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no início era a palavra e a palavra se fez carne

crítica de Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos, texto de Plínio Marcos com direção de Roberta Estrela D’Alva e atuação de Ícaro Rodrigues, idealizador do projeto. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Em 1977, Plínio Marcos (1935 – 1999) publica um pequeno livro de contos chamado Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos. Nele, três temas: o encarceramento, o genocídio indígena e as violências em torno do futebol. No centro de cada um, diferentes anjos caídos. O bendito maldito debruça, então, respectivamente, um inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos em Osasco; um inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos que perderam os fundamentos; e um inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos nas voltas da bola e da boleta.

A reiteração nos títulos também se verá na estrutura narrativa dos contos. Plínio Marcos faz desses cantos, orações; dos prantos, lamentos de denúncia. Quase como um anti-mantra, a espiralidade das composições força o leitor a se concentrar nas variações, mas não há nada de meditativo ou apaziguador da mente naquilo que é descrito. Na encenação de Roberta Estrela D’Alva, a crônica-conto tornada dramaturgia faz da palavra possibilidade de sample de si mesma. O ator Ícaro Rodrigues presentifica uma multidão no encontro entre o texto que versa sobre vinte cinco homens reclusos no sistema prisional e o gesto político e artístico da realização cênica deste Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos.



Durante a entrada do público, Rodrigues está sentado diante de um microfone em um pedestal. Ele aguarda ali, calmo. Mais ao centro do palco, percebe-se um amontoado de pedestais empilhados, quase como ossadas. A crueza da composição cênica, organizada em torno da palavra falada (spoken word) como materialidade central, tem sido marca das direções de Estrela D’Alva desde, talvez, seu solo Vai te Catar! (2008). 

Sem propor aqui algum tipo de comparação direta, também pode se pensar que, assim como em Desfazenda – me enterrem fora desse lugar” (2021, peça-filme; 2022, espetáculo), do Coletivo O Bonde, a “caixa preta crua amplifica a sensação de clausura daquelas personagens narradas“. Trabalhos de tessituras distintas, carregam paralelos na síntese dos elementos cênicos e na precisão de seu diálogo. Não por acaso, compartilham na ficha técnica, além da direção, a iluminação de Matheus Brant e a direção musical de Dani Nega. 

A iluminação de Brant cria celas-recortes diversos na relação com a expressividade de Rodrigues. São olhares para dentro e para fora, janelas, grades, espaços soturnos, pequenas frestas de luz. Enquanto isso, as sonoridades propostas por Nega vão dos ruídos hostis de um presídio e suas precariedades às citações musicais contemporâneas, além da inserção de depoimento real sobre o sistema prisional. 

As únicas alterações feitas em relação ao material original estão nessas interferências e nas pequenas adições ao texto de Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos – como a menção ao “pinho sol” e o porte de “10g” entre os crimes “que não sabiam crimes” confessados por aqueles homens. Nesse sentido, a encenação ainda adiciona um manifesto pós-final, em fala curta e assertiva de Rodrigues em torno de dados recentes do sistema prisional brasileiro. Nesta escolha de “separar” a denúncia documental e direta da narrativa teatralizada, ganha o gesto artístico e ganha o gesto político, intrínsecos nas intenções e potencializados nesta realização.

Trata-se de algo interessante de se observar; inspirado pela morte de detentos que se rebelaram em uma cadeia de Osasco, Plínio Marcos cria uma ficção vertiginosa, cujas idas e vindas da descrição daquele cotidiano e daquelas subjetividades arrebentadas se organizam como um beabá da desumanização. E no princípio era o verbo e o verbo se fez carne: no encontro dessa forma escrita com a linguagem da palavra falada (spoken word), essencialmente periférica, das quebradas do mundaréu, dos slams, saraus e batalhas de rimas, Estrela D’Alva e Rodrigues fazem deste Inútil Canto e Inútil Pranto um gesto poético de inscrição de uma narrativa escrita há quase 50 anos no tempo presente.

Sozinho no palco, Rodrigues dá a ver aqueles que “eram vinte e cinco homens espremidos, empilhados, esmagados de corpo e alma, mais o desespero, o tédio, a desesperança e o tenebroso ócio, numa imunda cela onde mal caberiam oito pessoas” nas imagens que desenha em som e gesto. E são vinte e cinco os pedestais, e lá estão seus microfones.

A preparação corporal de Cecília Gobeth, também assistente de direção, faz com que Rodrigues possa desdobrar-se entre a voz que narra e o corpo que pulsa. São corpos enquadros, corpos enquadrados, mãos em prece sobre o microfone, corpos imóveis, corpos sarnentos, corpos moribundos; mas é também a liberdade do voo do anjo-maestro que conduz a sinfonia no clímax da obra diante das ausências evocadas pela última imagem, para que “se ergam todos os anjos caídos”.

Pois Inútil Canto e Inútil Pranto é também sobre a perenidade da punição oculta sob a falácia da ressocialização. Na Bíblia, Deus “não perdoou os anjos que pecaram” (2 Pedro 2:4); os “reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia” (Judas 1:6). Anjos caídos e suas prisões eternas. Por um lado, números como o de presos provisórios demonstram a falência do sistema prisional do nosso país: 25% da população carcerária ainda não foi julgada – e há mais brasileiros presos do que habitantes no Acre. Por outro lado, parece ser mesmo esse o projeto dos “cidadãos contribuintes” tão evocados pelo autor, que “só cuidam do que lhes convém”. Pois “os cidadãos contribuintes abrigam o mal” e “os anjos caídos são anjos”.

Na orquestração da composição final, que é indubitável levante, levantam-se os fantasmas de muitos tempos, aqueles da década de 1970 e os tantos de hoje, fazendo da atualidade de Plínio Marcos um ato de retomada, de reapropriação da narrativa (do) marginal que apresentava-se desde sempre como potência e primazia na criação deste que viveu entre miséria e poesia. Ícaro Rodrigues, que já foi educador de Teatro e Literatura em unidades da Fundação Casa, torna-se intérprete e artífice dessa evocação, entregando-se neste Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos que estabelece-se como tratado ético-artístico sobre o encarceramento em massa na contemporaneidade brasileira.

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ficha técnica
Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos

Texto: Plínio Marcos. 
Ator: Ícaro Rodrigues. 
Direção: Roberta Estrela D'Alva.
Assistência de Direção: Cecília Gobeth.
Direção Musical: Dani Nega.
Iluminação: Matheus Brant.
Figurino: Éder Lopes.
Preparação Corporal: Cecília Gobeth.
Operação de Luz: Matheus Espessoto.
Operação de Som: André Papi e Hugo Bispo.
Design Gráfico: Murilo Thaveira.
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli.
Produção: Catarina Milani e Ícaro Rodrigues.
Assistência de Produção: Éder Lopes.
Idealização do Projeto: Ícaro Rodrigues.