destaque, teatro

do que insiste, do que existe

crítica de Cena Ouro – Epide(r)mia, da Cia. Mungunzá de Teatro. este texto foi comissionado pela companhia.

Agosto de 2023. A Cia. Mungunzá de Teatro estreia Cena Ouro – Epide(r)mia em duas apresentações dentro da programação do Festival Pop Rua. O trabalho é uma espécie de refação de Epidemia Prata (2018). Mais uma vez, o grupo encara seu repertório de forma crítica a fim de seguir em consonância com as vozes dos tempos que correm. Não se trata de abrir mão de nada; trata-se de cotidianamente compreender o fazer artístico como inscrição no mundo. E nada surge do vácuo: do contágio embrutecedor ao brilho da pele que dá a ver existências, muito se caminhou. 

Outubro de 2016. No início do mês, João Doria era eleito prefeito de São Paulo no primeiro turno. No final do mês, a laje de concreto situada à Rua dos Gusmões, 43, recebia durante a madrugada 10 contêineres adquiridos e reformados pela Mungunzá em São Vicente, na baixada santista. Março de 2017: o Teatro de Contêiner Mungunzá é inaugurado com apresentações de Luis Antonio – Gabriela (2011). Maio de 2017: o então prefeito João Doria, depois de uma megaoperação conjunta das polícias Civil e Militar, anuncia que a Cracolândia “acabou“.

Maio de 2018. Completando dez anos, a Mungunzá estreia Epidemia Prata no Sesc 24 de Maio. O espetáculo é concebido a partir da experiência no território da Luz, do “choque traumático entre realidades distintas”, como descrito na crítica deste site sobre o trabalho. No texto das (não-)poesias que morrem sob cobertores ao luar, apontamos para a “exposição de idiossincrasias” que efetivava uma “partilha da dificuldade”. 



A recepção é difusa, com críticos identificando que “a margem de invenção poética esbarra na camada endurecida” do material (Zona de Indeterminação, por Valmir Santos, no Teatrojornal), conclusão talvez semelhante à deste ruína acesa: “as histórias apresentadas costuram-se numa rede prata de narrativas cruas e duras, que se contrapõem às construções poéticas da encenação”, em se tratando de uma realidade onde “pode não haver espaço para a poesia”.

Paulo Bio Toledo é firme em sua crítica no jornal Folha de S. Paulo (Em ‘Epidemia Prata’, crise de grupo sobressai a tragédia social): “o que se destaca mesmo na montagem é a autocrítica sobre os impasses criativos do grupo (…). Embora o espetáculo ressalte o tema da tragédia social, ele é, na verdade, o exame do fracasso em lidar com ela (…), o assunto passa a ser a própria impossibilidade daqueles artistas em lidar com o tema”.

Por outro lado, Anna Claudia Magalhães, escrevendo para o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (FIT Rio Preto) em 2019, analisa o trabalho da Mungunzá por outra perspectiva: “Como diria Mano Brown, não adianta querer, tem que ser, tem que pá, o mundo é diferente da ponte pra cá. Epidemia Prata é um confronto à hipocrisia das hashtags, das construções e desconstruções que nos servem de escudo, mas que nos apartam das demais realidades e nos protegem da real compreensão de que não há estudos acadêmicos, aparências despreocupadas, esmolas ou dramaturgias que alcancem o fogo e os sopros por debaixo dos cobertores” (em Do outro lado da margem ou da prata pra cá).

Observar, ainda que neste breve sobrevoo, a fortuna crítica de Epidemia Prata para a partir disso refletir em torno de Cena Ouro – Epide(r)mia (2023) é como que estruturar os então dez contêineres em um espaço então ocioso: para além de datas e o tempo que passou, pensar no que se estava propondo e onde se está agora. 

Fernando Pivotto, em Sobre ‘Epidemia Prata’ (Tudo, Menos uma Crítica), disse à época o que talvez mais interesse nesse instante: “Me pergunto o quanto o espetáculo crescerá no futuro, quando for apresentado no Contêiner, para os moradores da região. Onde ele reverberará, o que será acrescentado, o que será refeito, quando os outros donos da história assistirem à peça. Que tipo de reflexões ela suscitará, que diálogos surgirão dela, o que será construído a partir daí?”

Por mais que sejam muitas e complexas as perguntas, é possível encontrar uma resposta que é síntese da trajetória da prata ao ouro, da petrificação à fusão (como o “pêndulo” que o grupo coloca na sinopse de Cena Ouro), dos dez contêineres em 2017 aos quinze deste 2023 e o tanto que se habita naquele território. Trata-se do depoimento de Cleiton Ferreira, o Dentinho, artista, morador do bairro, educador do Centro de Convivência É de Lei, presente no episódio ​​Desmontagem Contêiner – Utopia de Lata do web doc Cia. Mungunzá e na publicação da dramaturgia do Teatro de Contêiner:

Eu era frequentante no fluxo, então usuário de crack, caralho. Tá no meio do rolê e sendo aceito, né mano? E aí um dia saiu a peça chamada Epidemia Prata, foi a primeira peça que eu vi no teatro. Eu me vi ali, eu me vi ali, os olhares da minha história, saca? E o meu encontro com o teatro foi mágico, porque abriu, abrilhantou, a existência né? Eu existo.

Dentinho é um dos artistas do território convidado pela Mungunzá a fazer parte de Cena Ouro – Epide(r)mia. Essas novas presenças no espetáculo ampliam a perspectiva do narrar-a-si-mesmo, corporificando tensões antes só enunciadas. Em Epidemia Prata, o “teto” do espaço cênico era um tecido branco, onde se viam projeções da truculência de ações policiais na Craco; o horizonte estava baixo. O céu de Cena Ouro parece mais alto e convida ao voo: sobre o elenco está uma imensa tela de índio Badaróss; nas projeções, Flavio Barollo brinca com criações em IA que fazem da Boca do Lixo natureza viva e pulsante em revoluções de tempos, de futuros ancestrais.

Pois é precisamente aí que está o nó: nas transformações do Teatro de Contêiner, essa “ideia que tem vida própria”, como diz Filipe Celestino (ex-colaborador do Contêiner e da Mungunzá Digital) na desmontagem já citada. Seis anos, uma pandemia, um sem-número de operações policiais, diversos coletivos e pessoas ligadas a ações variadas no território construindo vínculos com aquele complexo arquitetônico e com sua equipe. Durante o Encontro com Espectadores, promovido pelo Teatrojornal em torno de Epidemia Prata, ocorrido em junho de 2018 no Itaú Cultural, Marcos Felipe apontou que para a Mungunzá “não [era] fácil lidar com essa dureza, identificar essas questões, até porque também trabalhamos muito no campo da utopia”. É como se a realidade encontrada pelos artistas no convívio diário com seu entorno e seus frequentadores os petrificasse; daí “a prata que dá mais prata”, daí o mito de Medusa, daí a impossível utopia. 

Para Georgette Fadel, Epidemia Prata “é um retrato da merda sem saída absoluta que há séculos a gente sabe que não tem saída, que é o tal do sistema capitalista, um sistema de endurecimento, de enrijecimento, de desumanidade, de competição. (…) O tema da peça é dureza, a gente está ficando duro, duro, duro, sem nenhum tipo de permeabilidade física – nem mental, nem moral, nem ética, nem nada”. No mesmo encontro, Beth Néspoli comentou que, no espetáculo, “no final a conclusão a que chegam [o grupo] é que estão impotentes e afogados naquilo”. Fadel, diretora de Epidemia Prata e codiretora de Cena Ouro, responde quase como quem profetiza: “mas não é final e nem é conclusão”. 

Sua fala talvez remeta ao próprio inacabamento processual do trabalho de 2018, da consciência de que se tratava de um gesto artístico daquele momento histórico do grupo, do Contêiner, do território. Mas ela também lança iscas ao futuro. Segue chovendo em cobertores, sim, e ainda é duro fazer poesia, mas há mais além da dor.

Quando o contágio se torna a própria pele e a cor do concreto divide a cena com a cor do sol, o embrutecimento da prata convive com a possibilidade da beleza do ouro. O dourado, nesta Epide(r)mia, dá a ver o que não era visto; faz brilhar o invisível. Lá está o óbvio e indesviável “nós e eles”. Mas agora, nos espelhamentos desta Cena Ouro, não há um “nós” falando dos nós de conviver com “eles”. Eles também estão ali, e falam por si. Não é só sobre o narrar a si mesmo, mas também é. Na codireção de Fadel, Cris Rocha e Tânia Granussi, interessa observar o desdobramento estético desta refação; das transformações na encenação que fazem de Epidemia Prata e Cena Ouro um díptico simultaneamente indissociável e totalmente independente. 

Olhar para Cena Ouro – Epide(r)mia em sua autonomia é absolutamente possível e se trata de experiência completa de fruição. A narrativa fragmentada se desenvolve, lá estão tensões e conflitos, lá estão artistas “estrangeiros” e artistas “locais” construindo um discurso conjunto mas também passível de dissonâncias em torno das disputas simbólicas e concretas que habitam o território da Luz. Mas para quem pôde assistir Epidemia Prata à época de sua estreia, para quem acompanhou os acontecimentos em torno do estabelecimento do Teatro de Contêiner, há uma riqueza nesta mirada em trajetória; ampliam-se as leituras e as possibilidades de análise.

Ainda, cabe observar a recorrência do gesto político e poético da Mungunzá de revisitar criticamente a própria trajetória. Quando Luis Antonio – Gabriela estreou em 2011, era Felipe quem representava, por todo o espetáculo, a personagem-título, irmã travesti de Nelson Baskerville, diretor da encenação. Já em 2017, frente à articulação do Movimento Nacional de Artistas Trans (MONART) em torno do manifesto Representatividade Trans Já!, a companhia foi questionada sobre a utilização do transfake – ou seja, um ator cisgênero interpretando uma personagem trans. Inicialmente assumindo uma postura defensiva e reativa, passado um tempo a Mungunzá decidiu ouvir e refletir ética e esteticamente acerca desta reivindicação: Fábia Mirassos foi convidada para integrar o elenco do espetáculo, o que inclusive trouxe à tona novas potencialidades artísticas e políticas para a obra.

No caso de Cena Ouro, o que parece é que esse olhar-de-novo foi uma convocação sentida pelo próprio grupo: nesses cinco anos de Epidemia Prata, criada após um ano de Contêiner, é impossível quantificar o que se transformou no espaço, no entorno, no contexto e, fundamentalmente, nas subjetividades tanto de artistas da Mungunzá quanto de artistas do território e até mesmo de frequentadores do espaço.

Assim, as cenas recriadas, descriadas, transcriadas, são manifestos vivos, entre demandas urgentes, fricções de discursos e a ressignificação de imagens. Se a bolha de Virginia Iglesias era antes vista apenas como a crítica do distanciamento de parte da sociedade, do fingir-não-ver e escolher-não-se-importar, ela agora é também um isolamento quase positivo de Ferreira entre seus quadrinhos e livros; uma bolha-respiro em meio ao caos.

O que se faz e o que se constrói em torno das próprias atitudes também revela seu caráter difuso: no espelhamento entre Iglesias e Laurah Cruz, a primeira parece falar tudo em abstrato, enquanto a segunda traz uma localização precisa dos acontecimentos. Nesse sentido, a concretude grita enquanto brilho; como se a utopia se apresentasse, aqui, como ação prática no mundo – algo que reverbera de anonimATO (2022), encenação de rua da Mungunzá. 

Também, a composição de Verônica Gentilin confronta-se com Danee Amorim no sentido do que se representa e do como se representa uma figura que é uma pessoa, e gestos sutis na contracenação delas já são o suficiente como ruído que complexifica a fruição. Ao mesmo tempo, nem tudo são “nós e eles” e é possível fazer da diferença multidão, coros em gira, construções de coletividades potenciais – e viáveis, visto que Cena Ouro é fruto de um insistente semear de relações naquele espaço-tempo que dão a ver os outros tantos modos de transitar e habitar por territórios reduzidos a um nome, uma visão, uma massa.

Um dos disparadores da criação de Epidemia Prata foi a entrada de uma mulher em situação de extrema vulnerabilidade em um espaço do Contêiner durante uma roda de conversa sobre questões relativas à urbanismo e direito à cidade. Quando o objeto da discussão invadiu o debate em torno dele, a Mungunzá não soube enxergá-la como sujeito. Chamada de Elza, tornou-se marco da impossibilidade de lidar com a realidade que circundava a companhia. 

Não só muitos anos se passaram desde então, mas muito se transformou em vários aspectos. Durante a segunda apresentação de Cena Ouro no Festival Pop Rua, Vitória, uma mulher trans moradora da região, entrava e saia espontaneamente da cena. A diferença na lida com a situação é evidente e síntese do movimento dos tempos. Escutar o território, construir diálogos, criar espaços e também estabelecer limites: talvez se trate de insistir no (aparente) fracasso até que ele dê lugar a alguma outra coisa.

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serviço
CENA OURO – EPIDE(R)MIA
De 19 de outubro a 3 de novembro, quinta e sexta-feira às 20h
Teatro de Contêiner Mungunzá – Rua dos Gusmões, 43 – Santa Ifigênia, São Paulo (próximo à estação Luz do metrô).
16 anos | 80 minutos | R$ 10,00 a venda pelo Sympla.

ficha técnica
CENA OURO - EPIDE(R)MIA

Argumento e Produção – Cia. Mungunzá de Teatro. Direção – Cris Rocha, Georgette Fadel e Tânia Granussi. Artistas da Cena – Átila Fragozo, Cleiton Ferreira, Danee Amorim, Índio Badaróss (em vídeo), Laurah Cruz, Léo Akio, Lucas Bêda, Marcos Felipe, Mc Docinho, Mc Nego Bala, Pedro das Oliveiras, Sandra Modesto, Verônica Gentilin e Virginia Iglesias. Textos – Artistas da cena e Direção. Supervisão Dramatúrgica – Verônica Gentilin. Direção e Preparação Musical – Bruno Menegatti e Flavio Rubens.  Composições Originais – Pedro das Oliveiras, Mc Docinho e Mc Nego Bala. Assistência de Direção – Amanda Rocco. Psicanalista (acompanhamento, mediação do processo e colaboração cênica) – Ludmila Frateschi. Mediador Social (acompanhamento e colaboração cênica) – Ricardo Paes Carvalho. Vídeos (criação, captação, edição e IA) – Flavio Barollo. Desenho de Luz – Pedro das Oliveiras. Cenário – Léo Akio, Lucas Bêda, Marcos Felipe e Pedro das Oliveiras. Figurino – Cris Rocha e Sandra Modesto. Costura das saias – Coletivo Tem Sentimento. Apoio técnico (equipe Teatro de Contêiner Mungunzá) – Camila Bueno, Paloma Dantas e Sônia Cariri. Estágio (acompanhamento do processo) – Bárbara Freitas, Beatriz Cristina e Legina Leandro. Identidade Visual e Design Gráfico – Átila Fragozo e Léo Akio. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Podcast "Emoção Criativa | Cena Ouro" – Léo Akio, Pedro Garcia de Moura e Fabrício Zava. Produção Executiva – Cia. Mungunzá de Teatro e Gustavo Sanna. Apoio – Festival Pop Rua 2023 - 1ª edição, Museu da Língua Portuguesa, Sesc Bom Retiro, Teatro de Contêiner Mungunzá e Festival C'est Pas Du Luxe (Avignon - França). Realização – Cia. Mungunzá de Teatro e Sesc SP.