Hidalgo, Anderson Martins. Bruna Mascarenhas, Carlos Jordão, Felipe Salve, Giulia Gadel, Lenise Oliveira, Lucas Rocha, Lui Seixas, Michele Barreto, Naia Soares, Pedro Henrique, Raphito Oliveira, Tércio Moura, Valéria Arbex, Verona Ísis, Victor Rosa, Vívian Valente e Walmick de Holanda.