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o crepúsculo da outridade

crítica de A Hora do Lobo, de Christiane Jatahy a partir do filme Dogville, de Lars von Trier. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

“Quando completei dez anos, comecei a adestrar bois. Foi assim que aprendi que adestrar e colonizar são a mesma coisa. (…) Há adestradores que batem e há adestradores que fazem carinho; há adestradores que castigam e adestradores que dão comida para viciar, mas todos são adestradores. E todo adestramento tem a mesma finalidade: fazer trabalhar ou produzir objetos de estimação e satisfação.” (Antônio Bispo dos Santos, A terra dá, a terra quer)

Traduções, traições, travessias: quando Christiane Jatahy estreou seu espetáculo A Hora do Lobo em julho de 2021 no Festival de Avignon, na França, após processo criativo em Genebra, Suíça, no contexto da Comédie de Genève, trazia em seu título a expressão francesa Entre Chien et Loup (entre cão e lobo), utilizada para descrever o momento onde tais animais seriam indistinguíveis – e daí pode-se inferir todo o seu sentido figurado. Para apresentações em países anglófonos, a versão utilizada para o nome da obra era mais direta: Dusk; crepúsculo.

Pensar em torno destas palavras pode servir de mobilização primária para uma análise da encenação de Jatahy, cuja pesquisa que fricciona teatro e cinema se mostra cada vez mais consolidada – e não por isso menos inventiva a cada novo trabalho. No jogo de trânsitos geográficos, talvez os sentidos se transformem tanto quanto os lugares. Ao apresentar o trabalho no Brasil, o olhar que vislumbra a cena – estruturada como um debate com Dogville (2003), filme de Lars von Trier – torna-se aquele representado por Julia Bernat: a estrangeira.

No início de A Hora do Lobo, o elenco está todo no palco, e em uma espécie de prólogo Bernat contextualiza o momento em que a encenação foi concebida. Ela então convida o público a imaginar que estamos naquele período, três anos atrás; e que estamos em fuga, no exílio, distantes de casa, na Europa. Nessa convenção, o trabalho de Jatahy propõe um enquadramento específico em torno do horror da ascensão do neofascismo no Brasil e no mundo.

Esse ato de um deslocamento prévio e peremptório não se fazia presente em apresentações recentes, como aponta uma crítica sobre Dusk no contexto do Festival de Edimburgo deste ano, publicada na Time Out. Ali, aponta-se para o fato das personagens interpretadas pelo elenco francófono apresentar a si mesmo e às suas intenções (o exercício de refazer Dogville sem incorrer no mesmo fim), e Graça, papel de Bernat, estar na plateia e dali surgir para a cena, como se uma voluntária para o experimento teatral daquele grupo – é o que acontece em A Hora do Lobo, mas apenas depois da “introdução” da proposta e do convite ao exercício de imaginação.



A contextualização que inicia e se alonga por alguns parágrafos deste texto parece importante para situar a reflexão que se desdobra a partir da realização de A Hora do Lobo em São Paulo, no Brasil, em 2023. Pois do mesmo modo que apontado no sentido da leitura e recepção da primeira parte do díptico Nossa Odisseia, também de Jatahy, onde a crítica deste ruína acesa afirmou que “há de se considerar que, quando apresentada na França – onde estreou – Ítaca deve se revelar outro espetáculo. Aqui, são as atrizes que falam a língua do público, o que gera uma maior cumplicidade com as figuras oprimidas”.

É um dado simultaneamente contingente e indesviável: Graça é a única brasileira na narrativa (Paulo Camacho está em cena no papel-função de montador; sua brasilidade só se revela na fala ao microfone já perto do final) e o público, nas turnês até então, era formado de europeus, mais próximos dos eus da ficção do que dessa outra. Nesse lance circunstancial, possibilidades de leitura se ampliam a partir do lugar da fruição: o momento crepuscular se dilata para muito além dos tempos que correm.

Não parece se tratar de algo meramente incidental: o dado da estrangeira em von Trier não se fazia tão impactante quanto aqui; ainda que seja aquela-que-vem-de-fora, a Grace de Nicole Kidman era uma americana chegando em uma cidade americana. Os motes e disparadores para comportamentos desumanizantes e cruéis dos demais habitantes não estavam vinculados à sua origem, senão à (suspeita de) atitudes e relações com crimes e criminosos. E se em Dogville uma figura de autoridade trazia o cartaz de desaparecida e depois de procurada, nesta Hora do Lobo é uma notícia do celular que mobiliza toda a preocupação daquele grupo, onde paira a dúvida entre verdade e fake news

Diferentemente do filme de von Trier, o espetáculo de Jatahy não se encerrará com certezas e fogaréus. Não pela insistência propositiva da camada ficcional do grupo de atores em refazer a chegada daquele-que-vem-de-fora dentro da chave do acolhimento, mas pela própria perspectiva da encenadora, talvez mais esperançosa do que o misantropo dinamarquês. Localizar a crítica em torno da perversão: eis a grande diferença entre o cão e o lobo. 

A Hora do Lobo busca, na cena, o oposto do que se vê em Dogville. Se no filme há uma evidenciação da maldade enquanto característica inerente ao ser humano, no espetáculo a tese é outra. Em seu gesto de refação, a obra expõe o processo de desumanização e coisificação do Outro como etapa fundamental no desenvolvimento de uma lógica relacional – e, por consequência, no estabelecimento de estruturas sócio-institucionais – inconsciente ou deliberadamente fascistas.

Embora na trama de Jatahy seja o coletivo europeu o proponente deste experimento, são as ações e tentativas de intervenção de Graça/Bernat que se desenham enquanto possibilidade de não repetir o horror. Personagem e atriz formam um duplo no jogo da encenação que oscila entre metateatralidade e performatividade: o elenco interpreta artistas que interpretam personagens, e no tensionamento entre cinema e teatro o real parece o tempo todo à espreita.

Há um “eu” enunciado por Graça/Bernat que não se define, sustentando esse trânsito. Eu, artista brasileira trabalhando na Europa; eu, artista brasileira interpretando uma artista brasileira; eu, artista brasileira interpretando uma artista brasileira interpretando uma artista brasileira.

O palco é um palco, mas o teatro propõe outros teatros, como se as personagens ora tivessem consciência e fizessem do público testemunha (ou cúmplice?), ora agissem com a quarta parede sólida e erguida – e lá está a câmera, operada por Camacho mas também por quase todos os outros; a constante ali talvez seja precisamente essa: estamos fazendo um filme, estamos refazendo um filme, estamos buscando mudar o final deste filme.

E então a tela é uma tela para a plateia, mas é também uma tela para quem habita o palco; e o cinema também propõe outros cinemas no jogo da montagem onde o ao vivo e gravações embaralham a composição em tempo real e insistem na manutenção dos horrores. Jatahy parece brincar aqui com o fato de que é no palco onde há a maior possibilidade de transformação, ao menos no sentido de que seu fazer, sua repetição, é sempre mutável, não se encerra em uma mídia física ou digital cuja reapresentação será sempre idêntica – o que se move, neste caso, é todo o mundo ao seu redor, não a obra.

Os usos do cinema podem ser pensados a partir de diversas passagens da peça, como na presença da criança apenas como gravação, fazendo que uma conversa “real” entre ela e Graça seja totalmente impossível, sujeitando-a a tudo que o garoto disser, impotente diante de sua perversão. Também no momento onde, como forma de punição, os bonecos de porcelana da protagonista são quebrados. No palco, eles não precisam ser jogados ao chão: isso já acontece no filme.

Nesta construção e reconstrução da cena, capitaneada pelo empenho de Graça/Bernat, os distintos graus de ficção entre palco e tela tornam-se em si disparadores de conflito, como quando a personagem/atriz se coloca em fuga ao negar a projeção de sua própria imagem exibindo o estupro cometido por Ben na traseira de sua caminhonete. “Eles insistem nos personagens”, diz ela ao público em determinado momento. O cinema em A Hora do Lobo torna-se a ferramenta para essa insistência, como se o que se passasse ali estivesse fora do controle da ação na cena.

Há nesse sentido um ruído interessante: Camacho, responsável pela fotografia e pela montagem ao vivo, é brasileiro; mas representa um artista do coletivo europeu. Ao mesmo tempo, a encenadora é brasileira; Jatahy acaba se protegendo na relação com as tantas camadas da narrativa cênica. Ao contrário da segunda parte de Nossa Odisseia, O agora que demora, onde a artista está tanto no palco, evidenciando na ilha de edição o caráter processual de sua aproximação do teatro ao cinema, quanto na tela, implicando-se em sua narrativa homérica, em A Hora do Lobo a estrutura da encenação parece apoiar-se sobretudo no pacto das representações elaboradas pela dramaturgia.

Nesse sentido, aquilo que acontece no palco – e no vídeo – se desenvolve como que pelas mãos do grupo europeu conduzindo o experimento. Graça/Bernat torna-se espécie de alter ego de Jatahy em suas tentativas de refazimento, de impedimentos, de gritos, ao mesmo tempo em que, evidentemente, tudo que se vê na cena passou por processos de tomada de decisão da encenadora. Talvez por isso o subtítulo brasileiro para A Hora do Lobo traga a ideia de debate com Dogville, e não diálogo: a adaptação não é uma conversa, mas um enfrentamento.

Na metaprocessualidade que emerge como dispositivo constituinte da obra, apresentar A Hora do Lobo em São Paulo, no Brasil, em 2023, é um tipo de refação de si própria. Para além do enquadramento espaço-temporal proposto por Bernat no início, e também para além da carta lida por ela ao final, os perigos da ascensão do fascismos parecem assemelhar-se aos perigos do pensamento moderno e da europeização de um Eu universal. Pois na mesma época em que a Europa reconstruía-se depois de vencido o nazifascismo, o martinincano Aimé Césaire (1913 – 2008) chamava-a de “indefensável” em seu Discurso sobre o colonialismo, onde, demonstrando que o crepúsculo já dura séculos, enuncia uma equação: “colonização = coisificação“. 

Para o enfrentamento desta terrível e historicamente precisa operação, pode-se considerar o “direito à opacidade” proposto por Édouard Glissant (1928 – 2011), também nascido na Martinica: “Posso então conceber a opacidade do outro para mim, sem que eu cobre minha opacidade a ele. Não necessito ‘compreendê-lo’ para sentir-me solidário a ele, para construir com ele, para amar o que ele faz. Não necessito tentar tornar-me o outro (tornar-me outro) nem ‘fazê-lo’ à minha imagem” (Pela opacidade, em Poética da Relação).

A assimilação de Graça naquela comunidade é um processo exploratório, onde ela passa a fazer tarefas para os outros, como se a solidariedade para com ela só pudesse nascer a partir dessa sujeição, como se desse modo ela pudesse se dar a conhecer para aquelas pessoas e assim pudesse ser reconhecida como (ou tornada uma) “igual”, mas desde sua chegada subalterna, menor, estrangeira.

A Hora do Lobo faz da aceitação inicial uma grande festa. Nos tantos objetos que compõem o cenário de Thomas Walgrave (que também assina colaboração artística e iluminação), espaços íntimos e públicos coabitam o palco de modo similar à construção visual teatralizada de Dogville. Na lida com aquelas materialidades, celebrações e conflitos se desvelam em composições na cena e enquadramentos em vídeos. Em cada relação construída, singularidades: “há adestradores que batem e há adestradores que fazem carinho”, mas “todos são adestradores”, lembra Nêgo Bispo em A terra dá, a terra quer. Entre a docilidade do cão e a violência do lobo, no crepúsculo todos podem ser Outro.

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ficha técnica
A Hora do Lobo
(Entre Chien et Loup)

A partir do filme Dogville de Lars von Trier 
Adaptação, encenação e direção: Christiane Jatahy
Colaboração artística, cenografia e luzes: Thomas Walgrave
Direção de fotografia e montagem ao vivo: Paulo Camacho
Música: Vitor Araujo
Figurinos: Anna Van Brée
Sistema de vídeo: Julio Parente e Charlélie Chauvel
Som: Jean Keraudren
Diretora assistente: Stella Rabello
Operadora de luz: Samya Peruchi
Operador de som: Pedro Vituri
Diretor de Palco: Aymrik Pech
Contra-regras: Tiago Moro e Edmo Rocha
Camareira: Alessandra Ribeiro
Fotos: Magali Dougados
Assessoria de imprensa: Factoria (Vanessa Cardoso)
Assessoria jurídica: Dra. Martha Macruz de Sá
Assistente de produção: Rick Nagash
Direção de produção: Henrique Mariano
Com Azelyne Cartigny, Delphine Hecquet, Julia Bernat, Matthieu Sampeur, Paulo Camacho, Philippe Duclos, Valerio Scamuffa, Véronique Alain, Vincent Fontannaz, Viviane Pavillon.
Com participação de Harry Blättler Bordas
Agradecimentos: Martine Bornoz, Adèle Lista, Arthur Lista
Construção do cenário original: Ateliers da Comédie de Genève
Reconstrução do cenário no Brasil: Claudia Calabi e Ju di Grazia
Produção original: Comédie de Genève
Produção Brasil: Axis Produções Artísticas Ltda (Cia Vértice)
Coprodução: Odéon-Théâtre de l’Europe – Paris, Piccolo Teatro di Milano-Teatro d’Europa, Théâtre national de Bretagne – Rennes, Maillon Théâtre de Strasbourg – Scène européenne.